Desde a rebelião do fim-de-semana, o futuro do grupo mercenário russo de Evgueny Prigozhin tem suscitado dúvidas, apesar de ser ter transferido para a Bielorrússia para evitar retaliações do Kremlin. Presente há anos no Médio Oriente e em África, servindo interesses políticos externos do Presidente russo, Vladimir Putin, a uma fração do custo do exército, o grupo poderá agora perder os contratos firmados sob a influência do senhor do Kremlin.
Palavras que parecem contradizer o próprio responsável pela diplomacia russa, Sergei Lavrov, que há apenas dois dias garantiu que o grupo iria continuar a operar especificamente em África.
Os Wagner têm auxiliado desde 2018 o governo da República Centro Africana (RCA) a combater rebeldes armados, ao lado de militares russos enviados como "conselheiros".
Moscovo sublinhou que os militares russos irão continuar a trabalhar na RCA, mas referiu que o grupo paramilitar liderado por Evgueny Prigozhin foi contratado de forma autónoma.
O grupo opera ainda no Mali, onde a junta militar no poder depende dos mercenários para conter uma revolta jihadista, na Líbia e no Sudão.
Receio de novas rebeliões
Até agora financiado diretamento por fundos estatais russos, o Grupo Wagner caiu em desgraça após se ter rebelado contra as chefias militares moscovitas, de sexta-feira para sábado, lançando uma ofensiva na própria Rússia. O líder do grupo, Evgeny Prigozhin, acabou por ordenar o recuo sob promessa de amnistia e aceitando transferir as suas bases para a Bielorrússia.
Por outro lado, Moscovo ofereceu aos combatentes Wagner a alternativa de se alistarem no exército russo.
"Isto pode tornar-se um problema", referiu a mesma fonte, "se estas forças Wagner foram absorvidas nas fileiras russas do dia para a noite". "Quando assinaram contratos com as forças Wagner, estes países não subscreveram uma presença militar russa", acrescentou.
Os Wagner em África têm contudo preenchido um vácuo securitário e são difíceis de substituir sem serem criadas novas dependências externas aos Governos dos países onde operam.
Forças norte-americanas defrontaram diretamente homens Wagner na Síria, mas a milícia está ativa principalmente em África, onde terá estacionados 5.000 homens, e onde possui fortes laços com os respetivos governantes.
Mais recentemente, os wagneritas desempenharam um papel central na guerra na Ucrânia, conduzindo muitas das operações mais sangrentas contra o exército ucraniano.
Organização criminosa
Os operacionais do grupo são sistematicamente acusados de recorrer a violência excessiva e de violações dos direitos humanos nos países onde operam.
"São uma influência desestabilizadora", considerou o porta.voz do Pentágono, o general brigadeiro Patrick Ryder, "e certamente uma ameaça, sendo por isso que foram declarados uma organização criminosa transnacional".
O grupo é ainda acusado de explorar diretamente e de forma abusiva os recursos naturais dos países onde operam, nomeadamente em África, de forma a financiar-se.
Há também rumores de recrutamentos forçados entre as populações locais. Muitos destes combatentes terão sido transferidos para as unidades que combatiam na Ucrânia.
A dispersão do grupo por vários países e as baixas registadas na frente ucraniana forçaram entretanto Evgueny Progozhin a acordar com Moscovo o alistamento no grupo de homens detidos nas prisões russas, para repor os contingentes.
Garantindo a liberdade ao fim de seis meses de combates, caso sobrevivessem, muitos destes ex-condenados são cegamente leais a Prigozhin, ele próprio um ex-condenado.
Mali garantido
Após a rebelião do fim-de-semana contra Moscovo, diversas vozes previram o fim do Grupo Wagner, mas Prigozhin não tem essa expectativa, tendo revelado segunda-feira que as suas ações se destinaram precisamente a garantir-lhe a "sobrevivência".
Esta não parece estar em causa para já, pelo menos no Mali, onde os mercenários têm sido cruciais no auxílio às forças malianas para conter e controlar rebeliões de cariz jihadista e desarmar grupos civis de auto-defesa resultantes da insegurança.
Uma das razões para a contratação dos Wagner por parte da junta militar que governa o Mali, após dois golpes de estado em 2020 e 2021, foi a aparente ineficácia da MINUSMA, a força de paz das Nações Unidas presente no país desde 2013 e cujo mandato termina dentro de dois dias e que não foi renovado.
O executivo maliano tinha pedido para a MINUSMA "alterar a sua postura estática, sair das bases e realizar ações ofensivas e patrulhas", protegendo as bases militares malianas, "em vez de se limitar a proteger-se a si própria".
Mais de 300 soldados da paz da MINUSMA perderam a vida desde 2013, tornando-a a segunda operação de paz da ONU mais mortífera de sempre. As exigências da Junta do Mali foram rejeitadas e há duas semanas esta pediu às Nações Unidas para as tropas da MINUSMA abandonarem o país "sem tardar".
Decisão que irá tornar o país ainda mais dependente das Wagner.
Acusações de atrocidadesAlém de denunciar a ineficácia da MINUSMA, o Mali rejeita o que considera a influência de França, antiga potencia colonizadora do Mali, nesta força da ONU. "A MINUSMA parece ter-se tornado parte do problema, ao alimentar tensões comunitárias, exarcebadas por algumas alegações graves que são muito prejudiciais à paz, reconciliação e coesão nacional no Mali", afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros do Mali, Abdoulaye Diop.
Em causa um relatório das Nações Unidas publicado no mês passado, que acusou tropas malianas e pessoal militar estrangeiro, alegadamente Wagner, de cometerem atrocidades em março de 2022, incluindo execuções sumárias, violações e tortura, em Moura, uma cidade do centro sul do país.
O exército do Mali alega que "apenas combatentes terroristas" foram mortos em Moura. Testemunhas mencionadas no relatório na ONU afirmam contudo que as forças armadas malianas e "homens brancos armados" foram de casa em casa, juntando homens - mesmo aqueles que apenas mostravam medo - e executando-os a tiro.
As fileiras Wagner incluem, além de russos e de africanos, homens de origem síria e líbia, de acordo com a organização norte-americana sem fins lucrativos Sentry, referindo-se concretamente à CAR.
Na República Centro Africana, fontes militares afirmaram à Sentry que tropas Wagner têm estado envolvidas em atrocidades em massa, incluindo em minas de ouro e de diamantes de que se apropriaram.
A violência sexual será ainda utilizada pelo exército federal e o Grupo Wagner "como forma de guerra psicológoca para aterrorizar e submeter comunidades inteiras", refere ainda o relatório da Sentry.
Secar as fontes de financiamento
Alguns analistas antecipam um perigoso vácuo de segurança no Sahel, caso as forças Wagner sejam neutralizadas e nacionalizadas por Moscovo. Os mercenários poderão ainda tornar-se uma ameaça na região se escaparem ao controlo dos governos locais.
Ao contrário dos contingentes estacionados na Ucrânia, os mercenários do grupo no estrangeiros são motivados pela ganância e não vieram de prisões. A mística que rodeia o grupo, especialmente depois do avanço registado
em 24 horas na Rússia entre sexta e sábado passados, sem aparente
oposição, poderá também ter sido reforçada.
Em África, os combatentes são pagos por Prigozhin, cuja rede de empresas privadas comercializa minerais da RCA e ouro extraído do Sudão. Estimativas do Financial Times reportam negócios do império mineiro de Prigozhin avaliados em 250 milhões de dólares, entre 2018 e 2021.
Sanções impostas pelo Tesouro dos EUA esta terça-feira começaram já a visar empresas que escoam o ouro e os diamantes recolhidos pelos Wagner, de forma a secar as suas fontes de financiamento, prejudicando a sua ação e influência.
A perda do apoio de Moscovo poderá vir a criar dificuldades no acesso do grupo a equipamento militar pesado, até agora fornecido por ordem de Putin, a menos que o governo bielorrusso, que se propôs acolher os mercenários evitando uma crise grave na vizinha Rússia, se substitua como fornecedor.
Até agora, nem a RCA nem o Mali reportaram movimentos especiais de tropas ou alterações táticas das forças Wagner nos dias seguintes à rebelião. Os mercenários têm prosseguido as suas operações contra insurgentes locais ao lado das forças militares daqueles países.