Turquia e EUA em braço de ferro devido à questão sírio-curda

por Graça Andrade Ramos - RTP
O Presidente da Turquia, Reccep Tayyip Erdogan, a discursar no Parlamento turco diz 08 de janeiro de 2019 Reuters

O Presidente da Turquia, Reccep Tayyip Erdogan, considerou "inaceitável" que, antes de retirar da Síria, Washington exija garantias de proteção às milícias curdas sírias, YPG, suas aliadas no combate ao grupo Estado Islâmico e que Ancara considera tão "terroristas" como qualquer outro grupo.

Em resposta a tais exigências dos EUA, Erdogan disse esta terça-feira que a Turquia está, pelo contrário, pronta para uma nova incursão militar no norte da Síria, para combater os grupos "terroristas" naquela região.

Ancara considera as forças curdas como "terroristas", devido à luta armada daquele povo para recuperar o seu território, o Curdistão, tripartido há 100 anos pela Turquia, Síria e Iraque, após a desagregação do Império Otomano. Na Turquia, a luta armada curda contra o domínio de Ancara é conduzida pelo PKK.

"Muito em breve, iremos agir para neutralizar os grupos terroristas na Síria, e iremos abater outros grupos terroristas que possam tentar impedir-nos de o fazer", afirmou o Presidente turco no Parlamento, perante deputados do seu partido, o AKP, Partido da Justiça e do Desenvolvimento.

"Os preparativos para as nossas operações estão quase todos finalizados", revelou.

Um discurso destinado sobretudo a ouvidos norte-americanos. Domingo, em Israel, o conselheiro de segurança nacional de Donald Trump, John Bolton, afirmara que a retirada militar dos Estados Unidos da Síria só se daria com garantias de Ancara de que as milícias curdas não seriam atacadas.
Desdém turco
Erdogan não gostou do aviso e desdenhou reunir-se com Bolton esta terça-feira de manhã, para debater precisamente a retirada norte-americana. Ao invés, criticou severamente o enviado dos Estados Unidos.

"A mensagem que Bolton deixou em Israel é inaceitável. Não nos é possível engoli-la", barafustou. "John Bolton cometeu um erro grave", atirou ainda na tribuna do Parlamento.

A Turquia irá confrontar as YPG da mesma forma que irá combater o Estado Islâmico, afirmou ainda.

"Para a Turquia, não há diferença entre PKK, YPG, PYD ou Daesh", explicou Erdogan, usando o acrónimo árabe para o grupo armado islamita Estado Islâmico. "Se forem terroristas, faremos o que for necessário, venham eles donde vierem".
Fracasso de Bolton
A visita de John Bolton à Turquia está assim a ser vista com um fracasso e um embaraço para parte dos responsáveis da Administração Trump.

Estes têm estado a tentar fazer marcha atrás em parte do anúncio da retirada americana da Síria com que o Presidente Donald Trump surpreendeu o mundo em dezembro de 2018.
Os EUA apoiam as Forças Democráticas Sírias (FDS) no terreno, um grupo que une árabes e cristãos sírios liderados pelas forças curdos, numa ofensiva contra o Estado Islâmico no leste da Síria na fronteira com o Iraque.
Contrariando a promessa inicial de Trump, de que a retirada seria "rápida", os principais responsáveis vêm agora dizer que ela terá de ser "lenta" e coordenada". Até Trump disse segunda-feira que as suas tropas sairão da Síria de forma "prudente" e "ao ritmo adequado".

Em Ancara, John Bolton reuniu-se apenas com o porta-voz da presidência turca, İbrahim Kalın, e nem sequer o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia enviou um representante.

O conselheiro de Trump terá aproveitado aliás a reunião com Kalin para repetir o que disse em Israel, que os Estados Unidos se irão opor a quaisquer abusos infligidos aos seus aliados curdos na Síria, que treinaram e armaram para enfrentar o Estado Islâmico.

De acordo com o seu gabinete, Bolton afirmou depois não se sentir desdenhado por Erdogan na sua visita à Turquia, já que os planos de conversações entre ambos não haviam sido confirmados.

Um porta-voz do Pentágono afirmou entretanto que as forças da coligação anti-jihadista, sob comando americano, continuavam a dar assistência "aos parceiros sírios, com apoio aéreo e bombardeamentos de artilharia no vale do Eufrates".
Exigências de Ancara
No encontro entre Kalin e Bolton participaram somente o general Joseph Dunford, chefe de Estado Maior das Forças Armadas norte-americanas, e o enviado especial para a Síria, James Jeffrey.

Apesar de tudo, Kalin pareceu satisfeito com o resultado da reunião de cerca de duas horas.

"Estamos satisfeitos com a decisão do Presidente Trump de retirar da Síria", afirmou aos repórteres.

"Só que ela necessita de ser clarificada, quanto ao tipo de estruturas que serão deixadas para trás, o que irá suceder às armas pesadas que foram colocadas no terreno, qual o destino das bases militares americanas e dos centros de logística", referiu.

A Turquia pretende que os EUA entreguem as suas 16 bases na Síria quando retirar as cerca de duas mil tropas ali estacionadas, e que recolham o armamento distribuído às YPG, precisou Kalin, sublinhando que foi informado pelas autoridades norte-americanas de que estavam já a trabalhar na questão das armas.
Turquia em vez dos EUA
As garantias não serão suficientes, já que o porta-voz de Erdogan avisou que Ancara quer saber como e quando irão os EUA "terminar" as suas relações com as YPG na Síria.

"Dizer 'a Turquia irá massacrar os curdos se entrar na Síria', não passa de propaganda do PKK e os Estados Unidos deviam evitar tais comentários", recomendou.

Kalin revelou também que entregou aos americanos dois dossiers, um com informações sobre as políticas turcas para "abraçar os irmãos curdos" na região, e outro sobre os "crimes" cometidos pelas YPG na Síria e alegadas violações dos direitos humanos cometidas pelos seus elementos.

Num artigo de opinião publicado segunda-feira, pelo jornal norte-americano Sunday Times, o Presidente Erdogan assumiu que a Turquia irá preencher o vazio deixado pelos Estados Unidos na Síria.

A retirada dos EUA, escreveu, "deve ser planeada cuidadosamente e decorrer em cooperação com os parceiros certos para proteger os interesses dos Estados Unidos, da comunidade internacional e do povo sírio. A Turquia, que detém o segundo maior exército da NATO, é o único país com o poder e compromisso para realizar tal tarefa."
Périplo de Pompeo
A Administração norte-americana tem ainda o chefe da sua diplomacia, Mike Pompeo, numa série de visitas aos seis países do Conselho de Cooperação do Golfo, Egipto, Bahrein, Abu Dabi, Qatar, Arábia Saudita, Omã e Koweit. Uma visita a Bagdade não está confirmada.

O Secretário de Estado esteve já esta terça-feira em Amã, capital da Jordânia e um dos principais aliados dos EUA na região no combate contra os jihadistas, grupos armados radicais islamitas, e contra o Irão.De acordo com analistas, Washington espera conseguir formar no Médio Oriente uma aliança de vários países, para combater o radicalismo islâmico e o regime xiita de Teerão, rival regional da monarquia saudita.

"As ameaças mais sérias que pairam sobre a região são o Daesh e a Revolução Islâmica", afirmou Pompeo em conferência de imprensa ao lado do seu homólogo jordano, Aymane Safadi.

"A coligação para contrariar a revolução iraniana é hoje tão eficaz como ontem, e espero realmente que continue a sê-lo, e até se reforce, amanhã", referiu.

Pompeo prometeu que "a decisão do Presidente de retirar os nossos rapazes da Síria não terá quaisquer consequências sobre a nossa capacidade de o conseguir. Nos próximos dias e semanas, iremos reforçar os esforços diplomáticos e comerciais para pressionar verdadeiramente o Irão".

Já sobre a proteção das milícias curdas da Síria e as ameaças turcas, Pompeo nada disse.
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