Peste Negra deixou marca genética nos humanos

por Carla Quirino - RTP
Mais de 300 amostras vieram dos enterramentos de East Smithfield, durante a Peste Negra, em Londres. 1348-1349. Museu de Arqueologia de Londres

O estudo pioneiro do ADN de 206 esqueletos permitiram identificar que - mutações associadas à sobrevivência da Peste Negra -, não só chegaram aos nossos dias, como também estão relacionadas com as doenças auto-imunes que atingem milhões de pessoas.

Há 700 anos quando a Peste Negra se propagou pela Europa terá reduzido a população para perto de metade. O impacto da doença nas restantes 200 milhões de pessoas que sobreviveram, resultou em mutações genéticas. Essas mutações, que terão ajudado a ultrapassar o ataque da bactéria chamada de Yersinia pestis, marcaram o ADN humano e chegaram até aos nossos dias.

O estudo pioneiro que analisou o ADN retirado dos dentes de 206 esqueletos humanos dos séculos seguintes à Peste Negra confirmou a suspeita dos cientistas.

Foram encontradas mutações no ADN humano que ajudaram na sobrevivência à Peste Negra que alastrou na Europa do século XIV. “As doenças infeciosas têm apresentado uma das mais fortes pressões seletivas na evolução de humanos e outros animais” afirmaram os investigadores, autores do estudo publicado na revista Nature.
O gene chamado ERAP2
O conjunto osteológico investigado tem proveniência das sepulturas londrinas de East Smithfield que foram usados para enterros em massa, entre 1348-49. Para além das 300 amostras britânicas, foram também analisadas 198 amostras vindas de cinco locais de enterramentos na Dinamarca.

Foram analisadas ossadas de vítimas da peste que morreram antes da praga e de mortes entre 10 e 100 anos após o ataque da doença.

O estudo de sete anos envolveu investigações em torno das mutações no gene designado como ERAP2.

Alguém que tivesse desenvolvido esta mutação teria 40 por cento de possibilidade de sobreviver à peste. "Isso é incrível, é um efeito imenso, é uma surpresa encontrar algo assim no genoma humano", explicou Luis Barreiro, professor da Universidade de Chicago, à BBC.

A habilidade do gene é produzir as proteínas que cortam os micróbios invasores e “apresentar” esses fragmentos ao sistema imunológico, “preparando-o para reconhecer e neutralizar o inimigo de forma mais eficaz”.

O gene desenvolve-se em diferentes versões - aquelas que funcionam bem e aquelas que não fazem nada. Cada indivíduo recebe uma cópia do pai e da mãe. As pessoas que herdaram a versão melhor adaptada, tiveram maior probabilidade de sobreviver,

Os sobreviventes tiveram filhos e assim transmitiram e replicaram essas mutações melhoradas, tornando-se com o tempo, muito mais comuns.

"É formidável ver uma mudança de dez por cento do ADN ao longo de duas a três gerações, é o evento de seleção mais forte em humanos até hoje", destacou o geneticista evolucionário Hendrik Poinar, professor da Universidade McMaster.

Análise de um dente que contém ADN |  Universidade McMaster.

Os resultados foram confirmados em experiencias laboratoriais que usam a bactéria da peste - Yersinia pestis - e amostras de sangue de pessoas com e sem as “mutações melhoradas”. A versão melhorada foi mais capaz de resistir à infeção do que aquelas sem.

"É como assistir à Peste Negra a desenrolar-se numa placa de Petri - isso é revelador", observou Poinar.
Doenças auto-imunes
Se essas mutações do gene ERAP2 foram úteis há 700 anos, atualmente estão a ser associadas a doenças auto-imunes, como a doença inflamatória intestinal de Crohn.

"Os nossos resultados destacam a contribuição da seleção natural para a suscetibilidade atual à doença inflamatória crônica e auto-imune" diz o estudo.

Cerca de um a quatro por cento do ADN humano moderno assenta na herança do relacionamento entre as gerações ancestrais africanas e os neandertais.

Esse histórico afeta a capacidade de responder a doenças, incluindo a covid-19, realçam os investigadores.
“Assim, essas cicatrizes do passado ainda afetam a nossa suscetibilidade à doença hoje, de uma maneira bastante notável”, afirma Barreiro.

O cientista argumenta que a vantagem de sobrevivência de 40% foi o “efeito de aptidão seletiva mais forte já estimado em humanos”.
East Smithfield, Lodres | Museu de Arqueologia de Londres

Aparentemente, diminui o benefício das mutações de resistência ao HIV ou aquelas que ajudam a digerir o leite - embora Barreiro alerte que as comparações diretas são complicadas.

O estudo também refere que a alteração do gene ao londo dos séculos pode "associar-se a um risco aumentado de artrite reumatóide e lúpus eritematoso sistêmico, de modo que a retenção do alelo putativamente vantajoso durante a Peste Negra confere um risco aumentado de doença auto-imune nas populações atuais. Até ao momento, a maioria das evidências de uma associação entre alelos de risco auto-imune e adaptação a doenças infecciosas passadas permanece indireta".

A pandemia da covid-19 não deixará um legado semelhante, sublinha Barreiro, pois a evolução funciona através da capacidade de reproduzir e transmitir os seus genes.

Se o vírus SARS-Cov-2 mata em grande parte os idosos que já ultrapassaram o momento de ter filhos, o contrário verificou-se durante a peste Negra. Também conhecida por peste Bubónica, a doença teve a "capacidade de matar em todo o espectro etário e em números tão grandes, o que significou ter um impacto tão duradouro", explicam os investigadores.

Os indivíduos com mais cópias da versão seletivamente vantajosa apresentaram uma resposta de citocina mais fraca à infecção, mas uma melhor capacidade de limitar o crescimento bacteriano, conclui o estudo.
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