Putin "sempre pronto a ripostar". Merkel faz balanço de ligações perigosas

por Carla Quirino - RTP
O presidente russo, Vladimir Putin, dá as boas-vindas à então chanceler alemã, Angela Merkel, durante a reunião no Kremlin, em Moscovo, a 20 de agosto de 2021 Evgeny Odinokov - Sputnik via AFP

A ex-chanceler alemã Angela Merkel comandou a maior economia da Europa durante 16 anos. Tem sido acusada de tornar a Alemanha dependente do gás russo, mas defende-se alegando que tinha dois motivos para aproximar Berlim a Moscovo: interesses comerciais e manter laços pacíficos com a Rússia.

Angela Merkel deixou a política há três anos, mas regressa com um livro, Freiheit (Liberdade), abrindo caminho a uma introspeção ao seu legado.

Com 70 anos de idade, menos dois que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, Merkel expressa preocupação com as novas ameaças vindas de Moscovo, nomeadamente a possibilidade do uso de armas nucleares.

Em entrevista à BBC, a antiga chanceler deixa claro: "Devemos fazer todo o possível para impedir o uso de armas nucleares. Felizmente, a China também falou sobre isso há um tempo. Não devemos ficar paralisados pelo medo”.

Porém, deixa um conselho: “Devemos reconhecer que a Rússia é a maior, ou pelo menos está a par dos EUA, afirmando-se como uma das duas maiores potências nucleares do mundo”.

E "o potencial é assustador", alerta Merkel.
Merkel contra a Ucrânia na NATO em 2008
Putin lançou a invasão em grande escala na Ucrânia poucos meses depois de Angela Merkel ter deixado o cargo.

Perante acusações de ter sido branda com a Rússia de Putin, durante os anos à frente do Governo alemão, Merkel defende as decisões tomadas, até porque cada uma delas tinha que ver com o contexto da época.

Acredita que a guerra na Ucrânia teria começado antes e e seria mais desastrosa, caso Kiev tivesse iniciado o processo para a adesão à NATO em 2008. Na altura, o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, também partilhou da mesma opinião.

"Teríamos visto um conflito militar ainda mais cedo. Estava completamente claro para mim que o presidente Putin não teria ficado parado ao assistir a Ucrânia integrar-se na NATO”, alegou.

"E naquela época a Ucrânia como país certamente não estaria tão preparada relativamente a fevereiro de 2022", acrescenta.

Como reação, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, discorda de tal decisão e afirma ter sido “um claro erro de cálculo" que encorajou a Rússia.
Putin “pronto a atacar”
“Desde que Putin se tornou presidente, em 2000, ele fez tudo o que pôde para tornar a Rússia uma força para ser reconhecida no cenário internacional, uma que ninguém podesse ignorar, especialmente os EUA”, escreveu Merkel.

A antiga chanceler descreve Putin como alguém "sempre à defesa para não ser maltratado e pronto para atacar a qualquer momento".

Recorda que, entre as várias vezes que o presidente russo a tentou intimidar ou perturbá-la durante os encontros, ”uma vez levou o seu cão para uma reunião, apesar de saber do medo” que Merkel tem de cães.

Mesmo assim, a ex-chanceler alemã defendeu o caminho de manter canais de comunicação abertos com Moscovo, continuando as negociações diplomáticas para aliviar as tensões e procurar soluções pacíficas, apesar dos inúmeros desafios e provocações, mesmo tendo consciência do que poderia estar à espreita.

“Ele não estava interessado em construir estruturas democráticas ou prosperidade para todos através de uma economia que funcionasse bem, seja no seu país ou em qualquer outro lugar”, continuou.

“Putin queria (e quer) que a Rússia fosse um pólo indispensável num mundo multipolar após o fim da Guerra Fria. Para conseguir isso, ele baseia-se principalmente na sua própria experiência que é no campo dos serviços secretos (KGB)”, acrescentou.

Merkel insiste que tentou conter os ataques russos à Ucrânia através da diplomacia e negociações, o que -  admite agora - acabou por falhar.
"Os autocratas fascinavam Trump”
Merkel conta que em março de 2017, em visita aos EUA, logo após Donald Trump assumir o mandato presidencial, o magnata colocou "uma série de perguntas". O foco estava no histórico de Merkel na Alemanha Oriental, onde nasceu, e na relação com Vladimir Putin. 

"Ele estava claramente muito fascinado com o presidente russo [...]. Nos anos seguintes, tive a impressão de que era atraído por políticos com tendências autocráticas e ditatoriais", relatou.

Citada na Deutsche Welle, acrescenta que Trump "alegou que eu tinha arruinado a Alemanha ao aceitar muitos refugiados em 2015 e 2016, acusou-nos de não gastar o suficiente com defesa e criticou-nos por práticas comerciais injustas". Afinal a existência de tantos carros alemães em Nova Iorque era "uma pedra no sapato de Trump".

"Estávamos a falar em dois níveis diferentes – Trump, no emocional; eu, no fatual. Quando ele finalmente prestava atenção aos meus argumentos, em geral, era para transformá-los em novas acusações", descreve.

Porém, "é muito importante sabermos quais são as nossas prioridades, apresentá-las claramente e não ter medo, porque Donald Trump pode ser muito direto", argumenta a ex-chanceler.

Isto porque "Trump expressa-se muito claramente. E se nós fizermos isso há um certo respeito mútuo. Essa foi a minha experiência", remata.
Alemanha, "o homem doente da Europa"

As relações da Europa com a Rússia foram "lamentavelmente" abaladas após a invasão em grande escala da Ucrânia, afirma a Merkel. Todavia, a crise migratória de 2015, quando a ex-chanceler abriu as portas da Alemanha para receber de um milhão de requerentes de asilo, terá sido um dos pontos altos do seu Governo.
 
Um outro foi ter avançado com a construção de dois gasodutos diretamente ligados à Rússia.

Merkel sublinha que tinha dois motivos para construir os oleodutos: interesses comerciais alemães e também manter laços pacíficos com a Rússia.

A discórdia de outros membros da UE e NATO foi clara na altura. O deputado polaco Radoslaw Fogiel alega que o dinheiro alemão do gás encheu os cofres da Rússia para ser usado para financiar a invasão da Ucrânia.

A indústria alemã foi diretamente atingida pelas sanções à energia russa, refletindo-se num problema energético genérico que assolou a Europa. O setor foi entretanto forçado a procurar outros fornecedores, comprando agora GNL mais caro.

Na Alemanha, Merkel é agora apontada de "administrar" crises sucessivas e de não conseguir fazer reformas de longo alcance, para proteger o país e a UE.

O país, conhecido como motor do bloco, está a ser rotulado por alguns como "o homem doente da Europa".
Merkel, o telefone da Europa
A antiga chanceler já foi considerada como a mulher mais poderosa do mundo. O ex-primeiro-ministro italiano Matteo Renzi descreve-a mesmo como "a chefe da União Europeia".

"Lembram-se de quando [o ex-secretário de Estado dos EUA] Henry Kissinger costumava perguntar qual é o número de telefone da Europa?", recorda Renzi, para afirmar: "A minha resposta é, claramente, o número do telemóvel de Angela Merkel".
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