O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros João Gomes Cravinho, nomeado representante especial da União Europeia para o Sahel, disse hoje à agência Lusa que a Europa é a única capaz de "tomar conta daquela região".
"Trabalho não me vai faltar, e importância estratégica da região para a Europa também não; se não tomarmos conta disto, e mais ninguém vai tomar, porque os Estados Unidos olham para o Sahel como um problema que afeta a Europa, a NATO também não tem instrumentos nem vocação para trabalhar aqui, portanto é a União Europeia que tem de usar os seus instrumentos para gerar uma dinâmica diferente na região", disse o antigo governante.
Em declarações à Lusa no seguimento da sua nomeação como representante da União Europeia para o Sahel, de 1 de dezembro deste ano a agosto de 2026, João Gomes Cravinho afirmou: "O meu trabalho é criar condições para que se possam por em prática algumas das vantagens que temos em termos de ajuda humanitária, cooperação para o desenvolvimento, criação de condições para apoiar as instituições e apoio para formação de forças de segurança, que são alguns dos muitos instrumentos que não estão a ser utilizados porque não se conseguiu encontrar a forma de diálogo e desenvolvimento de sinergias mais adequada para a região".
O Sahel, descrito por Gomes Cravinho como o território "dos vizinhos dos nossos vizinhos", é uma extensa área que atravessa longitudinalmente África, desde o Senegal até à Eritreia, mas o foco da UE vai centrar-se na Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Chade e Níger, sendo que em três deles houve golpes de Estado nos últimos anos (Mali, Burkina Faso e Níger), e deverá também ser dada uma atenção especial aos países da costa atlântica.
Do ponto de vista estratégico, esta região é muito importante para a Europa, não só devido à instabilidade que atravessa, mas também pelos problemas que pode trazer para o `velho Continente`, disse Gomes Cravinho.
"É uma vasta área de instituições fragilíssimas, de quase ausência de governação estatal que propiciou o desenvolvimento de um conjunto de movimentos que estão a tomar conta do território", afirmou, apontando o extremismo islâmico, o crime organizado, o narcotráfico com ligações à América do Sul, o tráfico de seres humanos e armas, que podem ser usadas em atentados terroristas nos países europeus, como causas de preocupação.
O responsável salientou que "tudo isto tem a ver com a Europa", principalmente num contexto em que uma parte destes problemas "é instigada pela Rússia, que percebeu que no flanco sul há uma zona de instabilidade que é muito problemática para a Europa, e está interessada em instigar essa fonte de vulnerabilidades".
O trabalho de Gomes Cravinho será dividido em duas partes: uma componente interna, que será "gerar condições para que os países europeus estejam na mesma linha" face ao que é preciso fazer, e uma vertente externa, que passa por "recriar a plataforma de diálogo que está rompido com pelo menos três países da região, e relançar as sinergias com a Mauritânia e o Chade, com os países do golfo da Guiné, com a União Africana e a entidade regional, a CEDEAO [Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental]".
É preciso, concluiu, refazer a estratégia de relacionamento da UE com o Sahel, já que Bruxelas "desenvolveu sem particular sucesso várias abordagens, entre as quais a atual, de 2021 a 2025, que está completamente desatualizada, desde logo pelos três golpes de Estado e pela saída da missão de formação de forças armadas no Mali a pedido dos novos governantes".
Questionado sobre o papel da França na região, Gomes Cravinho disse que este país terá sempre um papel especial, mas alertou que a posição francesa não deve confundir-se com a posição global da UE e tem de mudar.
"A França vai ser sempre um país de referência para esta região francófona, não pode é ser da mesma maneira que no passado; todos percebem que tem de haver uma mudança grande na abordagem francesa, mas na região também não devem imaginar que cortando relações com a França tudo vai melhorar, até porque há evidência em contrário: no Mali há mais terrorismo e no Burkina Faso boa parte do território não é controlado pelo Estado, e isso não se deve à França", concluiu.