Papa tinha pedido desculpa pelo silêncio da Igreja face à ditadura argentina

por RTP
Maurizio Brambatti, Epa

Prossegue na imprensa argentina uma acesa polémica sobre a atitude do cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje papa Francisco, face à ditadura argentina. O Vaticano nega com veemência acusações de colaboração activa. Entretanto, o diário espanhol El Pais cita Bergoglio como autor de um pedido de desculpas de há treze anos por a Igreja não "ter feito o suficiente".

O artigo publicado no domingo em El Pais cita o pedido de desculpas do então cardeal Bergoglio e data-o do ano de 2000. Mas a grande questão em debate não é tanto a de saber se a Igreja católica terá pecado apenas por omissão, ou se o terá feito também por acção, como se interroga Francisco Peregil, o correspondente em Buenos Aires daquele diário espanhol.
Dúvidas sobre a versão de Verbitsky A polémica fora lançada pelo director do diário argentino Pagina 12, Horacio Verbitsky, ao citar declarações que lhe teria prestado em 1999 Francisco Jalics. Este padre jesuíta fora sequestrado pelos militares e estivera desaparecido durante seis meses, juntamente com um outro jesuíta, Orlando Yorio.

Segundo Verbitsky, Jalics ter-lhe-ia declarado que "durante meses Bergoglio contou a toda a gente que Jalics e Yorio estavam na guerrilha" - o que, a ser verdade, equivaleria a uma sentença de morte pelos militares, caucionada por Bergoglio como máxima autoridade, que era nesse tempo, da Companhia de Jesus na Argentina.

A alegação de Verbitsky, verdadeira ou falsa, apresentava vários pontos fracos. Desde logo, ela ter-lhe-á sido prestada "sob a condição do anonimato". Custa a compreender como pode ser anónima uma declaração feita na primeira pessoa sobre as responsabilidades de Bergoglio relativamente a alguém - Jalics - claramente identificado.

Se, contudo, Jalics prestou a Verbitsky declarações off the record,
não surpreende que tenha reagido asperamente à divulgação das mesmas, ainda que catorze anos depois. E assim fez, considerando "um erro afirmar que a nossa captura ocorreu por iniciativa do padre Bergoglio". É certo que Jalics não desmente ter prestado aquelas declarações, mas considera-as "um erro" e deixa por esclarecer quem as teria feito, se alguém as fez.

Após a eleição do novo Papa, Jalics, residente num mosteiro na Alemanha, declarou em todo o caso que se considera "reconciliado" com Bergoglio - o que não deixa de constituir confirmação sobre tensões anteriormente existentes entre ambos, mas nada nos diz sobre a natureza dessas tensões.

Num quadro que quase enfrenta a palavra de Verbitsky com a de Jalics, já não vive a outra testemunha que teria, talvez, algo a dizer: Orlando Yorio, falecido em 2000. A sua irmã Graciela veio em defesa do jornalista, acusando Bergoglio de ter feito jogo duplo. Segundo a irmã de Yorio, Bergoglio manifestava por um lado preocupação com o destino dos dois jesuítas, mas fazia, "por trás, todas as manobras necessárias para que os sequestrassem". Ainda assim, não fica esclarecido em que fundamenta esta testemunha indirecta a sua convicção.

Além dos pontos vulneráveis da argumentação de Verbitsky, há o desmentido categórico da Cúria romana sobre a alegada colaboração de Bergoglio com a ditadura que custou à Argentina cerca de 30.000 mortos e desaparecidos.

Acresce que, desde a eleição do Papa Francisco, várias testemunhas têm surgido na Argentina a sustentar que o então cardeal Bergoglio empreendeu diligências discretas para salvar-lhes a vida. E dá-se como provável que a primeira beatificação no pontificado de Francisco seja do frade franciscano Carlos de Dios Murias - precisamente um dos torturados e assassinados pela ditadura.
As versões de Esquível e de la Serna Dois outros críticos de longa data de Bergoglio, sublinham responsabilidades da Igreja no seu todo, mas refutam a versão que dá o então cardeal como activamente conivente com a ditadura. Assim, o activista dos direitos humanos e Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquível, afirma que "houve cumplicidades de boa parte da hierarquia eclesiástica no genocídio praticado contra o povo argetino e, embora muitos com excesso de prudência tenham feito diligências para libertar os perseguidos, foram poucos os pastores que com coragem e decisão assumiram a nossa luta pelos direitos humanos contra a ditadura militar".

Já sobre o então cardeal, Esquível afirma: "Não considero que Jorge Bergoglio tenha sido cúmplice da ditadura", embora acrescente que "lhe faltou coragem para acompanhar a nossa luta pelos direitos humanos nos momentos mais difíceis".

O já citado artigo de El Pais refere, neste contexto, para além das declarações de Esquível, as do padre Eduardo de la Serna, primo distante de Ernesto Guevara de la Serna, vulgo "El Che", e animador do colectivo católico contestatário "Grupo de Curas en Opción por los Pobres".

De la Serna afirma que "houve um grupo muito pequeno de bispos claramente opostos e críticos da ditadura (Alberto Pascual Devoto, Enrique Angelelli, Eduardo Pironio, Vicente F. Zaspe, Jaime de Nevare, Jorge Novak e Miguel Hesayne); [e] um grupo muito grande de bispos francamente cúmplices (Victorio Bonamin, Adolfo Tortolo ...) [...] O que é certo é que entre uns e outros constituíam um episcopado cúmplice ou silencioso, calado e receoso. Não fizeram denúncias claras, não levantaram a voz, não se atreveram a excomungar -  por exemplo - os torturadores. Bergoglio não foi Victorio Bonamín, mas também não foi Jorge Novak".
As "Avós da Praça de Maio" e Luís Zamora Por outro lado, à fragilidade das provas sobre o alegado colaboracionismo de Bergoglio sobrepõe-se a solidez de provas e testemunhos sobre a acomodação à ditadura como atitude predominante, embora não unânime, da Igreja.

Estela de Carlotto, a presidente das "Avós da Praça de Maio" - familiares das pessoas desaparecidas - sublinha a este respeito: "Condena-se [os membros d]a hierarquia eclesiástica porque foram participantes, cúmplices, encobridores, directa ou indirectamente. É uma história muito triste que mancha toda a hierarquia da Igreja católica argentina, que não deu nem um passo para colaborar com a verdade, a memória, a justiça". E conclui: "Bergoglio pertence a essa Igreja que obscureceu o país".

Também o advogado Luís Zamora, o mais destacado defensor dos direitos humanos no foro judicial, e durante algum tempo deputado do MAS (Movimiento Al Socialismo), recorda que "poucas semanas após o golpe militar, mais de 60 bispos de todo o país reuniram-se para avaliar a situação. Todos concordaram em que nas suas dioceses havia sequestros, desaparecimentos, despedimentos por actividades sindicais. Houve uma discussão sobre se tomavam posição ou não. Por uns 40 votos contra 20 optaram por não se pronunciarem publicamente e enfrentar o problema com diligências reservadas. isso significou caucionar publicamente a ditadura".

Há três anos, Bergoglio foi testemunha num julgamento sobre crimes da ditadura e Zamora foi precisamente um dos advogados que o interrogaram em tribunal. A convicção que transmite a El Pais após esse interrogatório, é a de que "não tenho dúvidas de que Bergoglio entregou esses jesuítas [Yorio e Jalics]". Mas não está explicado como a dita convicção poderá ter resultado do interrogatório.


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