O que têm em comum Felani Khatun, Alan Kurdi, Óscar Martínez e Valeria Martínez? As mortes dramáticas destes quatro migrantes - às portas de um outro país ou continente que tentava impedir a sua entrada – captaram a atenção mundial e despertaram a reflexão sobre os muros e as fronteiras que erguemos.
Atualmente, são pelo menos 65 os países que contam com algum tipo de muro de separação física entre si. Esse foi o ponto de partida para o novo livro de Tim Marshall, “A Era dos Muros” (edições Saída de Emergência), publicado em Portugal este mês de julho, para abordar algumas das fronteiras mais faladas do mundo, mas também as que mais escapam ao olhar mediático.
Tim Marshall, ex-jornalista de publicações e televisões como a BBC, Sky News ou o jornal The Guardian,
cobriu enquanto repórter várias situações de conflito e aproveita muita
dessa experiência na análise geopolítica destas barreiras que é
desenvolvida.
No ano em que se completam os 30 anos após a queda do Muro de Berlim, o autor argumenta que a Europa voltou a ser um continente de muros, apesar das visões mais otimistas sobre o futuro que vigoraram no pós-Guerra Fria.
No livro, o autor não menciona apenas as barreiras físicas. Fala também das barreiras virtuais, das barreiras imaginárias e mesmo das divisões profundas que existem no interior das sociedades, como a norte-americana, a chinesa ou a indiana.
Independentemente do tipo de muros a que nos referimos, Tim Marshall considera que será difícil de deixarmos de os construir. Em entrevista à RTP/Antena 1, o autor diz que os muros oferecem algum tipo de proteção e que evitam a desordem, ainda que possam parecer injustos de outros pontos de vista. Afinal, argumenta, a necessidade de demarcação perante o outro é algo inerente ao ser humano há vários séculos.
Entrevista emitida no programa Visão Global (28 de julho de 2019)
Resposta: Temo que seja uma questão de natureza humana. Temos tentado aprender, ao longo dos séculos, como viver juntos em comunidade, mas as dificuldades da vida atravessam-se no caminho. E enquanto assim for, penso que estamos destinados a continuar a construir muros.
Quanto à onda de otimismo depois de 1989: acho que esse otimismo ainda permanece, pelo menos na Europa. Mas acho que foi um erro, sobretudo por parte dos intelectuais, cometido após a queda do comunismo. O sonho sobre “o Fim da História” e de um futuro liberal foi uma visão naïve.
A génese da ideia surgiu com a seguinte estatística: existem 65 países que têm este tipo de muros e de barreiras. Isso é um terço de todos os países no mundo. Mas quando se pensa nisto, há algo de muito óbvio nestas realidades: as fronteiras físicas só surgem devido às barreiras que temos na nossa mente. Elas são uma manifestação dessas ansiedades que transportamos nas nossas mentes, e é por isso que as construímos.
Por isso, para tornar o livro um pouco mais completo, não devia falar apenas dos muros físicos, mas devia também olhar para outras divisões que existem e que criam o tipo de raciocínio que leva à construção de muros.
Falando agora de casos concretos. A grande muralha da China é, hoje em dia, digital, com uma internet diferente, separada do resto do mundo. Quanto mais tempo é que a China pode aguentar esta situação? Ou, por oposição, acha que no futuro a tendência vai ser cada país ou região a terem a sua própria forma de internet?
Acho que alguns países sentir-se-ão tentados a seguir o mesmo caminho dos chineses. Para ser honesto, não acho que a liderança e o modelo chinês estejam em perigo. No livro, defendo que o Governo chinês está, de forma a manter o povo unido, a separá-los. Separam-nos do resto do mundo e depois dividem-se uns aos outros, através das redes sociais ou das firewalls. Mas fazem-no porque acreditam que pode haver apenas uma ideia na China e essa ideia é de que o Partido Comunista tem o poder.
É um plano orwelliano e parece contraproducente, mas penso realmente que eles dividem os chineses de forma a assegurar que os mantêm unidos.
Por exemplo, a Rússia e a China estão a prestar muita atenção à questão da liberdade de informação e redes sociais. Ainda na semana passada, os chineses enviaram uma delegação à Rússia, para mostrar como é que eles controlam este tipo de situação.
Acho que os russos estão muito interessados no modelo chinês de manter todos os servidores dentro das fronteiras, permitindo-lhes, a qualquer altura que desejem, cortar qualquer tipo de contacto com o mundo exterior, caso não queiram, por exemplo, que haja pessoas a saberem o que se passa na Rússia, ou impedir que alguns russos saibam o que se passa lá fora.
Acho que, por enquanto, cada um dos Estados modernos luta para se adaptar às novas tecnologias. Passaram apenas 20 anos, a Internet tem sido uma ferramenta maciça. E muitos Estados estão por de trás da tecnologia nos seus sistemas legais. Enquanto tentam impor leis, haverá maior tentação de impor mais censura.
Claro que grande parte dos países não irá tão longe quanto a China, mas acho que muitos países autoritários vão aprender importantes lições ensinadas pela China.
Sim. Os Estados Unidos vão deixar de ser um país de maioria branca dentro de 20 anos. Não há forma de parar isso e nem eu estou a argumentar que seria bom impedir isso. Mas existe uma secção da sociedade norte-americana, mais conservadora, cuja visão da América é a de um país de brancos falantes de inglês.
O génio de Trump, a genialidade e o instinto de Trump, foi perceber isso e cavalgar essa iddeia. Ele sabe que este sentimento existe e jogou com ele, estado a estado, até chegar à Casa Branca, e vai continuar a fazer o mesmo para se manter no poder.
A preocupação do norte-americano com o “outro” não é realmente muito diferente do que vemos em qualquer outro país. Acho que o “muro” de Donald Trump recebe demasiada atenção.
Há outros muros que não estão a ser falados, por exemplo a grande vedação de arame farpado que existe entre a Índia e o Bangladesh. Ali, passa-se exatamente o mesmo: os indianos estão preocupados com questões raciais, linguísticas, culturais e religiosas, nomeadamente no estado de Assam, da mesma maneira que alguns norte-americanos, estão preocupados com a sua cultura, com os seus empregos. Isto não muda muito quando se olha para outros casos. Os norte-americanos não são melhores nem piores que ninguém.
Não estou certo de que isso se possa resolver. Acho que devemos tentar, é certo. Temos as capacidades necessárias, mas fazer isso requer vontade de o fazer. Aí é que as coisas se complicam, porque a verdadeira natureza do problema é muito cruel.
Na Índia, eles poderiam deitar abaixo a vedação e deixar entrar as pessoas. Mas eles não vão fazê-lo. O sistema democrático indiano elegeu [Narendra] Modi como primeiro-ministro, um desses homens fortes que há pelo mundo e que tem como política, apoiada pela maioria da população na Índia, não permitir que os migrantes do Bangladesh entrem, não legalizar os que chegam e reforçar a vedação.
Percebo a questão sobre a resolução deste problema, mas é uma questão de quem olha para esta situação na pespetiva de que há ali um problema que tem de ser resolvido, de quem olha para a vedação como uma coisa má.
Na Índia, é provável que a maioria das pessoas olhe para a vedação como algo de positivo. Por isso, para quê resolver algo que é positivo? Esta é uma forma negativa de olhar para a situação. É até triste, mas acho que é a verdade.
E porque é que os indianos não querem migrantes vindos do Bangladesh?
Se olharmos para o estado de Assam, na fronteira do Bangladesh, aquele território recebeu centenas de milhares de migrantes nos últimos 20 anos.
Isso virou do avesso a demografia local, e de forma muito rápida. Chegou, de repente, muita gente com uma religião muito diferente da religião da população local, uma língua diferente e uma nacionalidade diferente. A desconfiança em relação ao outro está na natureza humana,
A História mostra que surgem sempre tensões se tivermos estas movimentações em massa de populações, a um ritmo tao acelerado, Foi sempre assim. Quando há um rápido movimento de pessoas para outra área qualquer, surgem conflitos.
No Médio Oriente, as fronteiras tentam conter a violência. Mas parece que é mais complicado levar a mudança até esta zona, talvez devido à grande influência da religião. Acha que é possível um Médio Oriente em que o Islão não seja a pedra angular da política?
Sim, mas não nas próximas décadas. Os europeus precisaram de vários séculos para reduzirem o poder da Igreja. O poder, a Igreja e a política estavam sempre completamente ligados na Europa até há 150 anos, e em alguns países, até há menos tempo.
Acho que isso ainda vai demorar a acontecer no Médio Oriente, especialmente porque o Islão não diferencia entre o mundo da religião e o mundo da política. Eles estão ligados, para o Islão, enquanto para o Cristianismo, existe o conceito “Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.
O Cristianismo aceita esta divisão entre as áreas da política e da religião, o Islão não. Por isso, não vejo a perda dessa influência a acontecer nas próximas décadas.
No capítulo sobre África, surge a questão das fronteiras que foram deixadas pelos poderes coloniais, uma questão que já estava num outro seu livro, “Prisioneiros da Geografia”. Existe alguma forma de encontrar um equilíbrio entre o passado pré-colonial e a realidade dos Estados-nação, que foram impostos?
O continente africano está a lidar muito bem com essas questões. Perceberam que não deviam tentar mudar as fronteiras coloniais, sabiam que estariam a entrar numa guerra interminável.
Por isso, tentaram construir esses Estados-nação, tentaram criar nas diferentes populações um sentimento de identidade e de pertença a um mesmo Estado-nação. Fizeram isso, mas falta-lhes criar estruturas de poder e graus de autonomia dentro desses Estados-nação, porque há regiões que não tem um sentimento forte de pertença a um Estado-nação.
Veja-se o exemplo da Nigéria. Há uma ou duas regiões na Nigéria em que o sentimento de pertença não é para com o país, mas sim para com a região.
Portanto, a questão é essa: como ir ao encontro das vontades das várias regiões e como criar graus de autonomia, mantendo, ao mesmo tempo, a integridade do Estado-nação? Este é um grande desafio para África.
Felizmente, em várias zonas, a economia começaram a crescer, as tecnologias estão a ajudar a contornar uma série de desvantagens que existiam e podemos ver que várias regiões de África estão a crescer muito rapidamente.
Sendo deliberadamente provocador, eu diria que quando os colonizadores espanhóis se foram embora, houve uma outra forma de colonização, pelos marroquinos. Claro que esta é uma questão muito sensível para eles, que não veem esta questão como uma forma de colonialismo.
No entanto, a História mostra que este local nunca foi liderado pela capital marroquina, que tem uma cultura diferente, que tem uma população que não queria ser controlada por Marrocos…a situação tem todos os traços de colonialismo. E o colonialismo não é algo restrito às nações europeias. Muitas outras regiões sempre tentaram as suas formas de colonialismo.
Esta é um daqueles conflitos do mundo que está completamente esquecido, até porque fica numa área tão remota da qual ninguém quer realmente saber. Os níveis de pobreza e de repressão nesta zona do mundo são algumas das realidades mais desconhecidas do mundo.
A Europa é, novamente, um continente de muros. Podemos derrubar estas barreiras, como fizemos em 1989? Até porque, como é muitas vezes referido, a Europa necessita de migrantes.
A maior parte dos políticos mainstream pensa dessa maneira, acham que precisamos de imigração. Pessoalmente, também acredito que, se a Europa quiser continuar vibrante do ponto de vista económico, precisa que venham mais pessoas.
Mas o problema é: precisamos de quem, quantos e como é que eles chegam?
Não me parece que os nossos políticos estejam a argumentar a favor dessa necessidade de imigrantes de uma forma suficientemente forte e convicta.
Isto vai ter ao mesmo ponto do que estava a dizer antes sobre Assam. Quando chega muita gente de fora, e de forma muito rápida, não serve de nada argumentar com estatísticas e dizer que os imigrandes são só oito por cento, ou o que seja, da população.
Em qualquer região onde a paisagem esteja a mudar muito rapidamente por causa da chegada em massa de estrangeiros, as pessoas não vão ouvir os argumentos lógicos baseados em estatísticas. Ouvem apenas a emoção da sua própria experiência vivida.
Não sei como é que se ultrapassa este problema sem ser com uma melhor comunicação ou com a apresentação de melhores argumentos por parte dos políticos.
Voltando a esta ideia de “quem, quantos e vindos de onde?”. Mesmo as pessoas que acolhem a vinda de migrantes, e que aceitam a ideia de que precisamos desses imigrantes, mesmo essas pessoas não querem uma imigração descontrolada.
Antes de responder, acho que é importante dizer que, no voto pelo Brexit - em que votei a favor da permanência, - as pessoas que votaram pela saída não são, em grande parte, antieuropeias. Não são xenofóbicas para com a Europa, é a União Europeia que é o maior problema.
Acho que há muita gente que está fora do Reino Unido – mesmo dentro do Reino Unido – que não compreende isto. Não quer dizer que as pessoas que votaram a favor do Brexit não gostem da Europa ou dos europeus. Como disse, eu votei pela permanência, mas compreendo algumas pessoas que votaram pelo Brexit.
Neste momento não vejo uma saída, mesmo com este novo primeiro-ministro [Boris Johnson]. Os problemas são exatamente os mesmos dos últimos três anos. Os problemas não mudaram. E a sua força de ação pela personalidade, que foi o que o levou à posição em que está, poderá ajudar na política doméstica, mas não vai ter qualquer influência perante os líderes dos outros 27 países. Eles não querem saber que este tipo tenha uma personalidade extravagante. Isso não altera a situação nem as características do acordo.
Todos os cenários possíveis mantêm-se, mas os três principais são: primeiro, o senhor Johnson, que é um grande comunicador, consegue colocar alguma maquilhagem no acordo e, a nível doméstico, diz: “Vejam o grande trabalho que eu fiz. Foi um triunfo”. O acordo é aprovado e o Reino Unido deixa a União Europeia com praticamente o mesmo acordo que tinhamos antes, mas disfarçado.
O outro cenário é o de um “hard Brexit”, caso este passe no Parlamento. Acredito que ele pretende fazer o que diz, até por razões de política doméstica. Até porque se ele não retirar o Reino Unido da União Europeia estará terminado em termos políticos. Acho que ele não está mesmo a fazer bluff na questão da saída sem acordo.
Um terceiro cenário é o de uma situação de bloqueio do primeiro-ministro pelo Parlamento. É provável que ele tente retirar o Reino Unido da União Europeia sem acordo mas que o Parlamento, de alguma forma, bloqueie essa decisão. Estes são os três grandes cenários, mas não sei o que vai acontecer.
Acho que grande parte da população não quer violência. Mas para que haja violência generalizada, apenas basta que haja um pequeno número de pessoas a agitar o estado atual das coisas, o que não é difícil.
Por exemplo, se houver qualquer forma de uma fronteira rígida [entre a Irlanda e a Irlanda do Norte], há, entre estas pessoas que estão prontas para a violência, muitos que vão querer atacar qualquer tipo de símbolo de fronteira, seja um agente da polícia ou uma câmara de vigilância.
Com essa situação, as populações começariam a ficar nervosas e esse seria o caminho do regresso à violência. Não estou a argumentar que isso vai acontecer, mas estou a dizer que o perigo está lá, se o acordo for pelo caminho errado.
No fim do livro, fala-se de uma ideia de “fronteiras abertas”, em que existe uma completa liberdade de movimento das pessoas. Há hipótese que essa se torne a nossa realidade no futuro? A abertura pode ser importante para fins económicos e comerciais, mas também precisamos das fronteiras para evitar o caos…
Não acho que isso vá acontecer. Já podemos observar o caos, a ruptura na nossa política e a ascensão dos extremos políticos um pouco por toda a Europa, em parte por causa dos movimentos de pessoas. Sem fronteiras, esses extremismos tornar-se-iam ainda mais extremos muito mais rapidamente.
Sei que posso parecer cruel, ou de extrema-direita, quando digo que que precisamos de controlos de fronteira. Mas acho que morreria menos gente dessa forma e que a nossa política tem mais condições para se manter ao centro dessa forma.
Claro que é uma ideia encantadora, não termos fronteiras. O comércio é algo completamente diferente, ninguém tem problemas. É o movimento de pessoas que pode ser problemático. O movimento de pessoas desperta esse sentimento, quase animal, de desconfiança e medo do outro. É algo que nasceu connosco, faz parte de nós, está no nosso código genético.
Fotografias: José Luís Gonzalez, Mukesh Gupta, Daniel Becerril, Petar Kujundzic, Youssef Boudlal, Guglielmo Mangiapane, Clodagh Kilcoyne e Daniel Becerril, Reuters