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Saara Ocidental. "Pedimos a Espanha que assuma a sua responsabilidade como Portugal fez em Timor"

por Andreia Martins - RTP

Omar Mih, representante da Frente Polisário junto da União Europeia, critica o posicionamento de Bruxelas e Washington ao longo dos últimos anos e pede à comunidade internacional, nomeadamente a Espanha, que olhe para o exemplo de Portugal na questão da independência de Timor. Em entrevista ao programa Visão Global da Antena 1, o responsável destaca o caráter colonial do conflito entre marroquinos e saarauís e alerta que o status quo deste conflito terminou no ano passado, com o fim do cessar-fogo que vigorava desde 1991.

É a última colónia do continente africano, em pleno deserto, às portas da Europa. Mais de 40 anos depois da retirada de Espanha, em 1975, a questão do Saara Ocidental prolonga-se e o território continua a constar na lista da ONU de regiões não-autónomas.

Para os defensores da causa saarauí, a luta da Frente Polisário é em muito comparável à causa de Timor, país que alcançou a independência face à Indonésia após a realização de um referendo à autodeterminação, em 1999.

É isso mesmo que os saarauís continuam a exigir, e que de resto lhes foi prometido desde 1991, quando foi estabelecida a MINURSO (Missão das Nações Unidas para o referendo no Saara Ocidental). No entanto, parte do território continua até hoje a ser governada de facto por Marrocos, que reivindica e designa o local como a sua “Província do Sul”. Por outro lado, a governação da República Árabe Saaraui Democrática, proclamada pela Frente Polisário, acontece na prática nos campos de refugiados de Tindouf, junto à fronteira com a Argélia.

Neste impasse, a comunidade internacional continua a não reconhecer as reivindicações de Marrocos ou da Frente Polisário sobre o território do Saara Ocidental. Mas o status quo na região pode ter agora os dias contados.

Em novembro do ano passado, quebrou-se o cessar-fogo estabelecido desde 1991, que fora alcançado depois de 16 anos de guerra. Os confrontos voltaram à região quando o exército marroquino entrou em Guerguerat para acabar com o bloqueio da principal via rodoviária de acesso à Mauritânia. Esse cerco estava a ser levado a cabo por elementos do movimento independentista saarauí, que ali realizava um protesto. Na versão marroquina, a ação do exército não foi hostil nem teve intenção bélica, mas a Frente Polisário anunciou o “regresso à luta armada” contra Marrocos após a intervenção militar.

Por outro lado, ao nível diplomático, a ONU parece não ter esquecido completamente o conflito e a incerteza neste território inóspito, rodeado pelo deserto do Saara e o Oceano Atlântico. Em setembro, as Nações Unidas anunciaram a nomeação de Staffan de Mistura como novo enviado especial das Nações Unidas para o Saara Ocidental, cargo que estava vago desde 2019.

A nomeação do diplomata italo-sueco foi um dos assuntos abordados por Omar Mih, representante da Frente Polisário junto da União Europeia nesta entrevista à Antena 1. O responsável também sublinha o papel que Estados Unidos e União Europeia - e em particular Portugal - podem desempenhar na resolução do conflito.

Antes das funções de representante da Frente Polisário junto da UE, Omar Mih foi delegado do movimento independentista em países como Itália, França, Suécia ou Grécia, e foi também observador da Frente Polisário no processo das Nações Unidas para a identificação de um corpo eleitoral válido do referendo de autodeterminação, plesbicito pelo qual o povo saarauí anseia há várias décadas.


Pergunta: O que significa esta nomeação do novo enviado para o Saara Ocidental pela ONU?

Resposta: Podemos dizer que “temos papa”, temos um novo enviado. O secretário-geral Guterres encontrou a pessoa que será o representante especial para o Saara Ocidental, o diplomata italo-sueco Staffan de Mistura. Mistura irá liderar um mandato para levar adiante as negociações entre as duas partes - o reino de Marrocos e a Frente Polisário - para chegar, como indica o Conselho de Segurança, a uma solução que seja aceitável pelas duas partes, mas que garanta o direito à autodeterminação do povo do Saara Ocidental.

Neste contexto, com a nova designação do enviado, a Frente Polisário e a república saarauí dão as boas-vindas a Mistura e garantem-lhe, a ele e ao secretário-geral da ONU, a colaboração para levar a cabo estas negociações com a finalidade de dar ao povo do Saara Ocidental o seu direito a exprimir-se através de um referendo, através do qual o povo saraui possa decidir o seu destino.

Com esta nova situação, esperam que o referendo aconteça em breve?

Para ser sincero, há trinta anos que esperamos o referendo. Esse é o nosso desejo, é a solução real do conflito do Saara Ocidental. Quando aceitámos a mediação das Nações Unidas e da União Africana nos anos 80, chegámos a um acordo – nós e o Governo de Marrocos - na sede das Nações Unidas. Parámos a guerra e resolvemos o conflito de descolonização. Ao fim de 16 anos de guerra, no final todos aceitámos que sim, a solução deveria ser através do referendo. Esperamos que, através do Conselho de Segurança, haja um mandato mais forte para que realize esse referendo.

Já vamos voltar a falar do referendo. Queria saber mais sobre a sua experiência enquanto representante da Frente Polisário (FP). Foi representante da FP em vários países europeus, tratou de questões ligadas aos campos de refugiados e foi observador junto da ONU. Está no movimento quase desde que surgiu. Como tem sido estar envolvido nesta causa?

Temos sido vítimas. Em 1975, tal como em Timor, Espanha, a potência colonial, não fez o que deveria ter feito. Não permitiu que o povo saarauí pudesse autodeterminar-se devido a uma invasão. Em 1975, a Indonésia invade Timor, Marrocos invade o Saara Ocidental.

Nós, que esperávamos aquele momento e estávamos contentes porque finalmente a era colonial tinha terminado, tivemos de continuar a nossa batalha contra os novos colonizadores para dar a possibilidade, ao nosso povo, de se exprimir através de um referendo.

Fomos vítimas. E eu, como muitos dos cidadãos, temos estado obrigados a fugir e a continuar esta resistência. Em 21 de novembro de 1975, era eu um jovem, saí do país a pensar que em dois anos voltaria a um Saara Ocidental livre. Mas hoje continuamos este compromisso de batalha, de luta pacífica, para chegar a uma solução para o conflito no Saara Ocidental.

Desde então não voltou ao Saara Ocidental?

Não. Apenas voltei como representante no processo de autodeterminação. Quando chegámos ao acordo de cessar-fogo, o Conselho de Segurança nomeou uma missão, a MINURSO, com o mandato de realizar o referendo. Nesse processo das Nações Unidas havia uma comissão encarregada de identificar que eleitores poderiam participar no referendo.

Nessa comissão, havia observadores da Frente Polisário e observadores de Marrocos. Eu era um dos observadores da Frente Polisário. E devo dizer que as Nações Unidas fizeram um trabalho extraordinário a identificar um corpo eleitoral que é definitivo, atualmente, e que está nos arquivos de Genebra. Isso permitiu-me visitar o território do Saara Ocidental, em 1997 e 1999.

Nasceu na cidade de Smara, que fica no norte do Saara Ocidental, numa zona administrada por Marrocos.

Nasci em Smara, que historicamente para os saarauís é o centro da resistência à penetração colonial. Estudei em Smara, depois em El Aiune. Os meus pais vivem em Smara. Os meus avós viveram lá, estão lá enterrados. Saí de Smara em 1975 e voltei em 1999.

No processo de que falei anteriormente, os observadores da Frente Polisário eram transportados pelas Nações Unidas. Mas estávamos limitados a uma residência controlada pelos marroquinos, íamos trabalhar e regressávamos. Eu tinha a minha mãe a viver lá e todas as manhãs, ela apresentava-se de manhã no centro de identificação, onde trabalhávamos, pedindo às Nações Unidas que queria ver o filho depois de tantos anos.

Em nenhuma dessas manhãs os marroquinos aceitaram. Para mim isso foi um grande choque, para ela também. No último dia da minha estadia em Smara, em 1999, uma representante da MINURSO disse-me: bom, o que podemos fazer é sair do centro de identificação a caminho do aeroporto, eu paro o carro, tu sais e cumprimentas a tua mãe e logo se vê o que acontece.

Foi o que fizemos e quando saímos, eu abracei a minha mãe. Os marroquinos protestaram perante isto. E eu disse às Nações Unidas: como querem que sejamos marroquinos, que a minha mãe seja marroquina, se nem sequer deixam que visite ou veja o seu filho, que não via há mais de 20 anos? Isso marcou-me muito, essa última visita à minha cidade.

Em relação à atualidade política, houve eleições em Marrocos, recentemente. Esperam alguma mudança?

O conflito no Saara Ocidental não é um conflito étnico ou político, em que os saarauís querem mudar o sistema monárquico de Marrocos ou fazer uma revolução. Nem é um conflito em que os saarauís pretendem correr com os marroquinos de uma parte do seu território. O conflito entre os saarauís e os marroquinos é um conflito colonial, de descolonização. Foi provocado por uma invasão militar por parte de Marrocos e irá terminar quando se aplicar a legalidade no território do Saara Ocidental.

Sabemos que Marrocos tem interesses. Prometemos a Marrocos, nas negociações, que lhes damos a possibilidade de alcançar uma solução legal em que lhes damos 50 por cento dos recursos que há no território do Saara Ocidental, recursos exploráveis, como os da pesca ou fosfatos.

Grande parte do território do Saara Ocidental que está sob controlo de Marrocos tem esses recursos naturais.

Tem recursos naturais. Podemos dar 50 por cento desses recursos [a Marrocos]. Pode ser o nosso principal parceiro comercial. Podemos ser uma garantia para a segurança de Marrocos. Podemos ter acordos militares para a luta contra o terrorismo, contra a imigração ilegal. Mas há uma coisa que não podemos dar a Marrocos: a nossa soberania. A soberania pertence ao povo do Saara Ocidental que através de um referendo deve dizer o que quer fazer da sua casa. Mas eles querem tudo.

O conflito é colonial, de descolonização. São territórios não autónomos, o que é algo que está inscrito na agenda das Nações Unidas até hoje. Este povo tem direito à autodeterminação.

Desde novembro do ano passado voltou a haver combates entre o exército marroquino e a Frente Polisário. Qual é que é a situação no terreno depois de 30 anos de cessar-fogo?

Devo assinalar que, a 13 de novembro de 2020, foi Marrocos quem violou o cessar-fogo. Havia um cessar-fogo, respeitado por nós e pelos marroquinos. Mas a 13 de novembro, Marrocos violou esse cessar-fogo, atacando população civil que se estava a manifestar contra a exploração ilegal dos recursos naturais do Saara Ocidental.

De uma mina de fosfato?

Sim, Marrocos abriu uma estrada na zona sul e queria exportar produtos marroquinos e do Saara Ocidental diretamente para outros países africanos.

Diretamente para a Mauritânia.

Para a Mauritânia. Nós apenas dissemos que essa estrada não estava nos acordos de 1990, do cessar-fogo, e que era ilegal. A população começou a manifestar-se. Não pode ser. As Nações Unidas não fazem nada e Marrocos explora ilegalmente os nossos recursos. E os manifestantes, que protestavam pacificamente, fecharam a saída dos camiões que levavam mercadorias, muitas delas extraídas e produzidas no Saara Ocidental.

Marrocos respondeu enviando o Exército, construiu um muro, atacou a população, e aí rompeu-se o cessar-fogo. A Frente Polisário respondeu a esta agressão e a partir desse momento que já não há cessar-fogo no Saara Ocidental, há guerra ao largo de toda a cintura, do muro de vergonha marroquino. Acabou o status quo no Saara Ocidental.

O “Muro de vergonha”, como é conhecido entre os saarauís, tem mais de 2.700 quilómetros de cumprimento e divide todo o território do Saara Ocidental. Após vários anos de guerra entre Marrocos e as forças da Frente Polisário, o exército marroquino foi construindo muralhas de forma a separar os territórios libertados das cidades mais a litoral, onde estão os recursos naturais do país. O muro é feito sobretudo de areia, mas é tudo menos frágil: está constantemente protegido por forças do exército marroquino, bunkers, arame farpado, e sobretudo por milhões de minas terrestres.
Os combates continuam até hoje.

Exatamente. Todos os dias há ataques, escaramuças, ao largo de todo o muro marroquino.

O que esperam de Espanha? O país parece ter dado algum sinal de apoio quando recebeu o líder da Frente Polisário para prestar cuidados médicos, em abril. Mas teve desde logo um problema em Ceuta devido às questões migratórias. O que esperam de Madrid?

Penso que Espanha fez bem em receber o secretário-geral da Frente Polisário por razões humanitárias. Esse foi um ato positivo para Espanha. De resto, o que vimos depois foi a política de chantagem de Marrocos contra Espanha e a Europa.

Desde dezembro do ano passado, o senhor Trump, através de um tweet, declarou que o Saara Ocidental é marroquino. Restavam alguns dias a Trump para sair [da Presidência dos EUA] e ele fez este tweet porque queria que Marrocos reconhecesse Israel.

Marrocos pôs na cabeça que a União Europeia tinha de fazer o mesmo. Felizmente, nenhum país seguiu os passos ilegais de Trump. Ao ver que nem a Espanha nem a Europa o faziam, começaram a chantagear. E encontraram na presença do secretário-geral em Espanha o pretexto para chantagear Espanha, ao enviarem milhares de migrantes para invadir Ceuta.

Em maio último, cerca de oito mil migrantes conseguiram entrar no enclave espanhol de Ceuta no continente africano, com ligação ao território marroquino. Estes migrantes conseguiram atravessar facilmente a fronteira de Marrocos durante dois dias, sem que a polícia marroquina nada fizesse para os travar. Foi a resposta de Rabat contra Espanha depois de Madrid ter acolhido Brahim Gali, presidente da República Árabe Saarauí Democrática, por motivos humanitários. O responsável ligado à Frente Polisário foi internado num hospital espanhol depois de ter sido infetado com Covid-19, um ato que Marrocos viu como uma provocação.
Quanto aos Estados Unidos, espera alguma tomada de posição em breve por parte do novo Presidente, Joe Biden? Espera que altere a política adotada pelo antecessor?

Penso que o que Trump fez foi um atentado à política tradicional dos Estados Unidos no Saara Ocidental, de neutralidade. Os Estados Unidos são o porte-plume, aquele que escreve sempre as resoluções da ONU que depois são apresentadas ao Conselho de Segurança. E em todas essas resoluções os Estados Unidos pediam às duas partes que respeitassem a autodeterminação.

Trump rompeu com essa política tradicional. Eu desejo, eu espero que Biden volte à posição tradicional de equidistância dos Estados Unidos, mas sei que há um lobby forte dentro dos EUA que tenta impedir a Administração Biden de eliminar a decisão de Trump.

De qualquer das formas, essa posição de Trump não mudou absolutamente nada no estatuto jurídico do Saara Ocidental. Mas tenho muita esperança que esta Administração norte-americana volte a uma posição de equilíbrio e distância quando o Conselho de Segurança voltar a discutir o tema, e sobretudo a uma posição que respeite a legalidade internacional porque sem isso, não é possível viver neste mundo.

Para quando é que está marcada essa discussão no Conselho de Segurança?

No dia 30 de outubro termina o mandato da MINURSO, que dura um ano. O secretário-geral Guterres fará um relatório na segunda metade de outubro, dirigido ao Conselho de Segurança, no qual explicará todos os novos acontecimentos. E a verdade é que esta discussão acontece num contexto totalmente novo e diferente. Já não há cessar-fogo, há hostilidades, há guerra. E vem também no contexto de dois anos em que não houve representante especial, não houve negociações. Num contexto em que a situação regional é muito crítica no Sahel. E há uma nova administração norte-americana, já não é Trump.

Para nós, essa reunião será fundamental para perceber qual é a posição exata dos EUA sobre o conflito saarauí, quando forem escrever a resolução. Veremos se voltam a apoiar a solução que garante o direito à autodeterminação do povo saarauí ou se têm outra posição. Espero que nomeação de Staffan de Mistura como enviado possa ajudar a acelerar as negociações. Em dezembro de 2020, o Presidente norte-americano Donald Trump reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental. Foi a “moeda de troca” para que Rabat normalizasse as relações com Israel, tal como outros países árabes no âmbito dos “acordos de Abraão”. Desde a tomada de posse, em janeiro de 2021, o novo Presidente Joe Biden, ainda não se pronunciou sobre o posicionamento dos Estados Unidos nesta questão.  

Já falámos da posição da União Europeia que continua a não reconhecer o Saara Ocidental, mas também não apoia Marrocos. No entanto, em 2019, foi assinado um acordo de pescas com Marrocos sem que a Frente Polisário fosse consultada. O que esperam da União Europeia, ao verem que este acordo inclui as águas territoriais do Saara Ocidental?

Pedimos à União Europeia que respeite aquilo que votou nas Nações Unidas: que o território do Saara Ocidental é não-autónomo e que o seu povo tem direito à autodeterminação. Pedimos à União Europeia que respeite isso, porque o Saara Ocidental não é Marrocos.

Mas também pedimos à União Europeia que respeite as sentenças dos tribunais da própria União Europeia, que em várias ocasiões decretaram que o Saara Ocidental e Marrocos são duas coisas distintas, e que os acordos que são assinados com Marrocos não têm de incluir nem as águas, nem os recursos naturais, nem muito menos o território do Saara Ocidental. Há que respeitar isso.

Há dois anos, depois de o Tribunal de Justiça Europeu ter anulado em 2016 os acordos de pesca, a Comissão Europeia tentou desviar-se dessa decisão para continuar a explorar os recursos, dizendo que estes acordos beneficiam a população do território do Saara Ocidental, não o povo saarauí, mas a população do Saara Ocidental.

Mas isso não foi o que disse o Tribunal, porque o Tribunal falou em duas coisas são distintas: Saara Ocidental e Marrocos. E a sentença fala do consenso, do acordo por parte de quem vive no Saara Ocidental, e não do benefício da população.
Por isso, recorremos ao tribunal e temos muita confiança de que a decisão irá novamente anular esses acordos. Se querem negociar e explorar têm de ir falar e negociar com os representantes do povo do Saara Ocidental, e não com quem rouba, que é Marrocos.
Esta entrevista foi realizada antes da decisão do Tribunal Geral da União Europeia, que a 29 de setembro voltou a anular os acordos de comércio e pescas assinados em 2019 entre Marrocos e União Europeia. O Tribunal deu razão ao recurso apresentado pela Frente Polisário, ao considerar que não houve consentimento por parte dos saarauis nestes acordos, mas também por não ter sido feita qualquer diferenciação do estatuto político da região ocupada.

Como tem sido o teu trabalho como representante da Frente Polisário em Bruxelas, nos últimos anos? Para além desta situação das pescas, de que outras questões se tem ocupado?

Temos tentado manter a relação com as instituições, com o Parlamento Europeu, com a Comissão Europeia, com a qual temos contacto e diálogo, assim como com os países da União Europeia. Sei que há boas relações da Frente Polisário com alguns países europeus, nomeadamente a norte.

Quando dizemos aos países da União Europeia que devem reconhecer a república saarauí, dizem que temos de esperar pelo referendo. Mas nós dizemos-lhes: então têm de trabalhar para que haja um referendo. Não é possível ter esta política neutra no conflito. Há um país que é muito mais próximo de Marrocos e que defende os seus interesses no Conselho de Segurança [França].
Quarenta anos a apoiar Marrocos deu resultados ou estabilidade? Não. Deu paz à região? Não. Chegou o momento de mudar essa política, permitir a aplicação do Direito Internacional no Saara Ocidental.

O que pedimos a Espanha é que assuma a sua responsabilidade como fez Portugal em Timor. É um exemplo. Agora Timor é um país independente, tranquilo, com boas relações com a Indonésia, e isso é o que pedimos. Que a Europa pressione Marrocos.

Não se trata de fazer um embargo a Marrocos, mas convencer Marrocos de que a melhor solução para estabilidade, para o desenvolvimento, é permitir ao pequeno povo do Saara Ocidental, através de um referendo, decidir o que quer. Se quer continuar com Marrocos, cabe ao povo saarauí decidir. Mas o referendo é a solução para a paz e estabilidade.

A Frente Polisário, o movimento saarauí, não é um movimento terrorista, nunca fizemos ações violentas para dar a conhecer a causa do Saara Ocidental. Não somos um movimento fundamentalista, não temos um programa de implementar uma república talibã no Saara Ocidental. Compartilhamos convosco muitos dos valores em que acreditamos, de liberdade, de respeito pelos Direitos Humanos, com a presença de mulheres saarauís dentro das instituições. Isso importante encorajar isso, incentivar essa experiência. O fracasso desta experiência saarauí é estar criar um vazio, e esse vazio vai ser preenchido por extremismos que afetam a nossa região. Nós achamos que somos um ator responsável neste conflito, um ator que a Europa tem de ter em conta e com o qual tem de colaborar.

Depois de todos estes anos de espera, teme que quando o referendo de autodeterminação for realizado se possa obter um resultado a favor de Marrocos, visto que a população marroquina no Saara Ocidental tem vindo a aumentar?

Creio que quando fizemos os acordos de paz, em 1991, também estabelecemos quem iria participar no referendo. Dissemos que a base dos votantes seria o recenseamento realizado pela potência colonial espanhola em 1975. Esse era o acordo. Quem participa no referendo? Os votantes são os habitantes do Saara Ocidental e que estão neste recenseamento.

Mas Marrocos protestou e o antigo secretário-geral da ONU disse: muito bem, vamos dar a possibilidade de votar a quem viveu no território, seis anos seguidos ou 12 anos alternados. Isto para dar a Marrocos a possibilidade de incluir os seus colonos. No final, as Nações Unidas instituíram uma comissão de identificação de eleitores. Essa comissão de identificação verificou todas as pessoas que nós e os marroquinos consideravam que podiam participar no referendo.

O resultado foi que a comissão de identificação das Nações Unidas, da MINURSO, publicou uma lista dos votantes na qual não constavam os marroquinos. De destacar que quando Marrocos aceitou a ideia do referendo, pensou que podia fazer o seguinte: quantos são os saarauís? São 100 mil, 200 mil pessoas? Vou trazer 300 mil pessoas de Marrocos. Pensavam que podiam fazer com que estas pessoas passassem por futuros eleitores. Mas as Nações Unidas não aceitaram isto e elaboraram um Censo muito claro, muito transparente, que é a base do futuro referendo que queremos. Mas sim, Marrocos continua a levar muitos colonos para o Saara Ocidental, que trabalham em várias áreas, na pesca, na exploração dos fosfatos. Mas eles não são como os bôeres na Africa do Sul, trata-se de uma migração económica que chegou com a ocupação e que está disposta a voltar a Marrocos.

Já falou várias vezes na questão de Timor como exemplo para o que atualmente se passa no Saara Ocidental. O que espera de Portugal, a nível diplomático, ou económico?

Portugal é um país importante da União Europeia e no Mediterrâneo. Portugal não tem um passado colonial no Saara Ocidental. Tem boas relações com todos os protagonistas deste conflito. Portugal pode convencer Espanha, França e outros países europeus, a fazerem o que Portugal fez com Timor. Portugal, para nós, é um exemplo de uma boa política que resolveu um conflito muito semelhante a este no Saara Ocidental.

Nas Nações Unidas, Portugal pode ajudar à obtenção de uma solução pacífica através de um referendo. A Frente Polisário tem uma representação e quer manter essa relação. Queremos que o Governo e as autoridades de Portugal nos ajudem a levar a paz à nossa terra. Nós temos muito a ganhar com isso. Portugal também tem muito a ganhar, e a região também tem muito a ganhar, em estabilidade e desenvolvimento.
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