Analistas disseram hoje à Lusa que o caráter "estrutural e sistémico" da insatisfação social, económica e política das populações explica a duração da violência armada na província de Cabo Delgado, desde a eclosão dos ataques há quatros anos.
"Os fatores da revolta e da insurgência em Cabo Delgado são estruturais e sistémicos e têm substrato na exclusão social, económica e política, logo o estancamento da violência nunca seria conseguido com a brevidade que, se calhar, muitos estariam à espera", disse à Lusa João Feijó, pesquisador do Observatório do Meio Rural (OMR), que tem estudado abundantemente a violência armada em Cabo Delgado que se iniciou há quatro anos, a 05 de outubro de 2017.
Feijó assinalou que as causas que estão subjacentes à rebelião armada são anteriores a 2017 e remontam ao tempo colonial.
"As comunidades de Cabo Delgado viveram sempre com um sentimento de abandono e de marginalização pelo Estado, desde o tempo colonial, e esse sentimento continuou, depois da independência", enfatizou.
A eclosão da violência armada, prosseguiu, representou apenas um ponto de ebulição de uma revolta que esteve em latência, como resultado do aproveitamento das frustrações das comunidades por forças do extremismo violento, com ideologia jihadista.
Sobre o facto de a insurgência em Cabo Delgado entrar no quarto ano num período em que os grupos armados estão a perder terreno para as forças conjuntas dos governos de Moçambique, Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), João Feijó sublinhou que a derrota militar dos rebeldes não remove as causas de fundo da violência na província.
"A ação e o avanço militar são importantes, porque retiram território e limitam a iniciativa dos insurgentes, mas se não forem acompanhados pela criação de oportunidades económicas, emprego jovem, educação, formação técnico profissional, espaço de diálogo e participação democrática, teremos uma situação de conflito armado prolongado e intermitente", alertou João Feijó.
Muhamad Yassine, docente de Relações Internacionais na Universidade Joaquim Chissano, instituição estatal, considerou que um dos fatores por detrás do alastramento da insurgência é a atitude de negação por parte do Governo em relação à raiz socioeconómica da revolta das populações da província.
"O Governo optou pela criminalização e diabolização das causas por detrás da insurreição, rejeitando que o sentimento de exclusão social e económica das populações do norte possam ser a ignição para a violência", afirmou Yassine.
As autoridades, prosseguiu, nunca aceitaram a componente de insubordinação política da violência armada em Cabo Delgado, fomentada por um sentimento de marginalização social, optando por uma abordagem de combate à dimensão terrorista do problema, que integra elementos de ideologia jihadista.
"Os estudos do extremismo violento em muitos territórios do mundo onde ocorre este fenómeno mostram uma forte presença da pobreza, violência estatal, desemprego e intolerância política como campo fértil de recrutamento de camadas desafetas da população para as fileiras do fundamentalismo", notou.
Para Muhamad Yassine, a revolta das populações perante o Estado em Cabo Delgado nota-se numa relativa aceitação e cumplicidade de algumas comunidades em relação aos grupos armados, bem como com a infiltração dos insurgentes nas Forças de Defesa e Segurança (FDS), resultando na desmoralização do exército.
"Não admira que muitos membros das FDS não se identificassem com a guerra em Cabo Delgado, porque eles também são parte de comunidades que se sentem marginalizadas pelo mesmo Estado", assinalou.
Para aquele especialista em Relações Internacionais, o atual sucesso na luta contra os grupos armados em Cabo Delgado justifica-se, em parte, com "o distanciamento emocional" das forças governamentais do Ruanda em relação aos insurgentes e às comunidades da província.
"Por se tratar de uma força estrangeira e sem nenhuma ligação afetiva com toda a problemática por detrás da insurgência, os militares ruandeses podem estar a aplicar a política de `no mercy` [sem misericórdia], o que, do ponto de vista meramente militar, pode ser eficaz", observou.
Adriano Nuvunga, politólogo e diretor do Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD), organização da sociedade civil moçambicana, também considerou o descontentamento das comunidades de Cabo Delgado como "o fertilizante" da violência armada na província, alertando para a "ilusão de uma vitória militar".
"Cabo Delgado e o norte de Moçambique, no geral, precisam de um desenvolvimento social e económico significativo, porque, se isso não acontecer, a insurgência pode continuar por mais tempo", afirmou.
Caso a miséria, desemprego, desespero, exclusão social, económica e política continuem, as populações de Cabo Delgado vão continuar vulneráveis à manipulação pelo extremismo violento, assinalou.
"Há pobreza em todo o país, mas a situação de Cabo Delgado é muito particular, porque as comunidades locais convivem com as imagens de investimentos multimilionários nos projetos das indústrias extrativas e ouvem todos os dias que a sua província é muito rica em recursos naturais", disse o diretor do CDD.
Em paralelo com as ações militares em curso, o fim da insurgência exige que as populações, incluindo os deslocados de guerra, sejam tratadas com dignidade e recebam a necessária assistência humanitária, prosseguiu.
Adriano Nuvunga ressalvou que a facilidade com que os grupos armados recrutaram jovens para as suas fileiras é prova do "sentimento anti-Estado" prevalecente nas zonas de conflito em Cabo Delgado.
A província de Cabo Delgado é rica em gás natural, mas aterrorizada desde 2017 por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.
O conflito já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, segundo as autoridades moçambicanas.
Desde julho, uma ofensiva das tropas governamentais com o apoio do Ruanda a que se juntou depois a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) permitiu aumentar a segurança, recuperando várias zonas onde havia presença de rebeldes, nomeadamente a vila de Mocímboa da Praia, que estava ocupada desde agosto de 2020.