Há mesmo quem comente que a Ucrânia nunca esteve tão unida. Com 95 por cento dos votos contados, o ator tinha 73 por cento e o seu rival, o agora ex-Presidente Petro Poroshenko, menos de 25 por cento.
Um mapa publicado no Twitter mostra a dimensão da vitória de Zelensky, praticamente unânime quando ainda só eram conhecidos 90 por cento dos votos.
Pelo contrário, a disáspora ucraniana preferiu Poroshenko, que venceu Zelensky por 11 por cento, conforme dados entretanto anunciados pela Comissão Eleitoral da Ucrânia. Uma vitória de sabor amargo para o ex-Presidente.
A votação decorreu num clima de calma e em segurança. De notar apenas a multa de 30 dólares aplicada ao próprio Zelensky, por ter mostrado o voto para as câmaras, antes de o colocar na urna.
"Ainda não sou oficialmente o Presidente mas, como cidadão da Ucrânia, posso dizer a todos os países da união pós-soviética, "olhem para nós. Tudo é possível!", festejou Volodymyr Zelensky na sua sede de campanha, ao celebrar a vitória.
A agenda de Zelensky não é exatamente um completo mistério. O comediante prometeu
"lutar contra a corrupção" e acabar com a guerra no leste do país, entre tropas ucranianas e combatentes pró-russos, mas goza do apoio do oligarca Igor
Kolomoiskiy. A sua equipa inclui, apesar de tudo, reformadores como o
jornalista de investigação Sergei Leshenko.
O grande problema, para já, poderá ser a completa falta de apoio no Parlamento, com eleições legislativas previstas daqui a seis meses.
Domingo, Zelensky prometeu relançar o processo de Minsk, de negociações com a Rússia com apoio europeu, assim como libertar todos os presos políticos, de forma a alcançar a paz.
Populista ou inclusivo?
A Ucrânia substituiu um Presidente ideologicamente fanático por um absoluto desconhecido. E a vitória de Zelensky, sobretudo pela distância a que deixou Poroshenko, tem duas leituras imediatas.
Por um lado, assinala a chegada das eleições ditas "populistas" ao leste europeu e à esfera da antiga União Soviética, no seguimento das vitórias de figuras anti-sistema, como Donald Trump nos Estados Unidos da América, de Bolsonaro no Brasil e de Beppe Grillo, na Itália.A única "experiência política" de Zelinsky foi desempenhar o papel de... Presidente, numa série de TV.
Para muitos, foi precisamente a falta de "experiência política" que levou os ucranianos a confiar em Zelensky. "Pelo menos não faz parte da máquina corrupta que nos governa", reagiu um eleitor.
Os analistas sublinham uma vitória alavancada numa imagem televisiva extremamente popular. Mas destacam igualmente a sua plataforma inclusiva, ao contrário da do seu adversário.
A vitória esmagadora de Zelensky, expressa também, por isso, a rejeição da política etno-nacionalista e anti-russa do ex-Presidente Petro Poroshenko, que marcou os últimos cinco anos.
O candidato derrotado, que passou a campanha a destacar a falta de experiência política do rival, já disse que não vai abandonar a política.
E sublinha que a vitória de Zelensky vai ser "festejada no Kremlin", que manteve o silêncio por várias horas após a eleição se confirmar nas sondagens à boca das urnas.
Rússia sem "ilusões"
O Governo russo reagiu finalmente através do primeiro-ministro, Dmitri Medvedev, na sua página no Facebook.
Medvedev reconheceu que Moscovo tem agora uma "oportunidade" para melhorar as relações com a Ucrânia, mas sublinhou a ausência de "ilusões".
"Existe uma oportunidade para melhorar a cooperação com o nosso país", escreveu o primeiro-ministro russo, para logo acrescentar cautelas.
"Não há dúvida de que o novo chefe de Estado usará a mesma retórica que utilizou durante a sua campanha em relação à Rússia”. Daí que não haja "ilusões" quanto a Zelensky.
Ocidente felicita
O Ocidente precipitou-se pelo contrário nas felicitações, com o Presidente dos Estados Unidos à cabeça.
De acordo com a Casa Branca, Donald Trump telefonou a Zelensky, para
"o felicitar pela vitória" e manifestar o "apoio determinado dos EUA à soberania e integridade territorial ucranianas."
Donald Trump expressou ainda "prontidão em trabalhar com o Presidente-eleito e com o povo ucrâniano, para alcançar as reformas que irão reforçar a democracia, aumentar o nível de apoios sociais e erradicar a corrupção no país".
Trump sublinhou também a "nova era na história da Ucrânia e sublinhou a natureza pacífica e democrática" do escrutíneo.
A lista dos líderes ocidentais que já felicitaram Zelensky inclui o Presidente francês, Emmanuel Macron, o Presidente da Polónia, Andrzej Duda, o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Jeremy Hunt, e o Comissário da União Europeia para a política de Alargamento e Vizinhança, Johannes Hahn.
Para o Ocidente, que apoiou Poroshenko há cinco anos, após a revolta de Maidan que levou a Ucrânia à guerra civil e à separação da Crimeia, a vitória de Zelensky pode saber a derrota.
Sobretudo porque não se sabe se o ator irá, como preço de ser inclusivo, regressar à esfera de influência russa ou se irá simplesmente defender os interesses dos ucrânianos contra os apetites estrangeiros, venham de onde vierem.
As elites poderão igualmente mostrar-se relutantes em aceitar as propostas de Zelensky e as suas jogadas políticas, o que fará aumentar a tensão. O claro apoio da população comum poderá contudo fazer pender a balança a favor de Zelensky, incluindo nas suas reformas mais extremas.
Apreensão financeira
O Presidente-eleito prometeu por fim à guerra na região leste de Donbass e combater a corrupção, face à subida de preços e à diminuição da qualidade de vida.
Só não avançou que medidas irá adoptar para o conseguir, o que deixa os investidores e empresários nervosos. Querem garantias de reformas para atrair investimento estrangeiro e a manutenção do país no programa de apoio do Fundo Monetário Internacional, FMI.
"Já que a incerteza é absoluta quanto à política económica daquele que será o Presidente, simplesmente não sabemos o que irá acontecer e isso preocupa a comunidade financeira", reagiu Serhiy Fursa, um banqueiro de investimento da Dragon Capital, na capital ucraniana, Kiev.
"Precisamos ver quais serão as primeiras decisões, as primeiras reuniões. Provavelmente não iremos perceber a dimensão dos riscos antes de junho. Talvez nada mude", acrescentou.