Uma centena de anos e 2.500 quilómetros separam a Revolução Francesa do fim do século XVIII e a Revolução Russa do princípio do século XX. A História não se repete mas as semelhanças entre estes dois acontecimentos multiplicam-se. Estas começam logo no próprio conceito que a palavra revolução consigo transporta: uma “mudança brusca e violenta na estrutura económica, social ou política de um Estado” ou o ato de romper com o que está atrás.
Na Rússia, Estaline assume-se como ditador absoluto em 1929, depois de uma longa caminhada de controlo do partido, das instituições russas e de perseguição aos rivais. Lidera o regime da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sendo responsável por sucessivas campanhas de terror em massa e as mortes de milhões de pessoas.
Jacobinismo e Bolchevismo
A associação entre a revolução da Liberdade, Igualdade e Fraternidade e a revolução russa é feita há décadas. Apesar de a revolução francesa ser amplamente festejada e apresentada como um ícone – não obstante a forte repressão e violência que trouxe consigo, - a associação entre os dois acontecimentos visa essencialmente denegrir o pensamento soviético.
Ainda antes de 1917, Lenine era acusado de ser um jacobino, considerando-o próximo do pensamento que marcou o período mais negro da revolução francesa. A associação mantém-se depois da revolução, com o histórico dirigente soviético a ser acusado de querer imitar os jacobinos franceses.
A república jacobina é precisamente o mais sangrento período da revolução francesa, marcada pela ascensão ao poder dos próprios jacobinos e do Comité de Salvação Pública liderado por Robespierre.
Multiplicam-se as execuções sumárias de milhares de pessoas, com a convicção de que a guilhotina garantiria o sucesso de uma revolução ainda em curso, num processo em que o povo convive com a pequena burguesia.
A analogia entre bolcheviques e jacobinos é amplamente trabalhada pelo historiador francês Albert Mathiez em 1920, que vê uma semelhança quase perfeita entre os dois. Mathiez recorda que Lenine se serve da revolução francesa como exemplo, tentando adaptá-la à realidade russa, e que este mandou mesmo edificar uma estátua de Robespierre em Moscovo (o que nem em França aconteceu, fruto da forte controvérsia em relação a Robespierre e à política de terror prosseguida entre 1793 e 1794).
Para Mathiez, Jacobinismo e Bolchevismo são ambos ditaduras de classe, nascidas da guerra e que usam a repressão e a requisição da propriedade privada para transformar a sociedade. Uma revolução que, mantém este historiador, ambos querem ver ultrapassar fronteiras e mudar o mundo.
O historiador francês atribui ainda aos dois regimes sacrificarem os valores que proclamam com base num alegado interesse público, como a abolição da pena de morte, a liberdade de imprensa e a paz como forma de governança. Um retrato que é feito ainda nos primeiros anos da revolução, sem ter por isso em conta os abusos que se seguiriam no período estalinista.
Os bolcheviques não aceitam esta analogia plena, apesar de alguma inspiração ser inegável. Na apresentação das diferenças entre jacobinos e bolcheviques, Trostky aponta o dedo à “utopia” francesa e à crença numa “verdade acima das classes”. Os bolcheviques enfatizam sempre a força do proletariado revolucionário, rejeitando ainda a violência do terror da Primeira República gaulesa. “O seu método era de guilhotinar à mais pequena divergência. O nosso é de ultrapassar teoricamente e politicamente as divergências. Eles cortavam cabeças, nós promoveremos a consciência da classe”, escrevia Trotsky.
O pensamento soviético elogia o combate feito pela revolução francesa à Europa feudal, aponta o dedo à entrega da propriedade privada à burguesia e à violência que marcou a República Jacobina.
Termidor e Estaline
A associação entre Jacobinismo e Leninismo tem pouco de consensual mas não esgota as semelhanças entre a revolução francesa e a russa. A semelhança entre o Termidor francês e a tomada de poder de Estaline é bem mais consensual.
O Termidor foi um golpe que derrubou Robespierre, os jacobinos e a pequena burguesia, marcando o regresso da alta burguesia ao poder. Ocorreu a 27 de julho de 1794 (9 Termidor no calendário revolucionário) representa o fim do jacobinismo, o princípio do Diretório (1795-1799) e do que viria a ser o período de Napoleão Bonaparte (1799 a 1815). É o princípio do fim da revolução francesa.
Vencido por Estaline e no exílio, Trotsky recorre ao Termidor para caracterizar o estalinismo. Vê o Termidor soviético como uma teia que Estaline foi construindo ao longo de vários anos, ao controlar o partido desde 1922. Um aglomerado de burocracia, destruição dos sovietes e afastamento das bases que culminaram na sua ascensão à liderança da URSS e de uma mortífera ditadura. Nessa leitura, o Termidor soviético começa não em 1924 (com a morte de Lenine) mas logo em 1922, com a acumulação de poderes nas mãos de Estaline.
Para Trotsky, a vitória de Estaline cria uma União de Repúblicas Socialistas Soviéticas dirigida por escolhidos da classe trabalhadora, mas que já não lhe pertencem verdadeiramente. São trabalhadores imbuídos de uma aura czarista, como se absorvessem o que tivesse restado da burguesia e nobreza derrotada em 1917.
Isaac Deutscher, biógrafo de Estaline e Trotsky, vai ainda mais longe. Vê Estaline como alguém que incorpora três fases da revolução francesa: a fase jacobina, o Termidor e até a fase napoleónica que se seguiu, embora sem o carisma do imperador.
Ao longo dos anos multiplicaram-se os historiadores e filósofos que leram a revolução soviética à luz da revolução francesa. Se parece evidente que há pontos de confluência, também é certo que essa mesma leitura pode transportar segundas intenções. Verídica ou não, a proximidade entre jacobinos e bolcheviques é uma arma de arremesso contra Lenine, usada nomeadamente pelos mencheviques.
Da mesma forma, Trotsky recorre ao Termidor Soviético e à Revolução traída para atacar Estaline que o derrotou e mandou assassinar em 1940, num dos milhões de homicídios de que o regime estalinista foi culpado ao longo do século XX.
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