A China tem estado a dar largas à sua retórica e propaganda belicistas e a narrativa tem dois alvos primordiais, Estados Unidos e Taiwan. Pequim tem avisado de todas as formas que não receia um confronto militar pelo controlo real da ilha que continua a considerar sua. De caminho, deixa recados a outras potências regionais, quanto às suas alianças com os Estados Unidos.
Esta segunda-feira, o New York Times publicou uma série de pequenos filmes que têm estado a surgir online na China, publicados pelo Exército de Libertação Popular da China, e que incluem explosões, o lançamento de mísseis balísticos e soldados a correr em modo de combate ao mesmo tempo que um coro canta "se a guerra rebentar, esta é a minha resposta".
Os vídeos já foram vistos milhões de vezes. Um deles inclui o bombardeamento da Base Aérea Anderson, dos Estados Unidos, em Guam. Depois de se ter tornado viral, o vídeo foi retirado sem explicações.
Por si só, e mesmo em tempos de guerra económica entre as duas maiores potências do mundo, estes vídeos poderiam ser olhados como mera propaganda para consumo interno.
Só que a sua publicação coincidiu com uma série de exercícios militares na região, incluindo o lançamento de mísseis balísticos e a invasão do espaço aéreo de Taiwan.
Coincidiu igualmente com um périplo pela Ásia do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, precisamente para unir os seus maiores aliados regionais, o Japão, a Austrália e a Índia, na luta contra a crescente influência chinesa e apesar dos laços comerciais que partilham.
Contra o PCC
Pouco antes da reunião desta terça-feira em Tóquio, entre os líderes da diplomacia do Quádruplo, como tem vindo a ser chamado o grupo, Pompeo foi explícito nos seus objetivos, não contra a China per se, mas contra o aparelho que a governa, o Partido Comunista Chinês, PCC.
“Como aliados neste Quádruplo, é mais crucial do que nunca que colaboremos na proteção dos nossos povos e parceiros, contra a exploração, corrupção e coerção do Partido Comunista Chinês”, afirmou Pompeo.
A prudência nas palavras do indiano, do australiano e do japonês, homólogos de Pompeo, levou muitos analistas a mostrarem-se céticos quanto à possibilidade de o Quádruplo se assumir institucionalmente como força de bloqueio à China na Ásia.
Perder influência global e encerrar-se dentro das próprias fonteiras não está também nos planos do presidente chinês, Xi Jinping. A sua estratégia interna para já, oposta aos apelos a conciliação que apregoa para fora de portas, parece ser a de dar rédea à ala conflituosa do PCC.
Prontos para a guerra
No passado dia 1 de outubro, um artigo do jornal da ala belicista do Partido Comunista Chinês, o Global Times, lembrava que passam em 2020 os 70 anos da Guerra da Coreia, retirando várias lições desse tempo, de forma a proteger a segurança nacional. A principal, a de agir contra ameaças eventuais às fronteiras físicas, através do controlo de territórios vizinhos.
O articulista do Global Times, o tenente-general He Lei, da Academia do Exército de Libertação Popular, revisitava a estratégia ditada então por Mao Tse Tung, para quem os Estados Unidos de meados do século XX pretendiam atacar a China por três lados, espetando-lhe uma faca na cabeça, se assumissem o controlo da Coreia do Norte, uma no torso, através de Taiwan, e outra nos pés, com o Vietname.
“Na nova era”, escreveu He Lei, “devemos continuar a fazer de um país forte e de fortes forças armadas, a maior âncora da nossa segurança”. E aconselhou, a China deve ter “consciência dos perigos potenciais”, ser sempre a “equipa de combate” e cultivar “o espírito de luta e a arte de lutar conquistados na Guerra da Coreia”.
Shen Dingli, professor de Relações Internacionais na
Universidade de Fudan, em Xangai, considerou recentemente que o risco
de conflito militar devido à ilha de Taiwan está a aumentar e apontou o dedo à diplomacia musculada sob o atual Presidente norte-americano, Donald Trump.
A estratégia de provocação de ambas as partes levou altos
funcionários norte-americanos a visitar Taiwan, num apoio evidente às
autoridades da ilha e em desafio a Pequim.
O Global Times sugeria
igualmente que uma visita a Taiwan de um responsável de nível ainda
maior, como o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, ou do secretário da Defesa, Mark Esper, poderia
justificar uma reação de força chinesa.
A ascenção do 'Guerreiro Lobo'
A alimentar a especulação e a retórica inflamada estão outras forças, que afetam produções cinematográficas e de televisão e atingem grandes conglomerados económicos e financeiros.
Uma série chinesa recente para televisão, aproveitando um episódio real da Guerra da Coreia, tem emprestado o nome à atual diplomacia chinesa. Intitulada O Guerreiro Lobo, conta a história de uma unidade de engenharia chinesa que luta para manter intacta uma ponte crucial numa das últimas batalhas do conflito.
“Nunca subestimem a determinação do povo chinês na salvaguarda da segurança nacional”, referia no Twitter na semana passada o editor do Global Times, Hu Xijin, que tem várias vezes avisado os Estados Unidos contra uma guerra com a China.
E, numa alegação sem qualquer prova, acusava logo depois Donald Trump de preparar ataques com drones às bases chinesas no Mar do Sul da China.
A possibilidade de um conflito militar aberto não é assumida por nenhuma das partes e a propaganda interna do PCC é conhecida pelas suas tonalidades belicistas. Contudo, qualquer tiro poderá ter resultados explosivos em cadeia.
As recentes manobras militares nos Mares do Sul da China e no estreito de Taiwan levantam a possibilidade de confronto real, intencional ou não. E, depois de ter cultivado entre os cidadãos chineses a prontidão para o combate, o presidente chinês, Xi Jinping, poderá não ter margem de recuo se se sentir ainda mais pressionado por Trump.
A influência Trump
Numa aparente contradição com a ala
conflituosa do PCC, Xi Jinping assumiu um tom conciliatório no seu
recente discurso à 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, num enorme
contraste com o adotado pelo seu homólogo norte-americano.
A
tensão entre as duas maiores potências mundiais tem extravasado também
para o campo diplomático, com o encerramento mútuo de representações
consulares.
Mais recentemente, Trump apontou o
dedo à China como diretamente responsável pela atual pandemia de
Covid-19, que está a arrasar a economia mundial. Perante a Assembleia Geral da
ONU, Trump apelou à união do mundo para pedir indemnizações a Pequim. O embaixador norte-americano em Portugal avisou em setembro os portugueses para terem cuidado nas suas estratégias comerciais, referindo-se à China, para não correrem o risco de alienar os EUA. A resposta, a sublinhar a soberania lusa, veio do próprio Marcelo Rebelo de Sousa e Washington veio depois pôr água na fervura.
Apesar
de a retórica inflamada do presidente norte-americano provocar urticária
intelectual e emocional às democracias ocidentais, a
estratégia de Trump tem feito muitos parar para pensar.
A
dependência de produtos chineses revelada na pandemia fez também
analistas europeus recuarem nas laudes às benesses da descentralização e
da deslocalização industrial.
Os sinais do fim dos
tempos para os negócios da China, sobretudo se Trump for reeleito, estão a multiplicar-se. Resta saber por que resposta irá optar Pequim, sobretudo ao fazer contas ao que tem a perder e ganhar.