Resgatados da morte. A bordo do navio que salva milhares de migrantes

São resgatados no Mar Mediterrâneo e o navio - Aquarius - da SOS Mediterranée é o passaporte para entrarem em Itália. Muitos chegam com septicemias, sarna, desidratações. Cerca de 10% das mulheres estão grávidas e algumas foram violadas. A RTP esteve dentro de um navio de resgate em Catania, na Sicília.

O Aquarius aproxima-se de mais um barco cheio de refugiados em aflição. A equipa tem tudo pronto para resgatar os migrantes para o navio. Assim que se aproximam, a primeira coisa que dizem é: "Olá, estamos aqui para vos ajudar. Há alguém no barco que esteja ferido ou doente?" A mensagem é repetida em três línguas: inglês, árabe e francês. 

E logo de seguida pedem para que "olhem para o chão". Muitas vezes as pessoas estão a pisar outras e não se apercebem. "Acontece tirarmos toda a gente e encontrarmos alguém no fim. Já encontrámos pessoas mortas nos barcos". 


O relato é de Madeleine Habib, uma das coordenadoras de operações do navio de resgate da SOS Mediterranée. Nos barcos laranja de borracha, que chegam a albergar centenas de pessoas, é raro encontrar alguém que não esteja desidratado, com uma infeção urinária ou, o mais comum, com uma septicemia -- uma infeção generalizada.

Alguns têm no corpo queimaduras, provocadas pelas horas que passaram demasiado colados a demasiada gente. Com água e combustível à mistura, a probabilidade de queimaduras aumenta. "A água entra no barco, mistura-se com o combustível e aquilo entra na pele e causa queimaduras. Cheiras logo, assim que saem do barco. Damos rapidamente um banho com sabão", conta-nos o enfermeiro Tim Harrison.


O Aquarius é um dos cinco navios que faz operações de resgate no Mar Mediterrâneo. Transporta para a Sicília, Itália, os migrantes e/ou refugiados que serão depois levados para campos ou centros para requerentes de asilo. A equipa de resgate desconhece o que o futura lhes reserva. Encarregam-se apenas de cuidar de homens, mulheres e muitas crianças sozinhas durante dia e meio ou dois dias. 

Assim que entram no navio, despem os coletes salva-vidas e a cada um é entregue um kit. Contém uma manta, um fato para quem queira trocar de roupa e um lenço para as mulheres que o queiram usar. 

Cada pessoa recebe uma garrafa de água - "que tem de ser reutilizada, para não termos milhares de garrafas de água no fim da viagem", estabelece Madeleine - e ainda um sumo. Depois é-lhes oferecido chá quente, um pacote de Adventure Food e bolachas hiper-calóricas para repor defesas. 


O jantar é uma oportunidade para pedir às pessoas para se levantarem e, assim, perceber se há alguém que não se consegue mexer ou que esteja mal disposto. É também uma oportunidade para estabelecer contacto com quem chegou ao navio. Um contacto que se quer o mais amistoso possível, independentemente do estado em que as pessoas estão. 

"Na última operação, um terço das pessoas tinha escabiose (sarna), uma infeção contagiosa da pele. Usamos desinfetante, claro, mas tentamos sempre fazer a primeira abordagem com um aperto de mão. Por norma não usamos máscara nem luvas, às vezes até evitamos usar óculos de sol, para não agirmos como se eles fossem aliens", explica Madeleine. 

São já 110 operações de regate em 19 meses de Aquarius em ação. O processo arranca no alerta dado por quem está em apuros. "Na maioria dos barcos há um telefone satélite, que lhes é dado pelos contrabandistas. Eles sabem que, assim que chegarem a determinada área, ou depois de viajarem 5 a 6 horas, devem fazer uma chamada para a Marinha italiana". O número está gravado no telefone, que indica também as coordenadas geográficas. 

"Nós não julgamos ninguém. Nem lhes chamamos refugiados, são pessoas" 

Depois, o Centro de Coordenação Marítima faz um anúncio geral para um canal de comunicação com a localização dada pelo barco. Qualquer coisa como: "Os navios que estejam na área x estejam atentos a um barco que está na localização y". Por vezes, a SOS Mediterranée recebe uma chamada direta a pedir que coordenem a operação. 

Há barcos à deriva no Mediterrâneo durante todo o ano. Aparecem mais em alturas de bom tempo, mas também, muitas vezes, quando o mar está bravo. As ondas servem como motor para início da viagem.
"Já encontrámos um barco pequeno de borracha com 140 pessoas lá dentro e aí precisas mesmo de ter ondas para fazer a viagem, senão o barco rasga-se antes de sair da praia", nota a coordenadora.
"Já vi um parto aqui. Algumas mulheres foram violadas"



Assim que entram a bordo faz-se uma triagem médica. É aqui que se tenta estancar os problemas que ficaram da viagem - ou da vida toda. Cerca de 10% das mulheres estão grávidas, conta-nos o enfermeiro Tim Harrison. É assim em praticamente todos os barcos com refugiados. Segundo um estudo feito na Sicília, em 2014, cerca de 11% das mulheres migrantes resgatadas no Mediterrâneo estão grávidas.

Estes dados ligam-se a uma das principais questões anti-imigração: o alegado uso de "bebés-âncora" para conseguir entrar no país e prolongar a estadia. É a ideia de que as mulheres usam a gravidez e o bebé para "explorar" a proteção humanitária e internacional destinada a crianças. 

As crianças de famílias de migrantes podem tornar-se cidadãs italianas se nascerem em Itália e se lá ficarem a viver até aos 18 anos. Além disso, à chegada, se o migrante for menor de idade não pode ser expulso do país. Se houver dúvidas sobre a idade, são feitos testes para a determinar: "analisa-se a pele, os dentes", diz Tim Harison.


Mas este dado é contrariado por outros factos. Um estudo da Lancet concluiu que sete em cada oito mulheres que tinham engravidado durante a travessia - a maioria depois de um ato de violação - queriam fazer um aborto. Parte delas não pede ajuda médica para o fazer porque têm medo de ser deportadas. 

A bordo há medicação contra doenças sexualmente transmissíveis, há produtos menstruais, há até uma parteira sempre disponível. No Aquarius já nasceram cinco bebés. Um deles foi acompanhado pelo enfermeiro Tim Harrison: uma mulher da Gâmbia entrou em trabalho de parto no barco onde vinha, rodeada de dezenas de pessoas. O bebé entrou no Aquarius ainda agarrado pelo cordão umbilical e a parteira da tripulação terminou o trabalho. 

Numa outra situação, o enfermeiro Tim teve de tratar um homem que tinha sido atingido por um tiro. O tempo é curto para resolver tudo e o sistema imunitário não responde logo ao tratamento, lamenta. Na próxima operação tenta-se outra vez.

A jornalista viajou a convite do Friedrich Ebert Institute