No regresso ao Vaticano após a visita de dois dias à Irlanda, enevoada pelos casos de abusos sexuais por parte de clérigos daquele país, o papa Francisco disse no domingo que não vai responder às acusações que lhe são dirigidas. Em causa está um documento assinado por um antigo núncio apostólico nos Estados Unidos que acusa Francisco de saber dos casos de abuso do cardeal norte-americano Theodore McCarrick há pelo menos cinco anos.
Sem confirmar nem negar as incriminações de que é alvo, o sumo pontífice disse aos jornalistas que o documento “fala por si próprio”, numa referência à carta de 11 páginas onde Carlo Maria Vigano acusa o papa Francisco de ter conhecimento há cinco anos das denúncias de abuso sexual contra o cardeal norte-americano Theodore McCarrick, mas que só aceitou a sua renúncia há um mês.
“Acho que vocês têm capacidades jornalísticas suficientes para chegarem às vossas conclusões. Quando passar algum tempo e vocês tiverem as vossas conclusões, então talvez fale. Mas gostaria que a vossa maturidade profissional cumprisse esta tarefa ”, acrescentou ainda Francisco.
A carta referida saiu a público precisamente durante a visita papal à Irlanda, onde o antigo núncio apostólico nos Estados Unidos exigia a renúncia de Francisco. No documento de 11 páginas que veio a público aos através de meios católicos conservadores, Carlo Maria Vigano acusa vários responsáveis norte-americanos e do Vaticano de cobrirem o caso do cardial Theodore McCarrick, incluindo o próprio papa.
“Neste momento dramático para a Igreja, ele deve reconhecer os seus erros e, mantendo o princípio proclamado da tolerância zero, o papa Francisco deve ser o primeiro a dar o exemplo aos cardeais e bispos que esconderam os abusos de McCarrick, e deve demitir-se tal como todos eles”, escreveu o arcebispo na carta divulgada pelo National Catholic Register.
Carlo Maria Vigano foi embaixador do Vaticano nos Estados Unidos entre 2011 e 2016 e garante que informou vários responsáveis sobre as suspeitas de abusos de seminaristas e padres por parte de Theodore McCarrick desde 2006. O antigo núncio em Washington garante ainda que contou ao papa Francisco sobre as suspeitas de abusos em 2013, poucos meses depois de ter sido eleito.
“Ele sabia, pelo menos desde 23 de junho de 2013, que McCarrick era um predador”, pode ler-se na carta, onde o cardeal também critica “a rede de homossexualidade presente na igreja”. A agência Reuters destaca que a palavra “homossexual” é referida por 18 vezes na carta, enquanto a palavra “criança” surge apenas duas vezes e que Vigano, membro da ala mais conservadora da Igreja, tem sido um crítico acérrimo do papado de Francisco.
Em junho, Theodore McCarrick tornou-se o primeiro cardeal a renunciar à sua posição de liderança na igreja depois de uma investigação ter dado como credíveis as acusações num caso de abuso de um rapaz de 16 anos.
Sobre este caso, o cardeal de 88 anos – um dos mais altos funcionários do Vaticano acusado de abuso sexual - diz que “não tem memória”, mas preferiu não comentar as restantes acusações de abusos de padres e seminaristas.
Uma Irlanda diferente
Durante a curta estadia naquele que é considerado um dos países com maior tradição católica do mundo, o tema dos abusos sexuais esteve omnipresente nas palavras de Francisco, que se voltou a multiplicar em pedidos de perdão.
“Imploro pelo perdão do Senhor por estes pecados e pelo escândalo e traição sentida por tantos na família de Deus”, disse o Papa Francisco numa das celebrações em que marcou presença no domingo.
O papa esteve mesmo reunido com oito vítimas de abusos por parte de clérigos da igreja irlandesa no sábado, referindo-se aos incriminados por cometerem e encobrirem como “caca”, recorrendo a uma expressão em castelhano. Algumas vítimas, como Marie Collins, confessaram a sua desilusão.
“O facto de não haver nada de novo a ser planeado ou implementado é dececionante”, referiu Marie Collins ao National Catholic Reporter, criticando a Igreja por estar a julgar os responsáveis “nos bastidores”.
A sobrevivente esperava ações concretas e novos procedimentos contra os bispos e responsáveis da Igreja que encobriram casos de abuso, como por exemplo a criação de um tribunal especial para esse efeito.
No entanto, as palavras de Francisco não terão chegado para amenizar o sentimento de revolta e consternação no seio da sociedade irlandesa. Com efeito, este país de grande tradição católica foi palco de várias polémicas e escândalos ao longo dos últimos anos, que vão além dos casos de abusos sexuais.
"Pedimos perdão por todos os abusos cometidos em vários tipos de instituições dirigidas por membros da igreja. (...) Pedimos perdão por aqueles casos de exploração através do trabalho manual a que estiveram sujeitos tantos homens e mulheres jovens", disse Francisco este domingo numa das missas a que presidiu.
O papa referia-se a outros casos de enorme impacto naquele país, desde logo a uma instituição destinada a mães solteiras, localizada em Tuam, no norte da Irlanda, onde foram encontrados os corpos de quase 800 crianças numa vala comum.
A instituição religiosa encerrou em 1961 e era gerida por uma ordem católica de freiras que separava as mães das crianças e acolhiam estas últimas até que pudessem ser adotadas. Grande parte das crianças encontradas nesta vala comum foi enterrada durante os anos 50, período de grande mortalidade infantil na Irlanda. Só em 2017 é que as suspeitas de várias décadas se confirmaram, na sequência de uma comissão criada pelo Governo de Dublin, em 2014.
Há ainda os vários casos registados de trabalho escravo e abusos nas lavandarias Irmãs de Maria Madalena, locais que acolheram mais de 30 mil mulheres e crianças em situação de pobreza. Em 2013, o Estado irlandês, que trabalhava de perto com estas instituições, pediu desculpa pelos crimes cometidos durante mais de 70 anos.
"A Irlanda que deu as boas vindas a João Paulo II já não é a mesma Irlanda. O país mudou completamente. Há muitas pessoas magoadas neste país. Depois de termos visto tantas mudanças a trazerem tantas alegrias, ter o papa aqui é como uma bofetada na cara", disse à CNN um dos protestantes na marcha "Stand for Truth", que contou com cinco mil manifestantes, segundo os números da organização.
Nos últimos quase 40 anos desde a última visita papal, a Irlanda legalizou o divórcio, o uso de contracetivos e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em maio, a vitória do "sim" no referendo sobre o aborto vai permitir ao Parlamento irlandês revogar a 8ª emenda da Constituição irlandesa, abrindo caminho à despenzalização da interrupção voluntária da gravidez.