Purga na Turquia faz reviver prática política com tradições desiguais no mundo
A resposta das autoridades turcas ao fracassado golpe de Estado de 15 de julho resultou na detenção e afastamento de dezenas de milhares de pessoas, uma vasta "purga pacífica", mas que recorda ações semelhantes por todo o mundo.
As purgas políticas, que podem ser pacíficas -- como sucede atualmente na Turquia -- ou violentas, resultam num simples despedimento, prisão, exílio ou morte de membros de organizações políticas ou governos, ou de apoiantes de ideologias políticas.
O primeiro caso aplica-se de momento ao país euroasiático. Os números oficiais indicam que nos últimos dois meses pelo menos 32.000 pessoas foram presas na Turquia no âmbito das investigações e 70.000 estão a ser alvo de inquéritos, acusadas de envolvimento com a "confraria" do ex-imã Fethullah Gülen, exilado nos EUA desde 1999 e acusado por Ancara de infiltração nas instituições estatais e de fomentar o violento e efémero golpe com o seu "Estado paralelo".
A resposta do regime turco do Presidente Recep Tayyip Erdogan foi imediata, através da instauração do estado de emergência em 20 de julho, prolongado por mais três meses a partir de 19 de outubro, uma intensa campanha político-ideológica contra a "Organização Terrorista Fethullah Gülen" (Fetullahçi Terör Örgütü, FETÖ), com frases mobilizadoras, grandes bandeiras turcas e imagens do Presidente espalhadas pelo país, homenagens aos "mártires" e aos "veteranos" que nas ruas resistiram ao golpe (um balanço de cerca de 250 mortos e mais de 2.000 feridos), crescente envolvimento nas guerras da Síria, Iraque e no conflito com os curdos.
O antigo aliado de Erdogan tornou-se no seu principal inimigo, e a sua extradição já foi solicitada às autoridades norte-americanas, com o processo a decorrer.
Todos os setores da sociedade turca foram abrangidos pelas purgas: media, magistratura, diplomacia, educação, polícia, forças armadas, serviços de informações, meios religiosos e desportivos. Apenas no meio militar, num país com tradição de golpes militares, foram detidos ou suspensos mais de metade dos generais.
A liderança turca decidiu libertar no verão 38.000 prisioneiros de delito comum para dar lugar aos novos detidos e foi sugerida a reintrodução da pena de morte, que continua em discussão.
As autoridades turcas admitem ainda a construção de 174 novas prisões nos próximos cinco anos -- incluindo um grande centro em Ancara onde devem decorrer os julgamentos --, para aumentar a capacidade prisional em 100.000 lugares.
A oposição parlamentar, em particular os republicanos do CHP e o partido pró-curdo HDP acusaram o poder de se aproveitar da situação de exceção para silenciar a generalidade dos seus críticos através de um clima de medo e intimidação, enquanto o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Mevlüt Cavusoglu, reconhecia na quarta-feira que muitos funcionários podem ter sido despedidos "por erro".
Mais de 70.000 processos já foram apresentados para contestar as medidas de despedimento ou afastamento de funções considerados injustos, após Ancara ter formado comissões nas quais os indiciados podem recorrer, para além de prometer julgamentos "justos e equilibrados".
As purgas estão geralmente associadas a regimes autoritários ou totalitários, e os exemplos são muitos ao longo das últimas décadas e em todos os continentes, com os seus líderes a utilizaram métodos sofisticados para "purgar" os reais ou supostos inimigos políticos.
Numa purga política, os Estados ou as elites no poder usam as forças militares, policiais e os serviços de segurança para afastar as pessoas consideradas "desleais, perigosas ou indesejáveis", em particular as que podem deter posições no governo, na economia, ou capacidade para "influenciar" a sociedade.
A Alemanha de Hitler, a URSS de Estaline, a China de Mao Zedong no decurso da "revolução cultural", as ditaduras militares na América Latina, diversos regimes africanos (ex-Zaire, por exemplo) do Médio-Oriente (Iraque) ou da Ásia (Birmânia, Coreia do Norte, Indonésia) já estão associadas a purgas políticas violentas e de enorme dimensão. Mas também existem purgas cometidas ou apoiadas pelos sistemas democráticos, como sucedeu com os Aliados após a Segunda Guerra Mundial ou atualmente sucede no Egito após o golpe militar de julho de 2013.
No século XX, a Europa da década de 1930 foi cenário de duas purgas brutais. Em 1934, um ano após a sua subida ao poder, as `Sturmabteilung` (Secção Tempestade, SA, os "camisas castanhas"), continuavam a atuar como a ala paramilitar do partido nazi. Lideradas por Ernst Roehm, foram decisivas durante a década de 1920 e inícios da seguinte, pela violência e intimidação que exerceram sobre os opositores políticos. Mas tinham-se tornado demasiado poderosas.
Entre 30 de junho e 2 de julho de 1934, Roehm e dezenas de líderes da SA são assassinados por ordem de Hitler na "Noite das Facas Longas". As SA continuaram a existir, mas na prática estavam aniquiladas.
Na União Soviética, Estaline -- que em 1939 estabeleceu um pacto com Hitler até à invasão do país em 1941 -- utilizou o suspeito assassinato de Sergei Kirov, em dezembro de 1934, para desencadear uma vasta purga na liderança, e em toda a sociedade.
Nos processos de Moscovo, em particular entre 1937 e 1938, toda a "velha guarda" do partido bolchevique foi detida, deportada ou aniquilada, o mesmo sucedendo a familiares, amigos ou possíveis "simpatizantes" dos banidos.
Ao longo da História, milhões de pessoas têm sucumbido às purgas na sequência de lutas fratricidas pelo poder, de ingerências externas, de golpes de Estado, de revoluções. Muitas vezes, envolvendo antigos amigos e aliados como também sucedeu a partir de 2013 na Turquia, com o fim do "acordo de conveniência" entre Gülen e Erdogan.