O Presidente sírio, Bashar al-Assad, deverá ser, neste momento, o homem mais desconfiado de Damasco, ao ver a aproximação entre um dos seus principais apoiantes, o Irão, e um dos seus mais velhos inimigos, a Turquia.
Os líderes dos dois países encontraram-se via teleconferência esta terça-feira, para mais uma ronda de conversações, a sexta, descrita pela imprensa que os apoia como tendo lançado as "bases sólidas" para o trabalho futuro e "cooperação" ao mais alto nível.
A concertação entre Teerão e Ancara não é de agora e tem sido apadrinhada pela Rússia, o segundo grande apoio de Assad.
O objetivo inicial do triunvirato seria o controlo da Síria, onde grupos de combatentes sunitas, discretamente apoiados pela Turquia, combatem Assad, um alauíta do ramo moderado do Islão xiita. A respaldar a estratégia, a vontade comum de expulsar os Estados Unidos das questões regionais.
A oposição turca e iraniana a Israel e aos Estados Unidos, o seu apoio comum ao grupo palestiniano Hamas, e a necessidade de manter controladas as populações curdas de ambos os países, revelaram-se entretanto campo fértil ao entendimento noutras frentes.Os líderes de Ancara e de Teerão têm vindo a estreitar laços, apesar de Hassan Rouhani, o Presidente iraniano, ser xiita e Tayyip Erdogan, o Presidente da Turquia, seguir o ramo sunita do Islão, opositor tradicional do xiismo.
Não é difícil imaginar a agenda de terça-feira, apesar de esta não ter sido totalmente revelada, sendo apenas referidas genericamente questões regionais e internacionais, como a pandemia de Covid-19.
O acordo entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, sob a égide americana, deverá estar a dar dores de cabeça a ambos os líderes. A estratégia turca no Mediterrâneo Oriental assim como a pressão que Ancara poderá exercer sobre a União Europeia através da ameaça migratória, e a oportunidade para ambos os países apresentada pela retirada das tropas americanas do Iraque, terão sido outros temas 'quentes'.
A possível aliança israelo-árabe
A Síria, habitualmente o pretexto oficial para as conversações, está praticamente pacificada, com a Turquia a dividir a zona norte do país com tropas russas e sírias, para manter controladas as milícias e populações curdas ali maioritárias. Privados do apoio de Ancara e do seu papel de exército por procuração, os grupos armados extremistas sunitas mantêm-se dormentes.Já o acordo, concertado pela Administração de Donald Trump, entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, e o descongelamento da oposição árabe aos israelitas que ele prenuncia, são uma ameaça muito mais grave, tanto para o Irão como para a Turquia.
Teerão avisou dia oito de setembro os EAU contra a possibilidade de deixarem Israel lançar ataques sobre o Irão a partir do seu território. Só a possibilidade do acordo entre Israel e os EAU abrir a porta a uma possível presença militar israelita em solo dos Emirados é considerada uma ameaça à segurança no Golfo Pérsico.
"Abu Dabi é responsável por isto", afirmou um alto responsável iraniano, e devia denunciar o acordo com a "entidade sionista" [Israel] para evitar novos conflitos. O acordo tem sido descrito como uma "traição" por Hassan Rouhani e o alto responsável deixou um apelo ao príncipe herdeiro dos Emirados, Mohammed Bin Zayed, para não basear as suas decisões políticas em "ilusões".
No mesmo dia, a televisão estatal do Irão anunciou que a central de centrifugação de urânio de Natanz, destruída a dois de julho de 2020 num incidente ainda por explicar, iria ser substituída, de acordo com o responsável pela agência atómica iraniana. "Sobre a ação maldosa de sabotagem levada a cabo, foi decidido estabelecer uma sala de centrifugação maior, mais moderna e mais abrangente, no seio das montanhas perto de Natanz", anunciou Ali Akbar Salehi, citado na reportagem da tv iraniana.
Nem Israel nem os EUA reagiram ainda oficialmente ao anúncio iraniano.
A Administração Trump denunciou o acordo de 2015 negociado pela comunidade internacional para por fim ao programa nuclear de Teerão, acusando o regime de violar os termos acordados e manter em segredo as suas atividades atómicas.
Já Israel acusa os iranianos de estarem a desenvolver armamento nuclear e aponta a ameaça que um regime xiita nuclear representaria, para si e para os países sunitas da região.
Num sinal dos tempos, o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, encontrou-se recentemente no Líbano com Hassan Nasrallah, que lidera as milícias xiitas libanesas do Hezbollah, tradicionalmente apoiadas pelo Irão.
As costas da Turquia
Haniyeh tem sido igualmente recebido oficialmente na Turquia, apesar da oposição de Washington. Não se sabe ainda se Ancara, e o seu aliado Qatar, irão apoiar a inclusão do Hezbollah numa eventual aliança com o Irão.
O virar de costas de Erdogan ao Ocidente é cada vez mais evidente, ao procurar na Rússia, no Irão e em grupos extremistas, apoios às suas pretensões de recriação da área de influência do Império Otomano, que não encontra nem na Europa, nem nos Estados Unidos, nem entre os países árabes.
Apesar de ser membro da NATO, Ancara tem ido a Moscovo equipar o seu exército e adotou uma política agressiva no Mediterrâneo Oriental, por oposição a Atenas, a Paris e a Nicosia, pelo controlo da exploração de hidrocarbonetos da área. Tem também tentado controlar a Líbia.Na sua ambição, a Turquia esbarra nos interesses egípcios, israelitas, sauditas e dos Emirados, todos estes apoiados pela Administração Trump.
Sob a ameaça de sanções económicas ocidentais, Turquia e Irão, a par da Rússia, terão tendência a contornar as dificuldades virando-se para a China, a segunda maior potência mundial, que tem visto o seu domínio económico coartado pelo mesmo Presidente norte-americano que se lhes tem oposto, e governada por um regime igualmente ditatorial.
Apesar da velha inimizade sunita-xiita, outros interesses mais altos se estão a levantar. E a cooperação, para já política e económica, poderá em breve assumir um rosto militar.