Segurança das mulheres "por um fio" na Turquia

por RTP
Protesto turco a 20 de março de 2021, contra a anulação por Recep Tayyip Erdogan da Convenção de Istambul contra a violência doméstica Reuters

O Governo turco deu novos sinais de radicalização esta semana, com as mulheres a temerem a perda de proteções jurídicas recém-adquiridas. Durante o passado fim de semana houve protestos nas ruas, que prometem prosseguir, com ou sem pandemia e restrições.

"Todos os dias acordamos para notícias frescas de femicídio", afirmou Hatice Yolcu, estudante em Istambul, uma entre centenas de mulheres que se manifestaram em toda a Turquia, de bandeiras púrpura ao alto.

"As mortes não páram. Mulheres morrem. Nada sucede aos homens", lamentou, ainda sob o choque de saber do fim da aplicação no país da Convenção de Istambul, contra a violência doméstica. A Turquia acolheu o debate sobre a Convenção de Istambul e foi a primeira nação a assiná-la, em 2011, e a ratifica-la por unanimidade em 2012. Adotada por 34 países europeus, com o objetivo de prevenir, castigar e eliminar a violência doméstica, a lei entrou em vigor em 2014.

O acordo estabelecido no seio do Conselho da Europa chegou a ser saudado pelo Presidente, Recep Tayyip Erdogan, como prova de liderança turca na igualdade de género.

Nem dez anos depois dele ter sido ratificado, numa decisão súbita, Erdogan assinou à meia noite de sexta-feira dia 20 de março, um decreto a retirar a Turquia da Convenção.

Marija Pejcinovic Buric, secretária-geral do Conselho da Europa, considerou a decisão "devastadora". "É um enorme passo atrás, ainda mais deplorável porque compromete a protecção das mulheres na Turquia, em toda a Europa e mais além", afirmou.

Os assassínios de mulheres, para os quais não há números oficiais, terão triplicado na Turquia na última década.

De acordo com a plataforma turca "Vamos Deter o Femicídio", pelo menos 300 mulheres foram assassinadas no país em 2020, a maioria pelos próprios parceiros, e 171 outras foram encontradas mortas em circunstâncias suspeitas.

Só este ano as mesmas causas vitimaram pelo menos outras 78 mulheres.

Estatísticas da Organização Mundial de Saúde referem que 38 por cento das mulheres na Turquia sofrem por violências por parte do parceiro, comparativamente a 25 por cento na Europa.
Perigo LGBT
Na origem da decisão de Erdogan estará a influência crescente junto do Presidente Recep Tayyip Erdogan da ala mais conservadora do seu partido, o AK, e do Partido da Felicidade, islamita e na oposição. Fragilizado por dificuldades económicas e pelas restrições da pandemia de Covid-19, Erdogan procura garantir apoios. Dia 2 de março apresentou o seu Plano de Ação para os Direitos Humanos, cujas consequências imediatas foram a retirada da Convenção de Istambul, uma tentativa de abolição do maior partido político turco, o HDP e a demissão do governador do banco-central, apoiado pelo Ocidente.

Críticos da Convenção, os ultraconservadores têm sublinhado que ela coloca em risco "valores fundamentais da sociedade turca" e as "estruturas familiares", sem levar à diminuição da violência.

Receiam particularmente provisões no texto que obrigam os signatários a proteger as vítimas de descriminação sem distinção de orientação sexual ou de identidade de género.

A clásula, afirmam, abre a porta à promoção da homosexualidade e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A justificação oriunda do porta-voz presidencial, Fahrettin Altun, para o decreto de dia 20, invoca esse mesmo motivo. Altun referiu que o objetivo inicial da Convenção, de promover os direitos das mulheres, tinha sido "desviado por um grupo de pessoas apostadas em normalizar a homossexualidade", algo incompatível com os valores turcos sociais e familiares.

O própro AKP, do Presidente, tem exprimido cada vez mais sentimentos anti-LGBT+. Num tweet recente, o ministro da Administração Interna, Suleyman Soylu, classificou os indivíduos LGBT+ como pervertidos, o que lhe valeu um aviso da rede Twitter.

Protesto em Roma a 25 de março de 2021, contra a anulação pela Turquia da Convenção de Istambul contra a violência doméstica
"Costumes e tradições"

Os detratores da Convenção garantem ainda que os tribunais do país não necessitam de legislação internacional para proteger as mulheres turcas.

"Preservar o nosso tecido social tradicional" irá proteger a dignidade das mulheres turcas, escreveu na sua página Twitter o vice-presidente Fuat Oktay. "Para este propósito sublime, não há necessidade de ir buscar remédio fora ou de imitar outros".

Yagmu Denli, veterinária de 33 anos, ganhou coragem para ir à polícia mostrar as provas carnais dos maus tratos e conseguiu dois meses de afastamento judicial automaticamente prorrogáveis ao abrigo da Convenção. Agora, receia pela própria vida. Tal como para muitas outras mulheres, incluindo círculos pró-governo, para Denli as referências aos "costumes e tradições" referem as mulheres como cidadãos de segunda classe.

Num país onde, também esta semana, membros do grupo "Mães de Sábado" começaram a ser julgados por se terem negado em 2018 a abandonar a sua 700ª vigília pacífica contra os desaparecimentos dos filhos, as garantias de proteção judicial soam a falso.

A perseguição faz parte de "uma repressão constante da sociedade civil, de defensores dos Direitos Humanos e daqueles que pacificamente expressam o seu desacordo na Turquia", criticaram esta semana num comunicado conjunto a Human Rights Watch e a Front Line Defenders.
Europa entre a cenoura e o chicote
Os protestos internacionais contra a saída da Convenção sucederam-se, com as Nações Unidas a apelarem a um recuo de Erdogan e os Estados Unidos, a União Europeia, a França e a Alemanha a criticarem a decisão "contra as mulheres", apenas quatro dias depois de terem denunciado a tentativa de proibição do pró-curdo HDP.

A política internacional faz-se contudo de cedências e compromissos e esta quinta-feira os líderes europeus cumpriram promessas de 2016, e compensaram Tayyip Erdogan pelo recente recuo no braço de ferro com a Grécia pelos recursos de gás do Mediterrâneo Oriental.

Numa vídeoconferência, os líderes europeus anunciaram que os seus especialistas "podem agora dar início ao seu mandato de modernização da união aduaneira", autorizando a sua expansão a serviços, bens agrícolas e contratação social.A expansão aduaneira deverá incluir a Turquia, um eterno candidato a membro pleno da União Europeia, trazendo ao mercado único, o maior do mundo, os seus 80 milhões de consumidores.

Cautelosos quanto a alterações de humor de Erdogan, os líderes europeus prometeram reapreciar a decisão em junho. E deixaram avisos à Turquia, tanto quanto a possíveis provocações como a violações dos Direitos Humanos, prometendo manter-se vigilantes.

"Apelamos à Turquia que se abstenha de novas provocações ou ações unilaterais em violação da lei internacional", referiram em comunicado, sublinhando que o bloco não hesitará em recorrer aos "instrumentos e opções ao seu dispôr para defender os seus interesses".

"O Estado de direito e os direitos fundamentais permanecem uma preocupação", referiram os europeus, para quem a falta de democracia na Turquia sempre foi um óbice à integração do país na União e cuja deriva autoritária de Erdogan confirma receios.

As negociações para a expansão aduaneira deverão levar vários anos a concluir.
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