Traidores. Os colaboracionistas pró-russos que Kiev quer ver mortos a todo o custo

por RTP
Volodymyr Saldo, "Colaborador" ucraniano, nomeado Governador de Kherson por Moscovo Pravda

Enquanto as armas soam destruindo edifícios e estradas, uma outra guerra desenrola-se na Ucrânia longe das câmaras de televisão. É a luta contra os ucranianos que colaboram com os russos, que facilitaram a invasão ou que assumiram cargos nas regiões ocupadas.

A 10 de junho os procuradores ucranianos afirmaram ter na mira 480 destes “traidores” condenados in absentia por crimes tão diversos como a denúncia de ativistas pró-Kiev, a entrega às forças russas de aldeias, vilas, cidades e até distritos, a denúncia da localização de tropas ucranianas e de arsenais e até mesmo de coordenar fogo de artilharia.

Longe de estarem seguros nas áreas dominadas pelas forças russas, estes homens são alvos preferenciais dos serviços ucranianos de informação. Segundo fontes oficiais ucranianas, pelo menos cinco destes colaboradores foram executados em explosões, dos seus veículos ou dos seus apartamentos, ou abatidos a tiro. Três outros ficaram feridos.

Um dos executados foi Dmitry Savluchenko, nomeado pela Rússia para o Departamento das Famílias, Juventude e Desporto de Kherson. A 20 de março, dois homens de negro não identificados abateram o seu assistente, Vladimir Slobodchikov no seu mercedes branco. Um mês depois, Valerii Kuleshov, que estava a organizar uma polícia pró-russa em Kherson, foi executado a tiro perto de uma lixeira.

Outros incidentes semelhantes têm ocorrido noutras áreas da Ucrânia ocupada pela Rússia. “Ele colaborava com orcs afirmou Anton Herashchenko, adido do ministro da Administração Interna da Ucrânia, na rede Telegram, a propósito de Kuleshov e usando um termo depreciativo aplicado aos invasores russos.
Pouco recomendáveis
Estas mortes criam sérias dificuldades aos ocupantes, já que os colaboradores confiáveis nas áreas leste da Ucrânia não abundam. O seu número tem mesmo vindo a diminuir desde 2014, o ano da anexação da Crimeia e da guerra separatista em Donetsk e Luhansk. “Há um défice de funcionários qualificados e a Rússia tem tido de trazer cidadãos russos todos os anos, a cada rotação de funcionários”, afirmou o analista Ihar Tyshkevich à Al Jazeera.

O perfil dos líderes dos separatistas está ainda longe de ser perfeito enquanto administradores. O atual líder da chamada “República Popular” de Donetsk, Denis Pushilin, tem 41 anos e, se o seu curriculum oficial o indica como funcionário de uma empresa de confeção, sabe-se que liderava um esquema Ponzi na região.

O seu predecessor, Pavel Gubarev, era um entusiasta de boxe que se orgulhava do seu passado enquanto membro do movimento russo abertamente pró-nazi Unidade Nacional da Rússia, cujos membros cometeram centenas de crimes de ódio.

Este ano, o número dos que se juntaram à Rússia foi tão baixo que os colaboradores puderam aspirar a lugares para os quais não têm qualquer preparação.

“A Rússia tem aqui um problema, não consegue formar administrações civis nos territórios ocupados”, afirmou Tyshkevich.
Saldo, o "colaborador"
Uma das raras exceções à mediocridade chama-se Volodymyr Saldo. Empresário de sucesso da construção civil e ex-presidente da câmara de Kherson, Saldo sempre negou colaborar com a Rússia, tendo mesmo acusado em 2016 um ex-sócio, Igor Pashchenko, de o ter raptado e torturado na República Dominicana para obter um resgate avultado e para engendrar uma “confissão” de colaboração com Moscovo. Libertado, Saldo garantia em março de 2017 à agência Interfax ter “planos interessantes para Kherson e o futuro da cidade”. Um ano depois era tido como o mandante da execução de Pashchenko com dois tiros na cabeça.

Significativamente, em março último, Moscovo ocupou Kherson e nomeou Saldo como governador da região, considerada a líder ucraniana na produção de fruta e de cereais.

O Pravda ucraniano não tem dúvidas em identificá-lo como "colaborador" em letras garrafais no título de uma entrevista de Saldo à agência russa Tass, em maio, na qual ele afirmava não existirem planos para ligar Kherson à Crimeia.

A vida de Saldo não tem contudo sido fácil, tendo já escapado a alguns atentados. Segunda-feira, a Autoridade Administrativa de Kherson, nomeada pela Rússia, afirmou que um engenho explosivo tinha sido removido numa estrada que Saldo ia percorrer.

“Os terroristas ucranianos estão a tentar impedir a concretização de uma vida pacífica na região de Kherson, acusou na rede Telegram, num sinal de tempos vindouros.

Atualmente, Saldo movimenta-se “armado e rodeado de guarda-costas”, afirmou à Al Jazeera um habitante de Kherson. E em qualquer altura os seus senhores em Moscovo poderão tirar-lhe o tapete.

O governador tem ainda de trabalhar com o seu vice, Kirill Stremousov, um blogger comunista que acredita em teorias de conspiração esotéricas.
Reconhecimento 'à russa'
Noutro exemplo da dificuldade de os russos encontrarem colaboradores capazes, em Zaporizhia um dos principais “responsáveis” nomeados pela Rússia é Yevgeny Balitsky, um ex-membro de um partido pró-russo que nunca teve qualquer cargo de monta. “Não sabe roubar nem consegue ficar de guarda”, escreveu sarcasticamente Alexander Kochetkov, um analista político que conheceu Balitsky, citando um provérbio que caracteriza pessoas inúteis.

A Rússia também não se mostra sempre muito reconhecida com os seus colaboradores.

O presidente da câmara de Kupiansk, na região de Kharhiv, entregou a cidade aos invasores a 27 de fevereiro, tornando-se o primeiro cooperante oficial. Na passada quinta-feira os russos prenderam-no, sem revelar as acusações.

“Isto é sistemático por parte dos ocupantes. Primeiro, usam os traidores e os seus recursos e depois removem-nos”, afirmou na televisão o governador de Kharkiv, Oleh Synehubov.

Este padrão comportamental foi notório depois das revoltas separatistas em 2014. Se na Crimeia a transição foi suave, com a maioria dos responsáveis administrativos a aceitarem pacificamente a anexação por parte de Moscovo – quem recusava era preso – em Donetsk e Luhansk a realidade foi outra.

Gennady Tsyplakov, um “primeiro-ministro” da auto-proclamada “República Popular” de Luhansk, foi deposto e alegadamente “suicidou-se” num centro de detenção provisória em setembro de 2016, acusado de tentativa de golpe de Estado.

Três semanas depois, um senhor da guerra russo, Arsen Pavlov, alcunhado Motorola, morreu na explosão de um elevador no seu bloco de apartamentos em Donetsk. Um separatista afirmou que Pavlov foi morto pelos rebeldes, enquanto estes apontavam o dedo aos serviços de informações ucranianos.
Um perfil quase infalível
O triste destino provável de um colaboracionista, além de fervor patriótico, poderá explicar a falta de interessados no cargo, apesar da pressão até por parte de familiares.

Mykola Akhbash, agente da polícia da parte de Donetsk controlada pela Ucrânia, afirmou à Al Jazeera que um primo se passou para os separatistas e tentou depois aliciá-lo. “Eu disse-lhe onde se podia enfiar”, contou.

Em 25 de fevereiro, Akhbash fugiu da sua aldeia de Yalta nos arredores de Mariupol. Os que ficaram para trás, garante, foram presos e torturados pelos ocupantes para os “convencerem” a trocar de lado. Se algum cedeu, não se inclui por enquanto no grupo que os procuradores de Kiev estão a acusar.

Estes são na sua maioria oriundos daq zona entre Kherson a Kharkiv e partilham currículos tão semelhantes que já se tornaram imagem de marca política. Passaram obrigatoriamente por executivos ucranianos no passado, têm ligações e interesses empresariais locais e um historial de desentendimentos com o Governo central.

O retrato foi feito por Aleksey Kushch, um analista baseado em Kiev, à Al Jazeera. Outros traços incluem “posições pró-russas ou jogos nesta arena apolítica, conexões criminais e um amor ao dinheiro e ao poder que o atual sistema de coordenadas não satisfaz”.

A esmagadora maioria dos colaboracionistas foram membros de partidos pró-Rússia ilegalizados durante a guerra ou suspeitos de ligações a interesses russos. Quase todos pertenceram ao Partido das Regiões, o grande peso político pro-Kremlin da Ucrânia, cujo líder, Viktor Yanukovych, fugiu para a Rússia em 2014, depois de meses de protestos e de manifestações em Kiev.

A exceção confirma a regra e alguns colaboracionistas são oriundos do campo político do atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o Servidor do Povo, fundado à pressa depois da surpreendente vitória nas eleições presidenciais de 2019. ´
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