Este domingo, 14 de maio, os turcos vão a votos para escolher o próximo presidente do país. O resultado irá determinar a trajetória da Turquia, numa encruzilhada entre dois presidentes e modelos de governação opostos. Segundo antecipam os especialistas, este escrutínio poderá ser o fim político de Erdogan ou a "última eleição livre" por várias décadas.
Três anos depois, no rescaldo daquela tragédia, o partido do poder à época saiu derrotado nas urnas e os turcos entregaram o seu voto a um novo primeiro-ministro: Recep Tayyip Erdogan.
No poder desde março de 2003, primeiro como chefe de Governo e desde 2014 como presidente, Erdogan transformou a Turquia, alterou a Constituição e operou mudanças drásticas no regime, com uma crescente islamização e erosão gradual dos padrões democráticos, sobretudo após a tentativa de golpe de estado, em julho de 2016.
Agora, à imagem do que aconteceu com o seu antecessor no início do século XXI, o poder instituído enfrenta grandes dificuldades económicas e uma das inflações mais expressivas do mundo. Em 2022, os turcos sofreram com uma quebra abrupta no poder de compra, com a inflação a ultrapassar os 80 por cento.
Esta crise já não é recente, mas foi profundamente agravada por uma nova catástrofe: o sismo de 6 de fevereiro. Em termos humanos, este terramoto suplantou os números trágicos de 1999, provocando mais de 50 mil mortos e vários milhões de desalojados na Turquia.
No ano em que se celebra o centenário desde a fundação da república turca, a 29 de outubro de 1923, o país que Mustafa Kemal Ataturk reergueu após a queda do Império Otomano enfrenta escolhas decisivas.
Há uma semana, a revista Economist salientava que esta seria "a eleição mais importante de 2023". Procuramos responder às principais questões e explicar porque é que este escrutínio está a ser acompanhado com tanta atenção na Europa e no resto do mundo.
O que esperar desta eleição?
No domingo, realizam-se as eleições presidenciais e parlamentares na Turquia, que ocorrem de cinco em cinco anos. Perto de 61 milhões de eleitores decidem o futuro do país, incluindo três milhões de turcos da diáspora, que votam antecipadamente.
No que diz respeito à presidência, os partidos que tenham obtido mais de 5 por cento no escrutínio anterior podem apresentar um candidato. Em alternativa, qualquer político pode candidatar-se caso consiga recolher pelo menos 100 mil assinaturas.
No sistema turco, o candidato vence as eleições caso obtenha mais de 50 por cento dos votos na primeira volta. Se nenhum dos candidatos alcançar esse resultado, a eleição presidencial é decidida numa segunda volta.
Neste cenário, a segunda volta das eleições presidenciais decorrerá a 28 de maio.
Neste domingo, a votação começa às 8h00 locais (menos duas horas em Portugal Continental) e termina às 17h00. Os resultados serão revelados depois das 21h00.
As eleições parlamentares (gerais) também decorrem no dia 14 de maio. A Turquia tem um sistema de representação proporcional em que o número de votos determina o número de deputados que cada partido garante na Grande Assembleia Nacional.
Ao todo são eleitos 600 parlamentares.
Quem são os candidatos à presidência?
No total são três os candidatos às eleições presidenciais: Recep Tayyip Erdogan, Kemal Kilicdaroglu e Sinan Ogan. Um quarto candidato, Muharrem Ince, desistiu da corrida dias antes das eleições.
As sondagens colocam Kilicdaroglu ligeiramente à frente de Erdogan, enquanto Ogan tem obtido percentagens residuais, perto dos 3 por cento. Quem são então os dois principais candidatos?
Aos 69 anos, 20 dos quais no poder, Erdogan já é o líder mais duradouro na história do país desde a fundação da república, que este ano completa o seu centenário. Com alguma debilidade física que o obrigou mesmo a cancelar vários dias de campanha, o presidente turco chega a esta eleição com uma forte base de apoio.
Erdogan conta com o apoio do seu partido, o AKP, e ainda com os partidos Movimento Nacionalista (MHP) e Yeniden Refah. É a designada “Aliança do Povo”.
Cagla Gurdogan - Reuters
Kilicdaroglu, de 74 anos, é o líder do Partido Republicano do Povo (CHP, social-democrata e nacionalista) desde 2010. Este ano, foi o candidato mais consensual entre as várias forças da oposição.
A sua base de apoio inclui, para além do CHP, o iYi (O Bom Partido, nacionalista), o islamita Saadet, o liberal Partido Democrata, o liberal Democracia e Progresso (DEVA) e o partido Futuro, estes dois últimos dissidentes do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Erdogan.
Seren Selvin Korkmaz, diretora executiva do Istanbul Political Research Institute, realça em declarações à Al Jazeera que esta coligação conta com “partidos de esquerda, partidos de direita, partidos islamitas, partidos nacionalistas”.
José Pedro Tavares, correspondente da Antena 1 na Turquia, considera que Kilicdaroglu “conseguiu unir a oposição” e que isso “é o que tem faltado na última década”, numa Turquia “extremamente polarizada”, destaca em declarações ao programa Visão Global.
“Pela primeira vez em mais de 20 anos que dura já o mandato de Erdogan há uma hipótese realista de mudança de regime”, ainda que tudo possa ter de se decidir na segunda volta, destaca o correspondente da rádio pública em Ancara.
Foto: Murad Sezer - Reuters
O terceiro candidato, Sinan Ogan, é um antigo membro do movimento nacionalista MHP e um aliado do AKP de Erdogan.
Muharrem Ince, que desistiu da corrida na última quinta-feira, chegou a ser um membro destacado do CHP e tinha apresentado a sua candidatura à revelia do antigo partido. Com a desistência de última hora, a oposição poderá unir-se ainda mais no apoio a Kilicdaroglu. Nas sondagens, Ince reunia cerca de 5 por cento das intenções de voto.
Que mudanças ocorreram no sistema político?Em 2018, a Turquia deixou o sistema parlamentar e adotou o sistema presidencial após um referendo promovido pelo presidente. Os apoiantes de Erdogan argumentam que um sistema presidencial seria mais eficiente para lidar com os problemas do país, mas os críticos consideram que este sistema lhe confere poder e centralidade excessiva.
Sob a égide de Erdogan, o sistema parlamentar turco foi substituído por uma presidência executiva. O cargo de primeiro-ministro foi abolido.
“A expetativa era de que os processos de tomada de decisão fossem mais rápidos, mas aconteceu exatamente o oposto. Ele é o único decisor. Quem está nas agências governamentais evita tomar decisões arriscadas ou importantes”, refere Tarik Oguzlu, professor de Relações Internacionais na Universidade Aydin em Istambul, em declarações à Al Jazeera.
Esta recente mudança no sistema político turco é, de resto, um dos principais temas da campanha para Kemal Kilicdaroglu. Em caso de vitória, o líder da oposição promete fazer regressar a Turquia ao regime anterior e restituir o sistema parlamentar nos próximos anos.
José Pedro Tavares, na Antena 1, diz que a promessa de Kemal Kilicdaroglu em reverter o regime na Turquia poderá ser o principal argumento de Erdogan no combate à segunda volta. O atual presidente alerta que “se o parlamento for dominado pelo seu partido, a Turquia tornar-se-á ingovernável com um presidente de outra cor”, destaca o correspondente em Ancara.
Ao procurar perpetuar-se no poder, Erdogan é acusado de pôr em causa a democracia turca, concentrando em si todo o poder, ao enfraquecer as instituições do país, nomeadamente o poder judiciário, e ao exercer controlo sobre a imprensa.
“Ao aproximar-se da sua terceira década no poder, [Erdogan] senta-se no seu vasto palácio a dar ordens aos seus cortesãos que têm medo de lhe dizer quando ele está errado. As suas crenças são cada vez mais excêntricas e rapidamente se tornam em políticas públicas. Foi desta forma que impôs a um banco central, outrora independente, uma teoria monetária de doidos. [Erdogan] acha que a cura para a inflação está em tornar o dinheiro mais barato. (…) O padrão de vida está a diminuir e os ânimos estão a desgastar-se, destacava a Economist em janeiro, semanas antes do terramoto.
Soner Cagaptay, do think-tank norte-americano The Washington Institute for Near East Policy, considera que as eleições na Turquia “são provavelmente as mais importantes a nível global, este ano”.
“Ou chegam ao fim as duas décadas de poder de Erdogan, ou ele vencerá e estas serão as últimas eleições livres e justas na Turquia enquanto Erdogan se mantiver no poder”, acrescenta.
Os críticos do líder turco salientam também que Erdogan já cumpriu os dois
mandatos presidenciais previstos pela Constituição, tendo vencido as
eleições presidenciais de 2014 e 2018. O presidente turco alega que com a alteração no sistema político, pode candidatar-se mais uma vez.
Qual é o impacto dos sismos de 6 de fevereiro nesta eleição?Quando os eleitores votarem este domingo, os sinais dos sismos devastadores de 6 de fevereiro ainda serão bem visíveis em várias regiões da Turquia. Mais de 50 mil pessoas morreram e os sobreviventes dizem que ainda há corpos por retirar dos escombros, mais de três meses depois. Reportagem de Cândida Pinto e Rodrigo Lobo - RTP
Para além das mortes e dos feridos, há milhões de desalojados e um país devastado. A resposta ineficaz e demorada nos primeiros dias após o terramoto levou mesmo o presidente turco a assumir os erros e a pedir desculpa.
Logo nos dias seguintes ao terramoto, o presidente turco admitiu que a resposta por parte das equipas de resgate não fora tão rápida quanto o Governo gostaria.
“Ainda que tenhamos a maior equipa de busca e salvamento do mundo neste momento, é uma realidade que os esforços de busca não estão a ser tão rápidos quanto gostaríamos”, assumiu. Na altura, a presidência turca justificou-se com o mau tempo, estradas destruídas e a vasta área afetada pelos sismos.
“Devido ao efeito devastador dos sismos e do mau tempo, não conseguimos trabalhar como gostaríamos nos primeiros dias. Peço desculpa por isso”, reconheceu em Adiyaman, três semanas após o terramoto.
No centro histórico de Antakya, na província de Hatay, as marcas do terramoto continuam visíveis. Foto: Umit Bektas - Reuters
Os dois sismos de 6 de fevereiro, com epicentro em Gaziantep, deixaram o país de rastos e em revolta contra a classe política e as autoridades, que tardaram na resposta imediata, mas também os problemas sistemáticos no país. “Um terramoto desta magnitude teria deixado imensos danos em qualquer lugar do mundo, mas não numa escala tão terrível se os prédios tivessem sido construídos de acordo com as regras e os esforços de resgate devidamente coordenados”, escrevia a autora turca Elif Shafak, poucos dias após a catástrofe, num artigo de opinião no Financial Times.
Na sequência do terramoto de 1999, a Turquia procurou preparar-se para novos desastres naturais e emergências, nomeadamente ao aplicar o “imposto sísmico” ou imposto do terramoto, destinado a reabilitar, reconstruir ou demolir edifícios mais frágeis perante catástrofes futuras.
Em 2020, na sequência de um sismo de menores dimensões, mas que ainda assim provocou a morte de pelo menos 110 pessoas em Izmir, o governo turco já estava sob pressão. O principal partido da oposição, o CHP, acusava o Governo de uso indevido de mais de 71 mil milhões de liras que deveriam ter sido canalizadas para a proteção das cidades contra terramotos.
Após os acontecimentos de 6 de fevereiro, os partidos da oposição na Turquia não perderam tempo a criticar abertamente as políticas seguidas pelo presidente desde a sua chegada ao poder. “Se alguém é responsável por isto é Erdogan. Em mais de 20 anos, este governo não preparou o país para um terramoto”, afirmava Kemal Kilicdaroglu.
“Há tanta raiva, tanta tristeza. Quer estejamos na Turquia ou na diáspora, oscilamos entre a dor e a raiva. Num minuto estamos a chorar incontrolavelmente, noutro a queimar de indignação, consumidos por uma sensação de fragilidade. O terremoto destruiu algo na nossa psique coletiva”, acrescentava Elif Shafak.
O presidente turco tem procurado inverter a narrativa, prometendo a reconstrução do país no espaço de um ano e anunciando o aumento do salário mínimo dos funcionários públicos em 45 por cento poucos dias antes da eleição.
O que é que esta eleição significa para a Europa e para o Mundo?
Com um dos mais poderosos exércitos da NATO (o segundo, depois dos Estados Unidos), o resultado da eleição de 14 de maio será seguido atentamente em Washington, Bruxelas e Estocolmo, numa altura em que a Finlândia já obteve luz verde de Ancara para a entrada na Aliança Atlântica.
O próximo presidente terá de responder ao pedido de adesão da Suécia, com Ancara a acusar o país candidato de ser refúgio e recusar a extradição do que considera “terroristas” curdos, assim como gerir a difícil relação entre a Turquia e a União Europeia.
Nos últimos anos, o país pareceu resignar-se à posição de eterno candidato, sem uma perspetiva realista de adesão, o que levou Ancara a virar-se para a Ásia e o Médio Oriente.
Se for eleito, Kilicdaroglu promete “restaurar a orientação ocidental” da Turquia em caso de vitória nas eleições de domingo e realça a importância do respeito pela democracia, Estado de Direito, Direitos Humanos e igualdade. “Ninguém será discriminado devido às suas identidades políticas, pessoais, religiosas ou regionais”, destacou o candidato num artigo publicado na Economist.
Promessas que contrastam com o ataque constante dos últimos anos contra os curdos e a empenho na defesa da “família tradicional” contra o que designa como “tendências pervertidas” da comunidade LGBT.
No entanto, há uma temática em que os dois adversários parecem falar a uma só voz: a política de acolhimento de refugiados. Tal como Erdogan, Kilicdaroglu exige à União Europeia que ajude a Turquia a reconstruir uma Síria devastada por 12 anos de guerra civil.
Em 2020, quando um aclamado jornalista próximo de Erdogan avançou que parte do referido imposto criado para a reconstrução e adaptação da Turquia a eventos sísmicos tinha afinal sido gasto para ajudar o país a lidar com o enorme fluxo de refugiados e migrantes, Kilicdaroglu denunciava em pleno Parlamento: “Mas quando se trata dos sírios há muito dinheiro”.
Em 2016, Turquia e União Europeia selaram um acordo para conter o fluxo migratório vindo da Turquia e entregou seis mil milhões de euros a Ancara para acolher os refugiados que procuravam chegar à Europa.
Inicialmente, a Turquia foi um país de portas abertas, contabilizando cerca de 3,6 milhões de refugiados sírios (mais do que todos os países da Europa em conjunto). Mas o ressentimento da sociedade turca em relação aos quase quatro milhões de refugiados sírios cresce em proporção com a crise económica que se sente no país.
Em Istambul, a enviada especial da RTP, Cândida Pinto, destacava esta semana o impacto que a questão dos refugiados sírios está a ter na campanha para estas eleições. Numa posição de charneira entre a Europa e a Ásia, a Turquia situa-se numa complexa zona do globo. A norte, o país é banhado pelo Mar Negro, próximo pela via marítima de países como a Rússia ou a Ucrânia.
Este posicionamento geográfico pode ajudar a explicar o papel decisivo que a Turquia desempenhou – e deverá manter, independentemente do resultado eleitoral - ao mediar, em conjunto com as Nações Unidas, o acordo sobre a exportação de cereais ucranianos, evitando o adensar de uma crise alimentar global.
Na terça-feira, o secretário de Estado português dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, vincava que o Governo português irá acompanhar as eleições turcas “com muita atenção” e destacava o papel “absolutamente decisivo” do país no contexto do conflito na Ucrânia.