Dia 2 de maio, o responsável pela diplomacia russa, Sergei Lavrov, provocou uma tempestade internacional ao afirmar irritado que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, podia bem ser Nazi mesmo sendo judeu já que "Hitler também tinha sangue judeu" e porque "os piores antissemitas são habitualmente judeus".
Já esta terça-feira, Lavrov acusou Israel de apoiar os neonazis na Ucrânia, escalando o feudo.
Lavrov sabe que as alegações russas sobre a importância do nazismo vigente na Ucrânia são propaganda sobretudo para consumo interno.
Saber que Zelensky personifica uma Ucrânia que pretende libertar-se do ascendente russo e que o elegeu democraticamente por mais de 70 por cento dos votos também fez Lavrov precipitar-se esta segunda-feira.
O Kremlin necessita de demonizar o presidente ucraniano e tudo o que ele simboliza e o caminho mais direto para tal é acusá-lo de fascismo, algo que também evidencia a narrativa do Kremlin como herdeiro das glórias russas e soviéticas.
Exportadora de nazis
Uma vez que, de acordo com sondagens recentes, 68 por cento dos russos acreditam que a Ucrânia é um estado nazi ameaçador, a narrativa está a ser bem-sucedida dentro de portas.
O Kremlin necessita de demonizar o presidente ucraniano e tudo o que ele simboliza e o caminho mais direto para tal é acusá-lo de fascismo, algo que também evidencia a narrativa do Kremlin como herdeiro das glórias russas e soviéticas.
Exportadora de nazis
Uma vez que, de acordo com sondagens recentes, 68 por cento dos russos acreditam que a Ucrânia é um estado nazi ameaçador, a narrativa está a ser bem-sucedida dentro de portas.
O que os russos ignoram é o facto da Rússia ter ela própria um grave problema de nacionalismo nazi e de ter tentado livrar-se dele exportando-o para a Ucrânia.
Dmitry Demushkin, um ultranacionalista russo, tem afirmado que, em 2014, o então vice-primeiro-ministro Dmitry Rogozin o convidou a levar os seus seguidores para lutar no leste da Ucrânia, prometendo-lhe o governo de uma cidade. A sua recusa valeu-lhe ser perseguido e preso.
Histórias semelhantes foram contadas pelo mercenário afiliado do grupo Wagner e neonazi acusado de sadismo, Alexei Milchakov, que afirmou que ele e o russo neonazi Yan Petrovsky, entre outros, foram pagos para lutar enquanto mercenários na Ucrânia. Ali, Milkachov fundou o seu próprio grupo de mercenários neonazis, Rusich, e tornou-se conhecido por cortar as orelhas dos corpos dos seus inimigos.
Outras formas de cultura neonazi infiltraram-se na Ucrânia a partir da Rússia, parcialmente instigadas ou pagas pelo Kremlin, incluindo clubes de futebol neonazis, grupo de artes marciais combinadas (MMA) e bandas de metal do submundo musical.
Denis Nikitin, um hooligan russo de futebol e personalidade do mundo MMA de extrema-direita, vive há anos na Ucrânia, onde organizava combates de MMA em Kiev, alegadamente usando os grupos para recrutar simpatizantes neonazis.
Outra forma dos russos neonazis atraírem ucranianos teria sido em concertos de música Metal, incluindo da banda russa M8L8TX (Martelo de Hitler), que tocou frequentemente na região de Kharkiv.
Feitiço contra o feiticeiro
São indícios de que o Kremlin tentou usar os seus próprios elementos neonazis para criarem problemas na Ucrânia e talvez semear as bases para o argumento da desnazificação e recuperação do território ucraniano para a Rússia, perdido na era pós-soviética.
Outra razão pode estar subjacente. Durante anos, de acordo com a sua tática de dividir para reinar, o poder russo entregou aos elementos mais extremos da sociedade as ações de limpeza e controlo de determinados elementos. “Ao longo dos anos houve na Rússia espancamentos em massa de pessoas com a cor da pele ou formato dos olhos ‘errados’”, escreveu Igor Eidman, um sociólogo russo e comentador político, em setembro de 2020. “Mas não se registaram praticamente atentados políticos contra oficiais das forças de segurança, responsáveis do estado ou oligarcas”.
O feitiço acabou por se virar contra o feiticeiro em 2007, quando os grupos Nazi começaram a fugir ao controlo do Kremlin. “Os nazis enveredaram pelo terror em massa, destabilizando o país. Começaram a fazer explodir e a destruir mercados”, escreveu Eidman.
As autoridades decidiram então por um fim no seu projeto Nazi durante os protestos de Euromaidan na Ucrânia. “O Kremlin decidiu que os nacionalistas podiam tornar-se uma força de protestos não só em Kiev mas também em Moscovo. Por isso, em 2014, tentaram mandá-los para o matadouro do Donbass. Os que recusaram foram detidos”, acrescentou Eidman.
O autor concluiu que, do dia para a noite, os ultranacionalistas russos se tornaram inimigos do Estado e começaram a ser detidos entre 2014 e 2015. Muitos fugiram para a vizinha Ucrânia e tornaram-se inimigos de Putin.
Entre eles encontravam-se Alexander Parinov, procurado pelo assassínio de um advogado e jornalista, que será agora membro do batalhão Azov, assim como Sergey Korotkikh, fundador do maior grupo de ultranacionalistas russos, a Sociedade Nacional Socialista e que é atualmente um dos membros de topo do Azov.
Roman Zheleznov, do movimento de extrema-direita Restrukt, que caça membros da comunidade homossexual na Rússia, também terá ingressado no Azov. Alexei Korshunov, membro da Organização de Combate de Nacionalista Russos [BORN], neonazi, responsável por muitos assassínios e suspeito de matar o ativista antifa Ivan Khutorskoi, terá fugido para Zaporizhzhia, na Ucrânia.
"Putin nem sequer é russo"
“O Kremlin percebeu que a extrema-direita podia tornar-se uma ameaça à estabilidade política, não só para trabalhadores migrantes e estudantes africanos”, considerou por seu lado o analista russo Alexander Verkhovsky, diretor do Centro Sova, que se ocupa do nacionalismo e racismo na Rússia pós-soviética. “Houve várias vagas de repressão. A minha hipótese é que as nossas autoridades tivessem receio quanto aos que participavam na guerra na Ucrânia e que regressavam muito frustrados”, afirmou ao Daily Beast.
O que alguns dos nacionalistas russos fizeram sublinhou ainda, foi engrossar as fileiras dos neonazis ucranianos já existentes. Para muitos, a traição política do Kremlin e a razão pela qual muitos combatem atualmente a Rússia na Ucrânia explica apenas parte do problema.
“Os nossos de extrema-direita são racistas brancos acima de tudo”, disse Verkhovsky. “Putin é visto como um inimigo porque convida milhões de não-eslavos de outros países, o que é visto como uma invasão. Por isso é visto como um traidor do nacionalismo”.
Ou, nas palavras de um soldado do batalhão Azov numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, em 2014, “Putin nem sequer é russo, Putin é um judeu”.
De certa forma, a tática russa de exportar para Ucrânia os seus neonazis virou-se contra si com estes a lutarem contra os russos.
O caso Azov
Mesmo se o seu peso político se tem mantido negligenciável nos últimos 30 anos, com exceção da votação obtida em 2012, a extrema-direita ucraniana conseguiu instalar-se socialmente, “tem revelado potencial para ações violentas de protesto e tem mantido uma forte presença local nalgumas regiões, especialmente no leste da Ucrânia”, escreveu Melanie Mierzejewski-Voznyak, para o Manuel de Oxford para a Direita Radical publicado em 2018.
Foi precisamente nessa região, o Donbass, que a extrema-direita ganhou maior popularidade entre os ucranianos, através do batalhão Azov, constituído maioritariamente por simpatizantes nazis voluntários, que ali combateu sobretudo em 2014 as fações pró-russas apoiadas pelo Kremlin. Nesse ano conseguiram expulsar os pró-russos de Mariupol e ganharam entrada direta para o imaginário ucraniano.“Se os ucranianos os valorizam, não é pela sua ideologia nazi”, afirmou contudo Izabella Tabarovsky , do Wilson Center e responsável pelos blogs deste sobre a Rússia e a Ucrânia. “O que valorizam é a sua posição patriótica. Valorizam um grupo que combate o inimigo que pensa que o seu país não tem direito a existir”.
Os sucessos do batalhão Azov levaram a que fossem inseridos na Guarda Nacional Ucraniana em 2014, tendo o seu líder, Andriy Biletsky, um supremacista branco, sido condecorado pelo então presidente ucraniano Petro Poroshenko.
O seu peso nas forças armadas sempre foi, apesar disso, residual. Possui cerca de 1.000 homens, residuais nos 50.000 combatentes da Guarda Nacional parte do exército ucraniano de 250.000 homens [números avançados pela BBC].
Nos últimos anos os soldados do próprio batalhão foram sendo substituídos, sobretudo depois de Biletsky ter saído para formar um partido político. Os novos recrutas “estão ali sobretudo devido à reputação de combatentes duros do batalhão, não pela ideologia do regimento”, afirmou Andreas Umland, do Centro de Estocolmo de Estudos Europeus do Instituto Sueco de Assuntos Internacionais. Atualmente, apenas 10 a 20 por cento do batalhão serão Nazis.
Engrandecer o monstro
Izabella Tabarovsky lembrou ainda recentemente em entrevista que as alegações russas sobre a influência nazi na Ucrânia não começaram com a invasão desde ano. Podem ser datadas da anexação da Crimeia e da guerra no Donbass, em 2014. “Tem havido uma campanha intensiva de demonização”, afirmou a investigadora, fazendo notar que as referências ao nazismo ressoam “entre a base de apoiantes de Putin na Rússia”, devido “à memória histórica formada em torno da Segunda Grande Guerra e a vitória sobre os Nazis. É uma parte forte da identidade nacional” russa.
A influência nazi na Ucrânia tem na verdade estado a ser hipervalorizada para alimentar a propaganda russa.
Se em 2012 a extrema-direita ucraniana conseguiu 10,4 por cento dos votos em legislativas, o seu peso caiu desde então a pique, para seis por cento em 2014 e dois por cento em 2019.
“Durante muita da história ucraniana pós-soviética, a direita radical tem-se mantido na periferia política, tendo pouca influência nas políticas nacionais”, escreveu Melanie Mierzejewski-Voznyak.
Desde a declaração de independência ucraniana há 30 anos, “o apoio eleitoral à direita radical nacional só esporadicamente excedeu os três por cento”, acrescentou a historiadora, notando que “nenhum candidato presidencial da extrema-direita conseguiu alguma vez mais de cinco por cento do voto”.
A influência da extrema-direita na cena política ucraniana é inferior à das de muitos países europeus, incluindo a Áustria e sobretudo a França, lembram diversos analistas.