Passados trinta anos dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Angola, para uns uma tentativa de golpe de Estado, para outros um contra-golpe, os sobreviventes ainda procuram juntar pedaços da História, em nome das vítimas.
Vários sobreviventes contaram à Lusa as suas experiências e dizem que não procuram saber a verdade, porque essa já a conhecem, mas apenas apurar o que aconteceu aos milhares de desaparecidos após o 27 de Maio.
Há 30 anos, Nito Alves, então ministro da Administração Interna sob a presidência de Agostinho Neto, liderou uma manifestação para protestar contra o rumo que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) estava a tomar.
Segundo José Reis, José Fuso e Jorge Fernandes, que contaram à Lusa as suas experiências depois de detidos por serem considerados "fraccionistas", Nito Alves pretendia apenas "cumprir escrupulosamente os estatutos do movimento" e seguir "a orientação marxista-leninista adoptada".
Na versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma "tentativa de golpe de Estado" por parte de "fraccionistas" do movimento, cujos principais "cérebros" foram Nito Alves e José Van-Dunem.
Nito Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito, que foi liderada pelo actual Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido.
As conclusões desta comissão nunca foram divulgadas publicamente e Nito Alves nunca terá sido ouvido. Decide então escrever "13 teses em minha defesa", que, segundo os seus apoiantes da altura, não teve oportunidade de apresentar porque foi, juntamente com José Van-Dúnem, expulso do comité central do movimento, a 21 de Maio de 1977.
Os apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento, Lúcio Lara, e que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do partido e os media, em especial o Jornal de Angola, pelo que consideraram que a manifestação convocada por Nito Alves foi "um contra-golpe".
Golpe ou contra-golpe, a repressão que se seguiu ao 27 de Maio contra os chamados fraccionistas teve graves consequências na sociedade angolana pelo número de mortos e detidos, mas também no seio do próprio MPLA, que perdeu muitos dos seus quadros e jovens militantes.
Ninguém sabe ao certo quantas pessoas morreram. Os números são tão díspares, que vão desde 4.000 a 82.000, dependendo das fontes.
Em Abril de 1992, o governo reconhece que foram "julgados, condenados e executados" os principais "mentores e autores da intentona fraccionista", que classificou como "uma acção militar de grande envergadura" que tinha por objectivo "a tomada do poder pela força e a destituição do presidente (Agostinho) Neto".
Entre os 11 nomes dos responsáveis, divulgados pelo governo, estavam Nito Alves, José Van-Dúnem e a sua mulher Sita Valles, militante da União dos Estudantes Comunistas (UEC) em Portugal e que passou a militar no MPLA em meados de 1975. Os seus corpos, bem como os dos restantes, nunca foram entregues às famílias, nem emitidas certidões de óbito.
A Fundação 27 de Maio, criada em 2001 em Luanda, exige que o governo revele o que aconteceu aos milhares de pessoas que desapareceram para, pelo menos, "terem um enterro condigno", disse à Lusa o presidente da Fundação, Silva Mateus, que também esteve detido dois anos por acusação de envolvimento no 27 de Maio.
Esta fundação entregou há dois anos uma queixa por genocídio no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra os Estados angolano e cubano, "mas até hoje não houve qualquer resposta".
Em declarações à Agência Lusa, um colaborador da embaixada de Portugal em Luanda na altura, que pediu para não ser identificado, afirmou que a embaixada "tentou salvar todas as pessoas implicadas" e reconheceu que "havia muitos portugueses envolvidos".
No entanto, acrescenta a fonte, a posição das autoridades angolanas de então era que "quem fosse angolano não seria libertado".
"Havia muitos que eram luso-angolanos, mas que recusaram assumir a nacionalidade portuguesa" e, por isso, sofreram as consequências.
"Demos toda a protecção possível aos portugueses. Até cheguei a ir buscar no meu carro pessoas que estavam com medo e levei-as para minha casa", disse a fonte.
Questionado sobre se houve portugueses mortos na sequência do 27 de Maio, o colaborador de então respondeu que não sabe, acrescentando, no entanto, que "morreu muita gente na altura".
Sobre a decisão de Agostinho Neto de expulsar os portugueses, a fonte disse que se tratou de "um mal menor".
"Mais valia sair do que ficar, ser preso e ser morto", disse.
A mesma fonte acrescentou que a embaixada tentou interceder por Sita Valles, mas esta "não quis reivindicar a nacionalidade portuguesa" e como tal, "foi presa".
Sobre o que realmente se passou nesta altura, o responsável afirma que "a História é muito cruel e muito dura", considerando que "não vale a pena falar em bons e maus.
"O tratamento dado às pessoas foi brutal e cruel. De ambos os lados", disse.
Foi esse tratamento cruel que José Reis, José Fuso e Jorge Fernandes contaram à Lusa, e a que foram submetidos precisamente por recusarem dizer que eram portugueses.
José Reis esteve preso mais de dois anos. Detido a 30 de Maio, tinha 22 anos. Foi espancado, torturado e todos os dias pensava que ia morrer.
Esteve com mais dez colegas, todos nus, num pátio nas instalações da polícia de segurança do Estado (DISA), prestes a ser fuzilado. Foram salvos pelo director-geral, Ludy Kissasunda, que deu ordem para que os levassem para a cadeia de São Paulo, em Luanda.
Seguiram-se mais seis meses de horror. "Ouvíamos os outros a serem torturados. Todas as noites levavam pessoas que regressavam mais mortas que vivas. Alguns não regressavam", recorda.
"Um dia chamaram-me à noite, disseram-me para assinar um documento a afirmar que era português e deixavam-me sair de Angola. Recusei", diz, com orgulho.
A mulher, portuguesa, foi expulsa de Angola e a sua casa ocupada por um chefe da DISA. "Acabei por vê-lo mais tarde com os meus sapatos calçados", recorda.
Em Janeiro de 1978 foi transferido para um "campo de recuperação". "Foi horrível porque apesar de estar ao ar livre, sem grades, a pressão psicológica era terrível", diz.
José Reis foi inicialmente condenado à pena de morte, depois comutada para 24 anos de cadeia. Nunca foi julgado e saiu ao fim de quase dois anos e meio. Deixou Angola quatro meses depois por se sentir ainda "perseguido". Nunca mais voltou.
Jorge Fernandes foi preso no mesmo dia. Na cadeia, foi torturado e espancado durante um dia e meio. Ainda hoje tem problemas no ouvido esquerdo.
O episódio que recorda com maior mágoa foi a forma como o informaram da morte do pai, que já estava em Portugal. "Esperaram pelo meu dia de anos para me darem a notícia".
José Fuso também fazia parte deste grupo. Tinha 23 anos e era estudante de Economia. Nunca foi acusado de nada e diz: "Se cometi algum crime foi o de opinião política".
Há muitas coisas de que não se lembra, "uma forma de defesa para tentar apagar certas situações que se passaram".
A filha nasceu enquanto esteve preso. Diz que soube o sexo da criança "através de panos cor-de-rosa" que amigos lhe mostraram de fora da cadeia.
Das torturas, recorda que foi "levado para uma sala" e "interrogado enquanto um amigo pessoal estava a ser ameaçado com choques eléctricos nos órgãos genitais". Ainda tem marcas na cabeça das pancadas que levou.
Recorda que muitos presos "eram levados à noite, em ambulâncias, que regressavam no dia seguinte, vazias, e sujas de sangue".
Foi libertado a 17 de Agosto de 1979. Guarda "religiosamente" o mandado de soltura. Veio para Portugal em 1983 e nunca mais voltou a Angola.
Estes três sobreviventes formaram há três anos a Associação 27 de Maio, com um site onde podem ser deixados testemunhos. Reconhecem que não teve grande sucesso "porque as pessoas ainda têm medo de falar".
No entanto, o site serve pelo menos para partilha de informação. "Dá para juntar uma ponta daqui, outra dali e chegar a algumas conclusões".
Todos os anos lançam iniciativas para recordar a data e até já escreveram uma carta aberta ao Presidente angolano, mas nunca obtiveram resposta.
Este ano, não vão fazer nada. Porque assinalar 29, 30 ou 31 anos é a mesma coisa.
A Lusa contactou fonte da Presidência angolana, que não fez qualquer comentário sobre o assunto e um responsável do MPLA remeteu para "mais tarde" uma posição, que não foi possível obter em tempo útil.
Numa declaração oficial, aquando dos 25 anos do 27 de Maio, o Bureau Político do MPLA não usa a expressão "golpe de Estado", mas refere-se apenas aos "acontecimentos" motivados pela "atitude de alguns dos seus militantes que (.) conduziram uma acção de contestação aos órgãos de direcção do partido e do Estado, utilizando componentes de violência com excessos visíveis".
Na altura, o MPLA considerou que estava "virada mais esta página" da História de Angola.
"Devemos assumir o compromisso, perante o povo angolano e o mundo de tudo fazermos para que Angola seja a pátria da liberdade, da tolerância, da democracia e da justiça".