"Pensei que ia morrer". Prisioneiro de Guantánamo fala pela primeira vez ao tribunal sobre os abusos da CIA

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Lucas Jackson - Reuters

Pela primeira vez em 20 anos, um prisioneiro de Guantánamo veio descrever perante um tribunal os abusos cometidos por parte da CIA enquanto esteve detido em instalações secretas antes de ser transferido para a prisão de Guantánamo. Durante uma audiência na quinta-feira, Majid Khan relata que foi espancado e abusado sexualmente. Khan é o primeiro detido considerado de “alto valor” a ser condenado e julgado.

Majid Khan, um cidadão paquistanês de 41 anos e ex-residente de Baltimore que se tornou um mensageiro da Al-Qaeda, foi capturado no Paquistão em 2003 e esteve detido em várias instalações secretas da CIA até ser transferido, em 2006, para a prisão de Guantánamo, enclave norte-americano na ilha de Cuba.

Khan é agora o primeiro prisioneiro a poder testemunhar sobre as chamadas “técnicas de interrogatório intensivo” da agência de espionagem dos EUA. É um levantar do véu sobre as táticas de tortura que há muito a CIA procurava manter em segredo.

Embora parte da história de Khan tenha sido anteriormente detalhada num relatório do Comité de Inteligência do Senado dos EUA em 2014 - que acusou a CIA de ir muito além dos seus limites legais na extração de informações sobre a Al-Qaeda – esta é a primeira vez que existe um relato público por parte de um dos detidos de “alto valor” sobre os abusos da CIA.

O prisioneiro diz nunca ter visto a luz do dia nos três anos que esteve detido nas instalações secretas da CIA, usadas pelos EUA após os ataques de 11 de setembro de 2001, e declara que foi submetido durante dias a abusos dolorosos.


Khan falou sobre ficar pendurado numa viga todo nu por longos períodos de tempo, enquanto era mergulhado em água gelada para o manter acordado durante dias. Descreve ainda que a sua cabeça foi mergulhada em água durante tanto tempo que chegou ao ponto de quase se afogar. Diz ainda ter sido espancado, abusado sexualmente e deixado a passar fome.

“Pensei que ia morrer”
, disse o prisioneiro na quinta-feira perante o tribunal militar na base dos Estados Unidos em Cuba, citado pela Al Jazeera. “Eu implorava que parassem e jurava que não sabia de nada. Se eu tivesse informações para dar, já as teria dado, mas eu não tinha nada para oferecer”, testemunhou. “Quanto mais eu cooperava, mais era torturado”, acrescentou.
Primeiro detido de “alto valor” a ser julgado
Majid Khan falou na quinta-feira perante o tribunal militar na base de Guantánamo no primeiro de dois dias de audiência

Em 2012, o paquistanês de 41 anos confessou-se culpado de acusações que incluem conspiração, assassinato e apoio material ao terrorismo, mas assinou um acordo judicial onde prometeu cooperar com as autoridades noutras investigações – nomeadamente no processo contra os cinco homens detidos em Guantánamo acusados de planearem e fornecerem apoio logístico no ataque de 11 de setembro – em troca de uma redução da sentença. Desta forma, apesar de Khan vir provavelmente a ser condenado a 25 a 40 anos de prisão, o júri deverá reduzi-la para não mais de 11 anos. Isso significa que Khan deverá ser colocado em liberdade no início do próximo ano.

Durante o seu testemunho na quinta-feira, Khan pediu perdão pelas suas ações. “Tentei compensar as coisas más que fiz. É por isso que me declarei culpado e cooperei com o Governo dos EUA”, assumiu.

Kahn é o primeiro de vários presos considerados de “alto valor” que passaram pelos programas de interrogatório da CIA a ser condenado. A maioria dos quase 800 homens que estiveram detidos em Guantánamo nunca foram sequer formalmente acusados. Os Estados Unidos mantêm 39 homens no centro de detenção da Base Naval da Baía de Guantánamo.
Irá Biden conseguir encerrar Guantánamo?
O encerramento da prisão de Guantánamo é uma questão há muito debatida nos EUA.

A prisão surgiu em janeiro de 2002, no rescaldo nos ataques de 11 de setembro, no período conhecido por “Guerra ao Terror”, e tinha como objetivo ser um centro de detenção temporária para aqueles que constituíam uma ameaça à segurança nacional dos EUA. O lugar acabaria, porém, por ficar conhecido pelos abusos de direitos humanos e tortura ali perpetrados.

O presidente dos EUA, Joe Biden, procura agora cumprir a promessa feita e não cumprida por Barack Obama, de encerrar Guantánamo. No entanto, tal como Obama, Biden enfrenta também grandes desafios jurídicos e políticos.

Republicanos, incluindo o líder da minoria no Senado, Mitch McConnell, descrevem o encerramento da prisão como uma ameaça à segurança dos EUA. Os críticos alertam, porém, que esta pode tornar-se uma decisão ainda mais difícil para Biden com o passar do tempo, especialmente se os democratas perderem sua tangencial maioria no Congresso.
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