Após três noites de caos nas ruas das principais cidades espanholas, o presidente do Governo rompeu o silêncio esta sexta-feira para se desmarcar do apoio já manifestado pelo seu vice-presidente Pablo Iglésias ao rapper Pablo Hasel. O Unidas Podemos, que com o PSOE de Sánchez mantém uma coligação de governo em Espanha, fez saber que iria trabalhar no sentido de um indulto ao rapper. Pedro Sánchez não se referiu ao parceiro de coligação, mas desmarcou-se claramente deste apoio ao referir que “numa democracia plena como é Espanha a violência é inadmissível”.
Acrescentando que “a violência é a negação da democracia”, o primeiro-ministro espanhol garantiu que o executivo “actuará em força contra a violência”. Sublinharia no entanto que o executivo vai trabalhar para alterar o código penal espanhol no sentido de eliminar as penas de prisão por ofensas envolvendo a liberdade de expressão. Em particular quando se trate da expressão artística.
“A democracia espanhola tem pela frente uma tarefa inacabada para melhorar a liberdade de expressão [para corresponder aos parâmetros] de outros países europeus”, declarou Pedro Sánchez, acrescentando que “o governo vai melhorar a proteção da liberdade de expressão”.
É precisamente este o cenário da detenção de Pablo Hasel, um rapper acusado de fazer através da sua música uma elegia ao terrorismo e de ter letras ofensivas contra o rei e a coroa espanhola, a quem acusa de roubar milhões aos espanhóis. Um cenário que gerou um caldo de contestação nas ruas de um país que nos últimos anos foi rasgado pela ferida aberta do franquismo e pela luta autonómica na Catalunha.
Acusação cruza injúrias à coroa com ameaças a testemunha
O processo que enfrenta o rapper Pablo Hasel aponta a uma condenação relativa a factos de 2014 e 2016, quando publicou uma canção no YouTube e mensagens na rede social Twitter acusando as forças de segurança espanholas de tortura e homicídio. Um tribunal de Lérida, na Catalunha, confirmava ontem nova sentença de dois anos e meio por ameaças a uma testemunha num julgamento contra a polícia da cidade, o que se junta aos nove meses que lhe valeram as mensagens no Twitter injuriando a coroa espanhola e glorificando o terrorismo.
O rapper, que se barricou segunda-feira na Universidade de Lleida com “a proteção” de dezenas de ativistas, acabaria por ser detido na terça-feira, tornando-se de imediato na principal bandeira de um movimento que contesta a Lei de Segurança Pública espanhola promulgada em 2015 pelo então governo do Partido Popular.
Trata-se de uma legislação amplamente criticada por várias organizações de Direitos Humanos que tem levado aos tribunais outros artistas e personalidades dos meios da comunicação social espanhola.
Um manifesto subscrito por uma lista de duas centenas de personalidades que inclui o realizador Pedro Almodóvar e o ator Javier Bardem pede a libertação imediata de Pablo Hasel considerando que “a perseguição a 'rappers', autores de twits, jornalistas, bem como de outros representantes da cultura e da arte, por tentarem exercer o seu direito à liberdade de expressão, converteu-se numa constante”.
“O Estado espanhol passou a encabeçar a lista de países que mais represálias lançou contra artistas pelo conteúdo das suas canções. Agora, com a detenção de Pablo Hasel, o Estado espanhol está a equiparar-se a países como a Turquia ou Marrocos” referem os subscritores.
Esta sexta-feita vários rappers portugueses expressaram também a sua solidariedade para com Pablo Hasel, apelando à união dos artistas na defesa da liberdade de todos. Através das redes sociais, Capicua lembrou ainda "todos os outros rappers espanhóis (são cerca de 15), como Valtònyc (exilado há uns anos para não ser preso), que, por criticar o estado espanhol e sua monarquia, têm sido alvo de perseguição e condenação”.
“Prender alguém por 'tweets' e rimas em pleno 2021 é inaceitável. Temos de estar vigilantes e espalhar a mensagem! Podia ser qualquer um de nós!”, escreveu a rapper portuguesa.
Também nas redes sociais, NBC deixou a sua surpresa por em 2021 ver “um poeta, escritor, a ser preso por dar a sua opinião numa música sobre o que ele acha do poder instituído em Espanha (…) Se todos os que usam a palavra tiverem que ser presos por dizer o que sentem em relação ao estado ou ao seu patrão, então todas as pessoas merecem ir presas, porque toda a gente o faz em alguma altura da sua vida. Mas em 2021, a empatia e colocar-se no lugar do outro [são] um eufemismo”.
“Todos os sistemas devem ser colocados em causa, nenhum sistema deve ficar impune desse escrutínio, mas se em 2021 assobiamos para o lado quando um artista é preso por contestar alguma coisa, então batemos no fundo. Se batemos no fundo, paz à nossa alma”, escreveu NBC.
Numa mensagem mais concisa, Valete partilhou no Instagram uma notícia da detenção de Hasel a que juntou um único comentário: “Franquismo”.
Três dias de sublevação
As manifestações de apoio a Pablo Hasel atravessam todo o país, tendo levado milhares para as ruas, após os apelos à mobilização deixados nas redes sociais. De acordo com o relato do El País, não é apenas em Barcelona e Madrid, as duas principais cidades espanholas, que a rua está incendiada. Também Tarragona, Vic, Granada, Burgos, Guadalajara e Toledo se juntaram ao protesto. Só na Catalunha, epicento dos acontecimentos, foram já detidas mais de meia centena de pessoas e na capital, contas desta sexta-feira, outras 19, entre as quais seis menores de idade.
Há igualmente o registo de mais de uma centena de feridos a repartir entre Barcelona e Madrid, com atenção particular para uma jovem de 19 anos que perdeu um olho.
Alejandro Garcia - EPA
Entre as forças de segurança contam-se três dezenas de polícias que tiveram de ser assistidos face à proporção de violência que atingiram os protestos, com os ativistas, muitos dos quais identificados com a extrema-esquerda e com grupos violentos calejados na luta de contestação, a erguerem barricadas e incendiarem caixotes do lixo.
A resposta da polícia foi feita com disparos de gás lacrimogéneo e balas de borracha visando a parte superior do corpo dos ativistas, o que explica o ferimento da jovem que acabaria por perder um dos olhos.