O tema dominou por completo a atualidade europeia entre 2015 e 2016, com o agravar da guerra na Síria. Hoje, com a pandemia em destaque, é uma matéria que recebe atenção ocasional e temporária, como aconteceu com episódios recentes em Ceuta ou nas Canárias.
Em maio último, cerca de oito mil migrantes, muitos deles menores, conseguiram chegar a território espanhol através de Marrocos, no que terá sido um “castigo” premeditado depois de Madrid ter admitido Brahim Gali, o fundador da Frente Polisário - movimento de libertação do povo sarauí - para tratamento médico num hospital do norte de Espanha. Dias depois, a grande maioria dos migrantes acabaria por ser devolvida a Marrocos.
Susana Ferreira, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), com trabalhos publicados na área das migrações e gestão fronteiriça, considera que este evento deve ser interpretado do ponto de vista diplomático, mas que não exclui o problema migratório que lhe está subjacente.
“Um dos instrumentos que Marrocos utiliza para fazer pressão nas relações bilaterais, com impacto nas relações multilaterais com a União Europeia, é o das migrações. Neste sentido, vemos como em diferentes momentos Marrocos tem recorrido a este mecanismo para fazer maior pressão, para demonstrar a grande dependência que Espanha, mas também que a União Europeia, tem de Marrocos na gestão migratória”, refere a investigadora em entrevista à RTP.
“Estamos a falar de um momento de forte pressão migratória com um fluxo de entrada mais massivo num momento muito específico. Mas isto não significa que não tenhamos aqui um grande problema ao nível da gestão migratória”, acrescenta a investigadora, salientando a “nova direção nos fluxos migratórios” que se regista na Europa desde o ano passado, quando se começou a verificar maior pressão nas Canárias, mas também em Ceuta e Melilla.
“Estados-tampão” controlam fronteiras
Marrocos, tal como a Turquia ou a Líbia, são vistos como países “guardiões das fronteiras europeias” ou “estados-tampão”, dos quais a União Europeia “depende completamente”, ao externalizar as suas fronteiras, refere Susana Ferreira.
“Estes três países, de alguma forma, são os polícias da fronteira sul da União Europeia. Não podemos depender tanto de três países específicos, devíamos ir mais além, a outros países de trânsito, aos países de origem, e procurar uma resposta muito mais integradora. E claro, centrarmo-nos em canais de imigração regular para prevenir e evitar este tipo de situações”, aponta.
A investigadora destaca que a União Europeia tem procurado resolver o problema com fundos europeus para a gestão das migrantes, mas no caso de Espanha e Marrocos, por exemplo, Madrid avançou desde logo com um fundo próprio de 30 milhões de euros adicionais. Só que quando se trata destes acordos bilaterais “não sabemos muito bem para onde vão estes fundos”, assinala.
Em março de 2016, na esteira da mais grave crise migratória dos últimos anos, a União Europeia chegou a acordo com a Turquia para limitar o número de chegadas de requerentes de asilo e reduzir a pressão nas fronteiras europeias. Em troca, Ancara recebeu seis mil milhões de euros para lidar com a crise migratória no seu próprio território, sendo que a última tranche chegou ao país em dezembro de 2020. Apesar do coro de críticas, este entendimento permitiu um controlo efetivo das migrações e poderá mesmo ser renovado em breve, estima a investigadora Kyilah Terry, do Migration Policy Institute.
Pedro A. Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional em Portugal, condena estes entendimentos pontuais: “A União Europeia tem feito acordos com países externos para servirem de tampão à vinda destas pessoas, nomeadamente a Turquia, a Líbia e até o exemplo recente de Marrocos, em Ceuta, em que as pessoas, além de tudo aquilo que já sofrem, foram peões de jogos políticos e tricas políticas entre Marrocos e Espanha”, sublinha o responsável em entrevista à RTP.
Para Susana Ferreira, este tipo de entendimentos ad hoc é discutível, até porque os países terceiros são muitas vezes locais em que “a garantia dos Direitos Humanos não se implementa, onde a vida destes migrantes vale pouco”.
“Ao dar a outros países a possibilidade de controlar, mais que gerir, os fluxos migratórios que chegam à Europa, não estamos a garantir a estes migrantes a proteção adequada ou a garantir-lhes uma resposta no âmbito do Direito Internacional. Muitos destes países acabam por ser os primeiros que ignoram todas as normas internacionais e não têm qualquer problema em por a vida destes migrantes em perigo”, acrescenta a investigadora.
Com o reforço das operações marítimas no Mediterrâneo ao longo dos últimos anos, as próprias redes de contrabando e tráfico humano “aproveitam-se” e colocam os migrantes em situação de maior risco, sublinha.
“Em 2015 houve aqueles grandes naufrágios em que os migrantes vinham em barcos de madeira, em que seguiam um grande número de pessoas. Isto hoje já não acontece. Chegam em barcos de borracha, e sabemos que os que têm mais dinheiro conseguiram pagar por um colete salva-vidas, aqueles que não conseguiram não o têm. Estas redes não têm qualquer problema em mandar os migrantes nas condições que forem”, refere Susana Ferreira.
De acordo com os dados do Missing Migrants Project (da Organização Internacional para as Migrações) onde estão reunidas todas as mortes de migrantes que ocorreram nas principais rotas a nível mundial, pelo menos 815 migrantes morreram no Mar Mediterrâneo desde início de 2021, das quais 677 no Mediterrâneo central, pelo que esta continua a ser a rota mais mortífera do mundo ao nível da migração.
“Crise é de liderança e solidariedade”
No último domingo, 20 de junho, dia em que se assinalou o Dia Mundial do Refugiado, a Amnistia Internacional em Portugal realizou uma vigília de sensibilização com Portugal e a União Europeia como principais destinatários.
“Queremos alertar para o intensificar de um problema que erradamente tem sido identificado como uma crise de refugiados. A crise não é de refugiados, é de liderança e é de solidariedade, de implementação de políticas públicas e soluções que permitam um acolhimento efetivo e o aproveitamento da presença de pessoas, que fogem de problemas muito sérios, para enriquecerem o nosso país com o seu trabalho e o com o seu contributo”, aponta Pedro Neto, diretor-executivo da organização não-governamental em Portugal, em entrevista à RTP.
No âmbito da campanha “Eu Acolho”, a Amnistia Internacional pede a Bruxelas e aos Governos dos 27 Estados-membros o estabelecimento de rotas legais e seguras. Os requerentes de asilo “submetem-se a viagens perigosíssimas, pagam montantes a traficantes para fazerem essas viagens e muitos perdem a vida a tentar atravessar o Mediterrâneo”.
Outra das exigências da Amnistia Internacional é a partilha de responsabilidades no acolhimento, perante a sobrecarga de países como Itália, Grécia e Alemanha. “A Grécia, por exemplo, não tem meios para dar resposta e acolhimento”, e a Europa “não corresponde com a partilha dessa solidariedade”, afirma.
Em terceiro lugar, a Amnistia salienta a importância de proporcionar “uma integração efetiva” para que os requerentes de asilo possam recomeçar a sua vida, contribuindo ao mesmo tempo com o seu trabalho e para a Segurança Social, num continente cada vez mais envelhecido. Mas Pedro A. Neto não espera grandes alterações nos próximos tempos. “Não tenho muito otimismo de que haja mudanças ou melhorias no trabalho da União Europeia neste aspeto”, lamenta.
Um pacto que não resolve os problemas
“Este pacto é ambicioso em algumas partes, mas é mais do mesmo. Reforça aspetos e elementos nos quais a União Europeia vem a bater na mesma tecla nos últimos anos, mas que não foi nunca capaz de avançar nem de implementar as medidas necessárias”, aponta a investigadora Susana Ferreira, que sublinha a necessidade de se criarem “canais de migração regular”.
Pedro A. Neto, da Amnistia Internacional, considera também que a implementação deste acordo e a criação de canais de migração regular não seria solução para os problemas da União Europeia.
“Não se trata apenas da criação e disponibilização de rotas legais, mas também dos mecanismos para processar os pedidos. Temos visto não só a nível nacional, como também a nível europeu, que a resposta dada a estas pessoas demora muito tempo. Quando conseguem entrar na União Europeia, seja por via legal ou entrada de forma não convencional, ficam muito tempo à espera de que os seus processos e os seus requerimentos sejam tratados. O pacto nunca vai prevenir ou preparar todo este trabalho de terreno que é preciso implementar e não tenho a certeza que os líderes políticos da UE percebam a dimensão real deste problema”, aponta o responsável.
O responsável da AI lembra ainda os casos de países que “criminalizam as organizações da sociedade civil” que procuram salvar vidas e que muitas vezes cumprem um papel que caberia ao próprio Estado. Quanto aos que conseguem chegar a território europeu, os problemas repetem-se: “Temos visto campos de refugiados a serem construídos na Grécia com a mesma metodologia do campo de refugiados que sofreu o incêndio em Moria. Parece que estamos sempre em loop. Os mesmos erros a serem cometidos ano após ano”, afirma.
Susana Ferreira destaca o enfoque excessivo dos documentos europeus na garantia de proteção fronteiriça: “O que temos visto é a crescente aposta no reforço das fronteiras externas. Vimos que o grande enfoque nestes últimos cinco anos foi o reforço das fronteiras e o que voltamos a ler quando abrimos o pacto de 2020 é o mesmo”.
“Claro que para termos um espaço de segurança interna é que necessário reforçar as fronteiras” tendo em conta a livre-circulação, assume a investigadora. No entanto, a Europa deve “saber equilibrar todas as dimensões e garantir a proteção e preservação dos Direitos Humanos”, conclui.
No caso concreto que ocorreu em Espanha há um mês, tal como em tantos outros, o país acabou por “devolver” os migrantes e apenas os menores ficaram em território espanhol. Neste caso, a Europa voltou a falhar na garantia do Direito ao Asilo, refere Susana Ferreira.
“Quando se fazem estas devoluções massivas muitas vezes não se tem em conta as histórias individuais. Um dos elementos inovadores das políticas europeias é que já não se fazem, por norma, regularizações em massa, já que se tem em conta que cada processo migratório é diferente. Fazer devoluções em massa põe em causa o princípio do non-refoulement, que está contemplado pelo Direito Internacional, com a convenção de Genebra dos Refugiados”, frisa a investigadora.
“Não podemos tomar o todo pela parte, isso deve ser sempre o princípio que deveria reger as políticas europeias. Atendendo às circunstâncias, a grande maioria dos migrantes que entrou eram marroquinos que foram convocados através das redes sociais. No entanto, havia outros migrantes, entre eles e também entre os próprios migrantes marroquinos, com histórias de possível necessidade de proteção internacional”, sublinha.
Pedro A. Neto, da Amnistia Internacional, também é muito crítico quanto a estas devoluções. “Temos visto os fenómenos dos pushbacks na Grécia, ou neste episódio de Ceuta também. Não estou a ver aqui uma mudança de atitude na abordagem a esta questão, bem pelo contrário. Estou a ver os muros da fortaleza a elevarem-se e os discursos políticos populistas a aproveitarem-se da fragilidade destas pessoas e com isso crescerem, ou tentarem crescer, nas intenções de voto”, aponta.
Esforço final da presidência portuguesa
Passados dez meses desde que este pacto das migrações foi apresentado, a União Europeia continua a não chegar a um consenso. Uma das prioridades definidas pela presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que termina na próxima semana, era precisamente “dar seguimento à negociação do novo pacto”, com prioridade à “prevenção da imigração irregular, a promoção de canais sustentáveis de migração legal e a integração dos imigrantes, promotora da salvaguarda dos Direitos Humanos”, lê-se na página oficial da presidência portuguesa.
Ainda no final de maio, o ministro português de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, elogiava a proposta da Comissão Europeia como “uma boa base de trabalho” e que Portugal tudo faria para “avançar na sua concretização e na obtenção dos necessários consensos”. No âmbito da presidência portuguesa do Conselho da UE, prometia então lutar “até ao último minuto” do mandato para avançar rumo a um acordo.
Mas perante o vácuo persistente de uma reforma europeia nesta matéria, a comissária europeia Ylva Johansson começou a negociar logo em maio um acordo que permitisse aliviar a pressão migratória sobre Itália. “Estou em contacto com os Governos para estabelecer uma rede de ajuda voluntária, de redistribuição voluntária que possa ajudar Itália durante estess meses de verão até que aprovemos a reforma europeia”, afirmou então ao jornal italiano La Repubblica.
Com o verão novamente à porta, o Med5 (grupo de países mediterrâneos da UE: Itália, Grécia, Espanha, Chipre e Malta) escreveu recentemente uma carta ao Governo português, que ainda detém a presidência rotativa da UE, apelando ao reforço e transformação do Gabinete Europeu de Apoio ao Asilo (EASO) numa agência formal comunitária, com poderes para avaliar os pedidos de asilo.
“A conclusão deste dossier dotará a Agência de um sólido quadro normativo, operacional e prático e, por conseguinte, a UE de um instrumento que lhe permitirá desenvolver uma solução sustentável e de longo prazo relativamente à questão do Asilo, bem como reforçar o apoio à cooperação entre os Estados-Membros e os países terceiros, contribuindo igualmente para a dimensão externa da gestão dos fluxos migratórios”, acrescenta o MAI.
De resto, o Ministério da Administração Interna salienta que a Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia “promoveu um intenso trabalho na dinamização das negociações do novo Pacto em matéria de Migração e Asilo”. Os principais desenvolvimentos estão reunidos num relatório que será entregue às autoridades eslovenas.
O MAI esclarece que a abordagem portuguesa ao longo dos últimos meses “interligou as dimensões interna e externa”, procurando desde logo avanços na resolução de “desequilíbrios da pressão migratória”. Destaca também a aprovação do Blue Card a 17 de maio, “após três anos de bloqueio negocial e volvidos cinco anos da apresentação da proposta de revisão da diretiva pela Comissão Europeia”. O Blue Card, ou Cartão Azul, pretende contribuir para atrair e reter cidadãos estrangeiros altamente qualificados na União Europeia.
Quanto à dimensão externa, o Ministério da Administração Interna sublinha à RTP que é “fundamental promover o reforço da cooperação com países terceiros estratégicos para a gestão conjunta dos fluxos migratórios, o que permitirá à UE ser mais eficaz a abordar adequadamente as causas profundas da migração”.
Para isso, a presidência portuguesa destaca a importância de “iniciativas bilaterais, regionais e multilaterais de cooperação”, nomeadamente com os países do Norte de África.
“A PPUE [Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia] promoveu uma análise que deve, em primeira instância, ser feita ao nível interno, dos Estados-Membros, após a qual a UE conseguirá conceber uma narrativa forte e única, que demonstre junto dos países terceiros a aliança que existe entre Estados-membros e permita, dessa forma, aumentar a sua credibilidade no plano externo”, destaca o Ministério da Administração Interna.
“Políticas de mínimos” e oportunidades "não aproveitadas"
Apesar dos avanços, a narrativa comum em relação às migrações parece estar longe de ser alcançada. Para a investigadora portuguesa Susana Ferreira, os progressos nesta matéria, e na questão migratória em geral, prendem-se com a política interna dos Estados-membros e com o aumento dos populismos, que se recusam a discutir, quanto mais adotar, medidas concretas.
“Penso que se pode ir trabalhando pouco a pouco e nisso a presidência portuguesa está a fazer um excelente trabalho. O que resultar daqui não é por falta de trabalho por parte de Portugal, é por falta de vontade política dos restantes Estados-membros. (…) É verdade que estamos a falar de um tema que toca no coração, no íntimo da soberania interna de cada país e que acaba por se traduzir na adoção de políticas de mínimos. Por isso, tudo aquilo que se vai logrando são passos pequenos, porque é o que os Estados-membros aceitam e estão dispostos a ceder”, explica Susana Ferreira.
Por sua vez, a Amnistia Internacional assume uma postura mais crítica em relação à União Europeia, em particular à presidência portuguesa que agora termina. “Portugal podia ser mais liderante no que diz respeito a este trabalho de Direitos Humanos a nível internacional. Mas não temos visto essa capacidade ou essa vontade e creio que é uma pena. Porque podíamos fazer muito, mas a bem de outros interesses, talvez económicos e financeiros, a postura tem sido mais silenciosa, não confrontacional. É pena, porque não nos estamos a colocar do lado certo da história”, critica Pedro A. Neto.
“Tivemos seis meses com palco e espaço, e apesar de a presidência mudar na sua rotatividade, esse é um trabalho que pode continuar a ser feito noutros fóruns e noutras instâncias. Mas lamento que tenhamos perdido aqui uma oportunidade muito boa”, acrescenta Pedro A. Neto.
O diretor-executivo da AI admite que o trabalho das autoridades portuguesas possa ter sofrido o impacto da situação pandémica, sempre no primeiro plano das preocupações, mas que até nesse campo Portugal falhou no âmbito desta presidência.
“Quando se falou no levantamento das patentes para fazer crescer a produção da vacinação no mundo, a posição do Ministério português dos Negócios Estrangeiros foi aliar-se com os interesses da Alemanha. Creio que a pandemia pode ser uma justificação, mas até a pandemia nos deu oportunidades de exercermos liderança neste campo que não foram aproveitadas”, conclui.
Fotografias: Shereen Talaat, Alkis Konstantinidis, Jon Nazca, Guglielmo Mangiapane - Reuters