"São todos uns golpistas". Ex-assessores acusam Trump de ridicularizar apoiantes cristãos em privado

por RTP
Apoiantes afro-americanos rezam com Donald Trump durante uma reunião, em fevereiro deste ano Leah Millis - Reuters

Em declarações anónimas ao jornal The Antlantic, antigos assessores de Trump acusam o presidente dos EUA de usar a sua faceta cristã como uma farsa. Em privado, Trump ridiculariza os seus apoiantes cristãos, encarando-os com cinismo e desprezo, segundo descrevem ex-conselheiros, que acusam o presidente de usar a ala conservadora cristã "como uma espécie de grupo de especial vantagem". Ao seu antigo advogado pessoal, Michael Cohen, Trump terá chegado a apelidar os padres de “golpistas”.

Donald Trump chegou à presidência com um forte apoio por parte da comunidade cristã, que vê o presidente norte-americano como o “salvador” de um país a atravessar um período de declínio moral.

Ao longo dos últimos anos, Trump tem colocado as suas prioridades em sintonia com a agenda cristã, que inclui o apoio de uma legislação contra o aborto, o reforço do apoio de orações em escolas públicas e, mais recentemente, a eleição de uma juíza conservadora (Amy Coney Barrett) para o Supremo Tribunal, em substituição da juíza liberal Ruth Ginsburg.

Em suma, em vários discursos e entrevistas, Trump tem mantido a aliança com a ala religiosa mais conservadora sob a premissa de que a protege, enquanto os democratas a desrespeitam. “A minha administração nunca vai parar de lutar pelos americanos de fé”, disse o presidente durante um comício no início deste ano, ao mesmo tempo que argumenta que “não haverá Deus” se Joe Biden, o seu rival democrata, for eleito a 3 de novembro.

No entanto, longe das câmaras e de todos os olhares, o presidente dos EUA ridiculariza os seus apoiantes cristãos, encarando-os com cinismo e desprezo, segundo revela uma reportagem de The Atlantic.

Em 2015, o pastor evangélico Creflo Dollar pediu aos seus fiéis que o ajudassem a financiar um jato privado avaliado em 60 milhões de dólares. Michael Cohen, então advogado de Trump, relata que o presidente ficou fascinado com a história e com aquilo que descreveu de “golpe”. “Eles são todos uns golpistas”, terá dito Trump, segundo Cohen.

No seu mais recente livro de memórias, “Disloyal”, o ex-advogado pessoal do presidente dos EUA relata que Trump, quando saía de uma reunião com vários pastores evangélicos em 2011, onde inclusivamente participou nas orações, lhe disse: “Consegues acreditar nesta porcaria?”. No entanto, segundo explica Cohen, se Trump achava os rituais ridículos, por outro lado acompanhava bem de perto os seus negócios lucrativos. “Ele estava completamente familiarizado com os negócios dos responsáveis de muitas igrejas”, revelou Cohen.

Vários ex-assessores do partido Republicano confessaram ao The Atlantic que "ouviram Trump ridicularizar os líderes religiosos conservadores, rejeitar vários grupos religiosos com estereótipos caricaturados e ridicularizar certos cultos e doutrinas considerados sagrados por muitos dos americanos que são seus apoiantes". Os antigos assessores admitiram que Trump – que não era conhecido por ser religioso antes de se tornar presidente – via a ala conservadora cristã "como uma espécie de grupo de especial vantagem" que ele poderia “enganar, usar, ou comprar”.

“O seu ponto de vista era: ‘Eu tenho conversado com estas pessoas durante anos, deixei-os ficar nos meus hotéis. Eles vão apoiar-me”, revelou um ex-consultor da campanha de Trump a The Atlantic.

Desafiado pelo jornal a responder a estas alegações, um porta-voz da Casa Branca respondeu que “as pessoas de fé sabem que o presidente Trump é um defensor da liberdade religiosa e da santidade da vida e que ele tomou fortes medidas para as apoiar e proteger a sua liberdade”. “O presidente é também conhecido pelas suas brincadeiras e pelo incrível sentido de humor que ele partilha com pessoas de todas as religiões”, acrescentou.
“Sempre achei que ele fosse ateu”
De acordo com o Pew Research Center, os evangélicos brancos têm duas vezes mais probabilidade do que o americano comum de afirmar que o presidente dos EUA é um homem religioso. Alguns padres conservadores descreveram-no mesmo como um "cristão bebé".

No entanto, para aqueles que trabalharam de perto com Trump e que o conhecem pessoalmente, a ideia de que o presidente tem uma faceta cristã chega a ser motivo de riso. “Eu sempre achei que ele fosse ateu”, disse Barbara Res, ex-administrativa da Trump Organization, a The Atlantic. “Ele não é um homem religioso”, disse ainda A. J. Delgado, que fez parte da equipa da campanha presidencial de Trump em 2016.

“Sempre que vejo uma foto dele com um grupo de padres com as mãos sobre ele, vejo um balão de pensamento com as palavras ‘que otários’”, revelou Mary Trump, sobrinha do presidente norte-americano, que publicou recentemente um livro em que revela como a família criou “o homem mais perigoso do mundo”.

As elites cristãs conservadoras próximas de Trump também sempre pareceram ser mais conscientes da falta de devoção por parte do presidente dos EUA do que aquilo que faziam transparecer publicamente. Numa reunião em setembro de 2016 com cerca de 12 altas figuras da igreja, o então candidato à presidência foi sincero sobre a sua relação com o cristianismo.

Numa gravação da reunião obtida por The Atlantic, é possível reconhecer a ignorância de Trump em relação à Bíblia. “Eu não conheço a Bíblia tão bem como outras pessoas”, disse o presidente, que brincou sobre a sua inexperiência com orações. “A primeira vez que conheci Mike Pence, ele disse ‘Vai inclinar a sua cabeça e rezar?’. E eu respondi ‘Desculpe? Não estou habituado a isto’”, admitiu Trump.

No entanto, mesmo perante o seu visível desconhecimento, no final da reunião, o candidato republicano tinha o apoio de todo o grupo. “Eu não estou a votar para que Trump seja o professor da minha turma de terceiro ano da catequese. Não é para isso que ele está a concorrer”, disse Robert Jeffress, sacerdote na cidade de Dallas, durante a reunião. “Eu acredito que é imperativo que façamos tudo o que pudermos para demover as pessoas”, acrescentou.
82% por cento dos cristãos admite votar em Trump
Em janeiro de 2016, numa pequena faculdade cristã no Estado de Iowa, Trump disse a célebre frase: “Eu tenho os apoiantes mais leais. Eu poderia estar no meio da Quinta Avenida e abater alguém a tiro e não perderia nenhum voto”.

No entanto, nesse mesmo discurso, Trump deixou uma mensagem que mereceu maior destaque para os cristãos: “Os cristãos representam a grande maioria do país, e no entanto ainda não exercemos o poder que devíamos”. De seguida, deixou a promessa: “O cristão terá poder. Se eu lá estiver [na Casa Branca], vocês terão bastante poder, não precisam de mais ninguém. Terão alguém que vos irá representar muito, muito bem. Lembrem-se disso”. Os eleitores cristãos norte-americanos parecem não se ter mesmo esquecido da promessa e 81 por cento confiou o voto a Donald Trump em 2016.

Agora, a menos um mês das eleições, este grupo pode ser um trunfo para a reeleição, principalmente depois de a resposta de Trump à pandemia ter abalado a sua posição política, com as sondagens a atribuírem vantagem a Joe Biden. Entre os evangelistas brancos, o índice de aprovação do presidente norte-americano desceu ligeiramente, mas 82 por cento admite confiar o voto a Trump, de acordo com o Pew Research Center.

Mas afinal, o que faz com que eleitores evangélicos continuem a confiar o voto em Trump, que aparentemente apresenta valores opostos aos cristãos? Segundo New York Times, os eleitores cristãos veem Trump como seu protetor, o “bully” que está do lado deles e que os protege perante receios de que o país que conheciam está a mudar rapidamente, com a dissolução de alguns dos valores que eram dominantes. “Nós estamos sempre à distância de apenas uma geração para perder o cristianismo”, disse Micah Schouten a New York Times.

“O único grupo de pessoas que pensavam que podiam desprezar e rebaixar tinha-se tornado o cristão. Apenas a classe média, os cristãos americanos”, disse Lisa Burg, residente em Orange City. “Esse foi o único grupo que restou que poderíamos simplesmente colocar de lado e chamá-lo de deplorável. E ele [Trump] reconheceu isso. E sabe uma coisa? Sim, também não há nenhum problema com o nosso conjunto de valores. Acho que as pessoas finalmente disseram: ‘Sim, finalmente temos alguém que está disposto a dizer que não estamos errados, também precisamos de ter uma voz’”, acrescentou.

Acima de tudo, os eleitores cristãos consideram que ao longo dos últimos quatro anos, Trump cumpriu com a sua promessa ao nomear juízes conservadores, defender a liberdade religiosa e opor-se ao aborto. “Ele realmente cumpriu as suas promessas”, disse Fred Engel. “Não me lembro de um único político, nos meus 68 anos, que tenha feito isso”, acrescentou.
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