Somália agrava ameaças contra Etiópia devido a acordo com Somalilândia de acesso ao Mar Vermelho

por Graça Andrade Ramos - RTP
Presidente da Somália, Hassan Sheikh Mohamud, fala ao Parlamento em Mogadíscio a 7 de janeiro de 2024 Feisal Omar - Reuters

Várias fontes em redes sociais acusaram esta sexta-feira o presidente da Somália de ter afirmado que "o governo da Etiópia é nosso inimigo". "Sempre os vencemos e voltaremos a derrota-los", terá acrescentado Hassan Sheik Mohamud, ao discursar numa mesquita de Mogadíscio, a capital somali, depois das orações.

Apesar do discurso não ter sido confirmado até agora por nenhuma agência internacional credível, as denúncias da ameaça são por si mesmas um sinal da tensão crescente entre os dois países vizinhos, depois de, no passado dia 1 de janeiro, a Etiópia ter assinado com a República da Somalilândia um Memorando de Entendimento, MoU, para a construção de uma base naval.

A base daria a Addis Abeba acesso comercial e militar ao Golfo de Aden e ao Mar Vermelho, em troca do reconhecimento das pretensões independentistas da Somalilândia. Fonte do governo etíope revelou que a Somalilândia passaria a deter também uma quota, não especificada, das Linhas Aéreas Etíopes, estatais.

Antigo protetorado britânico, a República da Somalilândia declarou a independência em 1991, acto não reconhecido internacionalmente. A Somália, que reclama a Somalilândia como parte integrante do seu território, considerou o MoU um ato de agressão e prometeu defender a sua soberania, mesmo se a região funciona de facto como um Estado autónomo há 30 anos.

Hassan Sheik foi acusado de ter afirmado ainda, esta sexta-feira, que o MoU não passa de um acordo no papel, para já, tendo contudo deixado avisos caso a Etiópia tente concretizá-lo.
O presidente somali terá mesmo apelado à mobilização de todos os somali, incluindo os da diáspora e as milícias que lutaram contra os radicais islâmicos do grupo Al Shabaab. Quinta-feira à tarde, milhares de pessoas participaram na capital em gigantescas manifestações contra o acordo entre a Etiópia e a Somalilândia.
Braço de ferro
As duas nações do Corno de África, antes descritas como aliadas, estão agora a medir forças num novo foco de tensão internacional.

Vozes etíopes acusam Hassan Sheik de usar retórica, para inflamar os somali, e também de pretender aliar-se aos extremistas do Al Shabaab. O presidente da Somália denunciou por seu lado o acordo assinado entre a Etiópia e a autodeclarada República da Somalilândia, afirmando que este ameaça desestabilizar toda a região.

Dia sete de janeiro, Hassan Sheik Mohamud assinou um decreto a anular o Memorando de Entendimento, que daria à Etiópia direito a usar cerca de 20 quilómetros de costa junto ao porto de Berbera nos próximos 50 anos.
Mapa da Somália e da Etiópia com área da Somalilândia Fonte: Google Maps/RTP
"Esta noite, assinei legislação a anular o MoU ilegal entre o governo da Etiópia e a Somalilândia", anunciou depois Mohamud na rede X. "Esta lei ilustra o nosso compromisso com a salvaguarda da nossa unidade, soberania e integridade territorial, de acordo com a lei internacional". O presidente não revelou o conteúdo legislativo nem anunciou datas para a sua aprovação pelo Parlamento.

Nem a Etiópia nem a República da Somalilândia comentaram oficialmente a decisão. Mas dia 10, quarta-feira, os chefes do exército de ambos reuniram-se para debater a cooperação militar entre os dois terriórios.
Base naval é vital para a Etiópia
Em outubro, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, afirmou que a existência da Etiópia, que não tem ligações ao mar, está "ligada ao Mar Vermelho", acrescentando que, se os países do Corno de África planeiam viver juntos em paz, têm de "encontra uma forma de partilhar mutuamente de forma equilibrada".

Addis Abeba domina os recursos petrolíferos da região de Ogaden, mas o acesso ao mar é vital para o país. A Aetiópia tem acordos com a Eritreia e utiliza o porto de Djibuti para 95 por cento das suas atividades comerciais, mas não tem forma de proteger os seus navios nem possui presença naval.

Por outro lado, os espaços aéreos dos seus vizinhos Sudão e Iémen, a norte e a noroeste, tem estado fechados devido a conflitos e a Eritreia, entre ambos, pode encerrar igualmente o seu.

Um conflito aberto com a Somália, a sul, iria significar o encerramento do espaço aéreo somali, deixando livres para a Etiópia apenas as rotas a ocidente, sobre o Quénia e o Sudão do Sul.

A Etiópia tem ainda de encontrar solução para o Tigray, uma vasta área a norte do país, que contesta o governo de Abiy e que está sob ocupação militar ao mesmo tempo que enfrenta uma seca extrema.

A União Africana e as Nações Unidas já apelaram à calma, Pequim frisou a necessidade de manter "a integridade territorial da Somália",
mas a situação pode deteriorar-se rapidamente, com os extremistas armados do Al Shabaab a poderem aproveitar o caos para recuperar território e influência.
Ameaça do Al Shabaab regressa
Na noite passada, um ataque com morteiros contra o complexo das Nações Unidas em Mogadisciu, a base de Halane, provocou a morte de um guarda da ONU e estragos materiais. A Missão de Assistência das Nações Unidas na Somália, ATMIS, condenou o ataque, atribuído ao Al Shabaab, já esta sexta-feira.

A ATMIS está ainda a tentar resolver outra crise, provocada pela aterragem de emergência de um helicóptero fretado pela ONU que estava a realizar uma avaliação médica aérea na região de Galmudug, dia 10 de janeiro.

Militantes do grupo islamita, que controlam a área há uma década, terão feito reféns um número indeterminado de estrangeiros, incluindo quatro ucranianos, que viajavam no aparelho. O responsável pela Segurança Interna do estado de Galmudug disse que um dos ocupantes foi morto quando tentava fugir.

A Missão das Nações Unidas confirmou o incidente, revelando que estavam a ser desenvolvidos esforços para resgatar os reféns. 

O governo federal da Somália anunciou igualmente estar a fazer o possível para solucionar a crise, contudo o coronel Abdullahi Isse, cuja base na cidade de Adado, centra as tropas federais, referiu que não está a ser preparada qualquer missão para tentar libertar os reféns.

"Não creio que possam escapar", afirmou Isse, contactado pela Agência Reuters. "A área está sob controlo do Al Shabaab há mais de 10 anos. E até os residentes ali são pro Al-Shabaab".
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