Suécia. Relatório denuncia "deficiências graves" nos cuidados em lares a diagnósticos Covid-19

por Graça Andrade Ramos - RTP
Mulher idosa nas ruas de Estocolmo, Suécia, em 20 de abril de 2020 Reuters

Praticamente metade dos quase sete mil óbitos por Covid-19 registados na Suécia, desde o início da pandemia, deu-se em casas de repouso e em lares de idosos. Um relatório oficial recente revela que só seis por cento destes foram examinados por um médico. E um quinto nem sequer foi examinado antes de ser colocado sob cuidados paliativos.

O documento reconhece as dificuldades de providenciar cuidados durante uma pandemia, mas afirma que os níveis encontrados foram ainda assim demasiado baixos.

Foram encontradas "deficiências graves" no cuidado dos idosos, conclui o relatório publicado na semana passada pelos Serviços de Fiscalização do Sistema Social e de Saúde suecos, IVO.

A primeira morte com Covid-19 registou-se a 11 de março, na Suécia. A 24 de novembro 2020, quando estavam contabilizadas 6.555 mortes, as estatísticas mostravam que 2.730 destes falecidos tinham entre 80 e 90 anos.

O caso de Jan Gluckman é paradigmático do que os IVO encontraram uma e outra vez, ao longo de meses de investigação.

Aos 83 anos e a sofrer de demência, foi diagnosticado com Covid-19 a 17 de abril, depois de, dez dias antes, começar a mostrar sintomas gripais e febre.

Uma enfermeira do lar de Berga, em Estocolmo, onde ele se encontrava, contactou então Helen Gluckman, a filha de Jan. Este já não tinha muitos dias de vida e era recomendado colocá-lo sob cuidados paliativos, comunicou a enfermeira. Helen, de 55 anos, anuiu e Jan Gluckman foi colocado sob morfina. Morreu uma semana depois.

Só um mês após o falecimento é que Helen se apercebeu que a ordem de colocação de Jan sob cuidados paliativos foi dada por um médico que nem sequer o observou. O médico tomou a decisão depois de falar ao telefone com uma enfermeira do lar e apesar de Jan estar na altura a mostrar sinais de melhorias.

Helen só concordou com a sedação do pai e o restante tratamento porque "não queria que o pai sofresse". Agora, acredita que ele poderia ter sido salvo, afirmou numa entrevista à agência Reuters, a quem cedeu o relatório médico dos últimos dias de Jan.

Nele, uma enfermeira notou, após dia 17, que o seu paciente estava a comer muito pouco mas que a febre estava a descer e que ele respirava normalmente. Mais tarde nesse mesmo dia uma nova nota refere que um médico prescreveu os cuidados paliativos, com um cocktail habitual previsto para casos terminais, incluindo morfina e um sedativo. Na Suécia, o cuidado pelos mais velhos é da responsabilidade das 21 regiões em que o país se divide. A Região de Estocolmo recusou comentar o caso Gluckman ou a situação geral na capital.

Contactado, o grupo médico Familjelakarna, responsável pelos médicos que servem o lar de Berga, onde Gluckman morreu, recusou comentar casos específicos. E não respondeu a questões sobre a administração de cuidados paliativos a pacientes sem um exame presencial realizado por um médico.

O grupo providencia serviços médicos a 70 casas de repouso e lares de Estocolmo, a capital sueca.
Um "enorme escândalo"
Sakarias Mardh, diretor executivo da Ansvar och Omsorg, responsável pelo lar de Berga, garantiu que ali os cuidados paliativos só são administrados por ordem de um médico. Desde o início da pandemia, esta instituição perdeu 23 pacientes para a pandemia, mas não registou mais nenhum caso desde maio, garantiu Mardh.

Mardh reconheceu que o relatório dos IVO não dá uma boa imagem das autoridades regionais e dos prestadores de cuidados médicos.

"A situação não é boa, obviamente. O relatório dos IVO prova que isto não foi bem gerido", afirmou à Reuters.

"É um enorme escândalo e muito anti-ético", reagiu Yngve Gustafson, professor de cuidados geriátricos na Universidade de Umea, crítico de longa data da forma como a Suécia tratou os mais idosos durante a primeira vaga da pandemia de Covid-19.

O documento dos IVO resulta de meses de investigações aos cuidados em casas de saúde, depois de uma torrente de queixas de familiares e de funcionários. Os IVO sublinharam que nenhuma das regiões assumiu em grau "suficiente" responsabilidades pelo tratamento dado aos pacientes que faleceram com Covid-19."As pessoas não receberam a avaliação individual a que têm legalmente direito e as críticas dos IVO são muito graves", reconheceu o primeiro ministro Stefan Lofven, em conferência de imprensa na semana passada.

A Suécia foi um dos países mais estudados durante a primeira vaga da pandemia devido à leveza das suas restrições, que não incluíram nem confinamento nem o uso de máscara, para avaliar se poderia ser um modelo a seguir de forma a evitar o impacto económico da Covid-19 registado na maioria dos países.

A taxa de óbitos na Suécia é muito mais elevada do que entre os seus vizinhos nórdicos, apesar de inferior a alguns outros países na proporção da população.

O país está a enfrentar uma segunda vaga muito mais severa do que a da primavera e cujo pico só deverá registar-se dentro de duas semanas. O número de mortes aumentou de novo em flecha e o número de pacientes infetados nos lares está aos níveis registados em março, abril e maio.

Nos últimos cinco dias, o país reportou mais 17.629 novos casos de infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2 e 117 óbitos com Covid-19. Desde o início da pandemia a Suécia contabilizou 266.158 casos e 6.972 mortes. A região de Estocolmo tem quase o dobro de casos e de óbitos dos da segunda região mais afetada, de Västra Götaland.

Helen Gluckman visitou Jan duas vezes na última semana de vida deste, já que a lei sueca permite estas visitas em estados terminais. "Em retrospetiva, se eu soubesse na altura o que soube um mês depois, teria dito só por cima do meu cadáver. É incrivelmente trágico", afirmou à Reuters.

O escândalo está a abalar a confiança dos suecos no sistema e a segunda vaga só vem agravar o medo do futuro.

"Não tenho a certeza se aprendemos alguma coisa", disse Helen Gluckman. "Infelizmente, perdi completamente a confiança nos nossos políticos".
PUB