Peyman Jafari: “A mensagem que os EUA estão a enviar ao Irão é muito negativa”

por Andreia Martins, Mário Rui Cardoso - RTP
Peyman Jafari é professor na Universidade de Amesterdão e investigador no Instituto Internacional de História Social. RTP

No ano em que se assinalam os 40 anos da Revolução Iraniana, o historiador Peyman Jafari faz o balanço das quatro décadas de crises e desafios que o país enfrentou nas últimas décadas, a nível interno e externo. Em entrevista à Antena 1, o investigador considera que o regime está a confiar cada vez mais em mecanismos de repressão para assegurar a continuidade, mas que a população se sente “traída”, ao não ver cumpridas algumas das promessas de 1979. Sobre o contexto atual, Jafari diz que existe um conflito interno entre a linha dura e os pragmáticos na política iraniana, adensado pela decisão da Administração Trump de abandonar o acordo sobre o programa nuclear.

Peyman Jafari nasceu em Teerão em 1973, onde viveu durante a revolução e parte da guerra fratricida entre Irão e Iraque (1980-1988). Abandonou o país em 1986 com a família e viajou até à Holanda, onde recebeu o estatuto de refugiado político.

Hoje é historiador na Universidade de Amesterdão e investigador no Instituto Internacional de História Social, com foco especial na história social e do trabalho na indústria petrolífera iraniana, entre 1973 e 1993.

O professor e investigador esteve esta semana em Lisboa para participar no ciclo de conferências “Conferências com História”, organizado pela historiadora Raquel Varela.

Em entrevista ao Visão Global da Antena 1, Peyman Jafari falou sobre a revolução iraniana, que este ano cumpre 40 anos, bem como sobre as principais dificuldades e desafios que aquele regime teocrático enfrenta. O conflito entre as várias fações na política interna e a postura hostil da atual Administração norte-americana com Teerão foram alguns dos temas abordados pelo investigador.

Nestes 40 anos, a República Islâmica passou por muitas crises e dificuldades. Logo depois da revolução, houve uma guerra longa com o vizinho Iraque, também as décadas de hostilidade com o inimigo eterno, os Estados Unidos. Houve também crises profundas por causa das sanções económicas, e revoltas sociais e políticas, como o que aconteceu logo após a eleição presidencial de 2009. Como é que o regime teocrático tem conseguido resistir?

É uma boa pergunta porque, desde a Revolução Iraniana, em 1979, fizeram-se muitas previsões de que este regime iria cair, porque não conseguiria resistir à crise que mencionou, à guerra Irão-Iraque, a crise económica ou o conflito com os Estados Unidos.

A verdade é que sobreviveu. E conseguiu sobreviver através de uma série de medidas, a primeira foi a repressão absoluta: logo depois da revolução, todo o tipo de grupos de oposição foram reprimidos. Muita gente teve de fugir do Irão, muita gente foi presa, e isso continua até hoje. Os jornalistas continuam a não ter liberdade ou estão presos. E há protestos, mas estes são reprimidos.

Mas não se trata só da repressão, porque nenhum Estado sobrevive apenas com repressão. Houve também uma mobilização da população. A revolução iraniana foi a revolução mais popular da História. Muita gente esteve envolvida. Especialmente durante a guerra entre Irão e Iraque (1980-1988) foi muito importante, uma vez que permitiu ao Estado mobilizar o sentimento nacionalista, que dizia “estamos em guerra, todos devemos estar empenhados na defesa do país, não há tempo para dissidências, mas sim para estarmos unidos”. O nacionalismo foi muito importante durante os anos 80, e isso continua até aos dias de hoje.

Um terceiro fator é que o Estado foi capaz de integrar setores da população, dando-lhes confiança, combatendo a pobreza e dando assistência financeira aos pobres.

Estes três fatores continuaram ao longo destes 40 anos. No entanto, diria que o Estado está a confiar cada vez mais na repressão, e menos na ideologia e na integração da população.

O Irão tem problemas económicos há muitos anos. A população, em especial a classe média, enfrenta muitas dificuldades. Quais são os principais desafios do Irão, hoje em dia?

Há dois desafios principais na esfera económica. O primeiro é a má gestão e a corrupção na economia. Um dos slogans da revolução iraniana era o da justiça social, foi por ela que as pessoas se mobilizaram nas ruas. Mas agora, muitas pessoas sentem-se traídas.

Olham à volta e veem, no topo da pirâmide da sociedade, um grupo de novos-ricos que emergiu. Grupos com ligações ao sistema político, que conseguem prosperar com a corrupção e enriquecer cada vez mais.

A população está zangada com este fosso, cada vez maior, entre ricos e pobres. Além disso, sentem que, a nível interno, quem domina a economia não o faz por mérito, mas por lealdade política. É uma corrupção política que cria problemas. E este é um desafio muito sério.

Outro desafio tem que ver com o fator externo. Desde a revolução, o Irão tem sido sempre desafiado por inimigos externos. A guerra entre o Irão e o Iraque foi desastrosa e arruinou completamente a economia. Quando acabou, o Irão começou a reconstruir a economia. Mas depois vieram as sanções dos Estados Unidos, que só têm aumentado nos últimos anos.

Desde o ano passado, a moeda iraniana já perdeu mais de 50 por cento do seu valor, e isso tem muito que ver com as sanções que foram reimpostas por Donald Trump, com a saída dos Estados Unidos do acordo sobre o programa nuclear.

É investigador na Universidade de Amesterdão e a sua área de estudo foca-se na história social na indústria petrolífera iraniana entre 1973 e 1993. Pode falar-nos do seu trabalho e das conclusões que já retirou da investigação em curso?

Acho que é importante perceber o que está a acontecer dentro da própria sociedade e dos movimentos sociais. Pensamos sempre no Irão como um Estado teocrático, liderado pelos mullahs. Mas na sociedade há várias coisas a acontecer.

Se olharmos, por exemplo, para o movimento dos trabalhadores no Irão, ele teve um papel muito relevante durante a revolução iraniana e continua a ter um papel importante desde então.

Como disse, um dos slogans da Revolução Iraniana foi a justiça social. Durante os anos 80, houve um esforço nesse sentido, mas desde os anos 90, tal como outros países, o Irão adotou uma política mais neoliberal. Por isso, muitos trabalhadores foram marginalizados. No último ano houve um número crescente de greves, que aumenta de dia para dia.

Outro movimento social que gostaria de mencionar é o das mulheres. As mulheres estão na linha da frente de muitas destas lutas pela Democracia e pelos Direitos Humanos, sobretudo desde 1990.

O Líder Supremo, o ayatollah Ali Khamenei, tem 79 anos e está à frente dos destinos do Irão há quase 30 anos. O que podemos esperar do Irão depois dele? Mudança ou continuidade? 

Se soubesse ficaria rico! Essa é uma pergunta muito difícil. Toda a gente está a especular sobre o que vai acontecer se ele morrer. Vamos entrar num período de crise, de luta pela liderança? Ou o Irão vai sobreviver a isso?

Acho que vai haver uma crise, mas não será assim tão grave. Já se pensa agora em como Khamanei será substituído. Fala-se até num conselho, em vez de uma só pessoa.

Receio, no entanto, que o Irão vá ficar mais militarizado. Devido à política externa de Donald Trump, a linha dura no Irão está a reforçar-se e os militares vão querer ter ainda mais poder.

Acho que o próximo Líder Supremo será alguém muito semelhante a Khamenei. Em qualquer caso, será mais novo que o atual, será de uma geração diferente e espero que isso tenha algum impacto.

Aqui o problema é que a posição do Líder Supremo, em si mesma, não é democrática. Ele está acima do sistema político. Este problema vai continuar a existir no Irão. O de haver um Líder Supremo, com demasiado poder com poder concentrado em si próprio, face a um Presidente e a um Parlamento que foram eleitos. Essa continuará a ser a verdadeira luta: entre o Parlamento, o Presidente e a população, e o Líder Supremo.

Depois da guerra Irão-Iraque e com a morte do primeiro Líder Supremo, houve mudanças na Constituição que conferiram mais poderes ao Presidente. Será que isso pode acontecer novamente?

Na verdade, há um debate no Irão sobre a possibilidade de se devolver esse poder ao Líder Supremo e diminuir o poder do Presidente. Teremos de ver o desfecho desta discussão. Mas não acho que vá haver uma grande mudança. Acho que a Presidência se vai manter, mas haverá sempre conflitos entre o Presidente e o Líder Supremo, mesmo com aqueles Presidentes que o apoiavam claramente, como o Presidente [Mahmoud] Ahmadinejad. (2005-2013), que era muito conservador e estava completamente alinhado com Khamenei. Mas também ele entrou em conflito com o Líder Supremo. Essa é a natureza do sistema político. Temos diferentes blocos de poder que competem uns contra os outros.

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Javad Zarif, apresentou o pedido de demissão esta semana. Zarif foi um dos arquitetos do acordo sobre o programa nuclear iraniano, assinado em 2015. Qual foi a verdadeira razão desse pedido de demissão?

A razão imediata da demissão foi a visita de Bashar al-Assad ao Irão. O ministro não foi convidado para o encontro com o Presidente sírio, uma reunião em que estiveram o Líder Supremo e o general dos Guardas Revolucionários, responsável pelas operações externas. Zarif ficou obviamente ofendido e sentiu-se desautorizado. Javad Zarif pediu a demissão a 25 de fevereiro mas acabou por permanecer em funções. O Presidente iraniano, Hassan Rouhan, não aceitou a demissão. 

Mas a grande questão tem que ver com o conflito interno de que falámos, entre a linha dura e os pragmáticos, estes últimos que querem uma política externa de maior abertura ao exterior.

A estrela de Zarif ascendeu até 2015, quando assinou o acordo sobre o programa nuclear, com a Administração Obama e os países europeus.

Na altura, [a comunidade internacional] prometeu que, se o Irão fizesse concessões, iria acabar por beneficiar com o levantamento de sanções e o crescimento da economia. Mas isso não aconteceu, porque Donald Trump começou a reimpor sanções e tirou os Estados Unidos do acordo nuclear.

A linha dura no Irão acusa Zarif de ser um traidor. Eles dizem que Teerão fez concessões e não obteve nada em troca com o acordo. Essa é a grande batalha, entre a linha dura e os mais pragmáticos, como Javad Zarif.

O Presidente Rouhani vai conseguir terminar o segundo mandato?

Acho que vai chegar ao fim, mas ele está bastante enfraquecido. Se o ministro Zarif realmente sair do Governo, Rouhani vai ficar ainda mais enfraquecido.

Os políticos de linha dura vão ficar muito mais audíveis e presentes na cena política. Acho que Rouhani vai continuar no poder, mas será um Presidente muito enfraquecido, e será seguido provavelmente por um Presidente de linha dura.

Com essa possibilidade de uma liderança mais conservadora, ao mesmo tempo que há cada vez mais animosidade por parte da administração Trump em relação ao Irão, qual será o futuro do acordo nuclear?

Na verdade, o acordo nuclear não funcionou. Os países europeus permaneceram no acordo e o Irão também, mas os Estados Unidos saíram. E os Estados Unidos têm muito poder económico a nível global.

Os Estados Unidos impuseram sanções ao Irão, e na sequência dessas sanções, há muitas dificuldades no país, por exemplo há falta de medicamentos. Os preços subiram e as pessoas estão a sofrer na pele as consequências.

Ora, a Europa não tem sido capaz de salvar este acordo, isto porque os Estados Unidos também sancionaram os países europeus. Disseram-lhes: “Se ajudarem o Irão, também vos sancionamos”.

Os europeus não têm sido capazes de fazer algo significativo para compensar a saída dos Estados Unidos e os políticos mais conservadores dizem: Os europeus estão com os americanos, eles estão a jogar ao “polícia bom, polícia mau”.

É muito possível que o Irão também deixe o acordo. Não acho que seja isso que eles querem. Estão a ser muito cautelosos, porque se o Irão abandonar o acordo e começar a enriquecer urânio, haverá um conflito e eles não querem isso.

Mas a tensão está a subir. E se Trump for reeleito, talvez o Irão saia do acordo, pensando que a única via será mesmo a do conflito com os Estados Unidos, e não a via das negociações.

Depois deste acordo importante, que retirou o Irão, pelo menos durante algum tempo, do seu estatuto de Estado pária a nível global, qual é agora o lugar de Teerão no Médio Oriente e no Mundo?

O Irão é um dos maiores países do Médio Oriente. Tem 82 milhões de habitantes, uma economia importante e uma cultura milenar. Portanto, tem um lugar a preservar.

O atual sistema político do Irão também tem um papel negativo, porque o país interveio na Síria, no Iraque e noutros lugares. Isso foi muito negativo. Mas o problema é que todos os países no Médio Oriente fizeram o mesmo. A Arábia Saudita, por exemplo, interveio na Síria e no Iraque, e mandou tropas para o Bahrein, para esmagar a revolução.

Além disso, os americanos estão a dez mil quilómetros do Médio Oriente, mas têm bases militares à volta do Irão, e o Irão sente-se acossado pelos Estados Unidos no Afeganistão, no Iraque. E isso é muito problemático.

A melhor saída seria reconhecer o papel que pertence ao Irão e tentar negociar com o Irão, mostrando ao país que pode ter um papel mais positivo na região e garantindo-lhe que não há razões para que se sinta ameaçado.

É claro que isso não iria resolver todos os problemas, porque o sistema político continuaria autoritário. Mas pelo menos as pessoas teriam mais oportunidades de se opor ao sistema autoritário, teriam mais espaço para respirar. A economia estaria melhor, e por isso poderia haver mais ativismo e mais sociedade civil.

Neste novo cenário, com Donald Trump fora do acordo, podemos esperar que o Irão vá querer desenvolver armas nucleares?

Isso pode sempre acontecer, mas não me parece que seja um cenário realista. Eles sabem bem que isso seria um casus belli, uma razão para a guerra. E não se consegue ganhar uma guerra nuclear com os Estados Unidos ou com Israel, que também tem armas nucleares.

Não penso que o Irão queira isso. O que o Irão pretende é usar o enriquecimento de urânio para obter concessões e conseguir o reconhecimento de potência regional, de que falava há pouco. Apenas isso. Porque seguir a opção nuclear, fabricar armas nucleares, seria muito perigoso para o Irão.

Dito isto, claro que a mensagem que os Estados Unidos estão a enviar ao Irão é muito negativa, porque estão a negociar com a Coreia do Norte, e a Coreia do Norte já tem armas nucleares.

Alguns líderes iranianos podem pensar: “Bom, se tiveres armas nucleares, eles vão respeitar-te e falam contigo. Mas se não tiveres armas nucleares e se respeitares a lei internacional, eles vão aplicar-te sanções na mesma”. Isto é uma mensagem muito negativa que os Estados Unidos estão a enviar para o Irão.

Ainda na semana passada, a Agência Internacional de Energia Atómica publicou um relatório que confirma que o Irão continua a cumprir tudo o que prometeu. Os serviços secretos dos Estados Unidos também têm confirmado que o Irão não está a produzir armas nucleares, está apenas a fazer o que ficou estabelecido pelo acordo nuclear.

Existe um controlo muito apertado no Irão. Há câmaras em todo o lado, nas instalações nucleares. Se o Irão quisesse construir uma bomba atómica, o mundo iria reparar.

Pode ouvir a entrevista em RTP Play ou em versão podcast no programa Visão Global
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