O recurso à mão-de-obra infantil aumentou nas fazendas de cacau do Gana e da Costa do Marfim na última década, apesar das promessas da indústria do chocolate para aboli-lo. As conclusões foram divulgadas num relatório na segunda-feira, que refere que ainda há crianças com apenas cinco anos sujeitas a trabalhos perigosos nos principais países produtores de cacau.
O relatório indica que a proporção de "crianças envolvidas em trabalho infantil perigoso na produção de cacau na Costa do Marfim e nas regiões de cultivo de cacau do Gana aumentou 13 pontos percentuais num período de 10 anos (de 2008 a 2018)".
Estima-se que 1,5 milhões de crianças trabalhem na produção de cacau em todo o mundo, metade das quais se encontram nestas duas regiões da África Ocidental.
Encomendado pelo Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, este estudo refere ainda que o aumento da exploração de mão-de-obra infantil neste setor "coincide com um crescimento de 62 por cento da produção de cacau nestes dois países".
"Para as crianças que vivem em famílias agrícolas, o trabalho infantil perigoso na produção de cacau inclui o uso de ferramentas afiadas, atividades de limpeza de terras, trabalho por longas horas ou à noite e exposição a produtos agroquímicos", esclarecem os autores do relatório.
Empresas como a Mars e a Nestlé comprometeram-se a abolir trabalho infantil
Os níveis de trabalho infantil foram mais altos do que em 2010, quando empresas como a Mars, a Hershey, a Nestlé e a Cargill concordaram em reduzir as piores formas de trabalho infantil nos setores de cacau do Gana e da Costa do Marfim em 70 por cento até 2020.
Os resultados deste relatório levantam questões difíceis para a indústria do chocolate em particular. Os dois países produtores de cacau questionaram já a metodologia utilizada nesta investigação. Em 2001, as grandes da indústria do chocolate assinaram um acordo intersectorial com o objetivo de eliminar o trabalho infantil. Apesar de não terem cumprido os prazos para cumprir as promessas em 2005, 2008 e 2010, continuam a insistir que o fim desta prática ilegal continua a ser a sua principal preocupação.
De facto, segundo o relatório, "enquanto a produção de cacau aumentou 14 por cento nos dois países entre 2013 e 2018, os investigadores não encontraram nenhum aumento estatisticamente significativo no trabalho infantil perigoso em cada país".
O relatório mostra "que a tendência destes cinco anos pode indicar o efeito das intervenções destinadas a reduzir o trabalho infantil perigoso, como construção de escolas, educação e o ensino vocacional, a prestação de serviços de subsistência e campanhas de consciencialização".
"Apesar dos esforços feitos pelos governos, pela indústria e outras partes interessadas no combate ao trabalho infantil e ao trabalho infantil perigoso durante os últimos 10 anos, as taxas de prevalência de trabalho infantil e trabalho infantil perigoso não diminuíram", lê-se ainda no relatório.
"À medida que a produção geral de cacau aumentou dramaticamente, o cultivo do cacau espalhou-se por regiões da Costa do Marfim e do Gana, onde as infraestruturas para monitorizar o trabalho infantil são fracas e a consciência das leis que o regulam é baixa", disse Kareem Kysia, diretor de pesquisa sobre Populações Vulneráveis da NORC (National Opinion Research Center) da Universidade de Chicago e um dos principais autores do relatório.
"As intervenções para conter o trabalho infantil perigoso no setor do cacau devem ter como alvo áreas de produção novas e emergentes e devem concentrar os esforços em reduzir a exposição às partes componentes do trabalho infantil perigoso".
Em resposta às conclusões do relatório, a gigante norte-americana do chocolate Mars afirmou, num comunicado, que não devia haver trabalho infantil na produção de cacau. A empresa refere ainda que se comprometeu a contribuir com mil milhões de dólares numa estratégia de abastecimento responsável e apelou a que fosse criada uma legislação para abordar as questões sobre o trabalho infantil nas fazendas de cacau da África Ocidental.
Charity Ryerson, fundadora do grupo de campanha dos EUA Corporate Accountability Lab, afirmou ao Guardian que há um sentimento generalizado de que a indústria de chocolate é culpada por uma "hipocrisia alucinante". E que, "se quiser, pode acabar com o trabalho infantil amanhã".
"Nos últimos 20 anos, a indústria do cacau investiu grande habilidade e recursos em relações públicas em torno da sustentabilidade, mas o aumento do trabalho infantil demonstra que falhou totalmente nessa mesma experiência e investimento para criar sustentabilidade real".
A verdade é que a maioria das empresas que compram o cacau negam as acusações do relatório, argumentando que o problema é complexo e não é facilmente resolvido.
O presidente da WCF (World Cocoa Foundation), Richard Scobey, considera que o relatório mostrou que o trabalho infantil continua a ser um desafio persistente, mas que os programas do governo e das empresas para reduzi-lo estão a fazer a diferença.
"As metas para reduzir o trabalho infantil foram definidas sem a compreensão total da complexidade e escala de um desafio fortemente associado à pobreza na África rural e sem antecipar o aumento significativo na produção de cacau na última década", acrescentou num comunicado.
O governo do Gana questionou, entretanto, a fiabilidade dos números que revelam a prevalência de crianças a trabalhar ilegalmente e em trabalhos perigosos.
"Isto levanta dúvidas sobre a fiabilidade das conclusões para qualquer formulação e implementação de políticas significativas", disse o Ministério do Emprego e das Relações de Trabalho do Gana.
Por sua vez, a Costa do Marfim acolheu os resultados revistos, tendo ambos os países reiterado o compromisso com a erradicação do trabalho infantil na exploração do cacau.
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