ONU acusa Sudão do Sul de autorizar milícias a violar mulheres "como salário"

por Graça Andrade Ramos - RTP
Milícias Nuer do Sudão do Sul em 2014 Goran Tomasevic - Reuters

Num relatório publicado esta sexta-feira sobre a guerra civil do Sudão do Sul, a agência da ONU para os Direitos Humanos afirma que o Governo do país está a seguir uma política de "terra queimada" de violações deliberadas, pilhagens e morte de civis com base étnica. E admite que constituem crimes de guerra e contra a humanidade.

"É uma das situações de Direitos Humanos entre as mais horríveis no mundo, com uma utilização massiva da violação como instrumento de terror e como arma de guerra," declarou o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, o saudita Zeid Ra'ad Al Hussein.

"A escala e o tipo de violências sexuais - que são principalmente praticadas pelas forças governamentais SPLA (Exército Popular de Libertação do Sudão) e das milícias que lhe são filiadas - são descritas com detalhes medonhos e devastadores, assim como a atitude - quase desenvolta mas calculada - dos que massacraram civis e destruíram bens e meios de subsistência", acrescentou Hussein.

No relatório, a ONU garante que, "de acordo com fontes credíveis, os grupos aliados do Governo são autorizados a violar as mulheres como salário", segundo o princípio "façam o que puderem e tomem o que quiserem."

A prevalência da violação "sugere que o seu uso no conflito se tornou uma prática aceitável pelos soldados do SPLA e milícias armadas suas filiadas," refere ainda o documento.

Soldados rebeldes do Sudão do Sul em novembro de 2015 Foto: Reuters

O porta-voz do Governo do Sudão do Sul, Ateny Wek Ateny, negou que os grupos armados aliados tenham cometido atrocidades.

"Dizemos-lhes para... minimizar as vítimas civis, quando são mesmo obrigados a combater," garantiu à al Jazeera.
Crimes de guerra e contra a humanidade
"O relatório inclui testemunhos chocantes sobre civis suspeitos de apoiar a oposição, incluindo crianças e deficientes, que foram queimados vivos, sufocados dentro de contentores, abatidos a tiro, enforcados de árvores ou cortados aos pedaços", afirma a declaração da agência da ONU, de acordo com a agência France Presse.

As Nações Unidas admitem que as alegações podem abrir caminho a investigações a crimes de guerra e/ou contra a humanidade.

"Dada a amplitude, a profundidade e a gravidade das alegações, a sua coerência, a sua repetição e similitudes observadas no modus operandi, o relatório conclui que existem motivos razoáveis de pensar que estas violações podem constituir crimes de guerra e/ou crimes contra a humanidade," afirmou o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos.

De acordo com as Nações Unidas, "a imensa maioria das vítimas civis não parecem resultar de operações de combate mas de ataques deliberados contra os civis".

"De cada vez que uma zona muda de mãos, as pessoas responsáveis matam ou deslocam o maior número de civis possível, com base na sua pertença étnica," refere.

O relatório da ONU resulta do trabalho de uma equipa enviado ao Sudão do Sul entre Outubro de 2015 e janeiro de 2016. Diz que "atores do estado" são os principais responsáveis pelos crimes. Só em cinco meses de 2015 foram apresentadas 1.300 queixas de violação, refere.

O relatório da ONU coincide com um relatório separado da Amnistia Internacional, que acusa as forças do Governo de ter morto mais de 60 homens e rapazes em Outubro de 2015, ao fechá-los num contentor marítimo até sufocarem.
Conflito étnico
O Sudão do Sul, um dos países mais recentes do mundo, conseguiu a independência do Sudão do norte em 2011, após anos de conflito com o norte, mas viveu sempre um equilíbrio precário entre as duas principais etnias, os Dinka, agricultores e os Nuer, pastores de gado.

A guerra civil estalou em dezembro de 2013, devido a confrontos étnicos entre os soldados do Governo. Seguindo alegadamente ordens do Presidente Salva Kiir, o major general Marial Ciennoung, comandante da Guarda Presidencial (o Batalhão Tigre), terá ordenado no quartel da capital, Juba, que todos os solados fossem desarmados, tendo depois autorizado os soldados da etnia Dinka a rearmar-se.

Salva Kir, Presidente do Sudão Foto: Reuters

A ordem foi questionada pelo seu vice, da etnia Nuer, tendo os soldados deste grupo começado a rearmar-se igualmente. Os confrontos entre os dois grupos alastraram a toda a cidade e depois a todo o país, quando Kiir, do partido maioritário SPLM (Movimento de Libertação do Povo do Sudão) acusou o seu vice-presidente Riek Machar de tentar um golpe de Estado.

Machar e todo o Governo tinham sido demitidos por Kiir meses antes e Machar acusou então Kiir de querer tornar-se um ditador.

Riek Machar, líder rebelde do Sudão do Sul Foto: Reuters

A guerra civil já fez mais de 2,3 milhões de deslocados e dezenas de milhares de pessoas foram mortas numa guerra especialmente marcada por atrocidades dos dois lados.

Um acordo de paz firmado em agosto de 2015 não impede confrontos, entre as forças governamentais e grupos rebeldes ou armados a nível local, que não se sentem obrigados pelo acordo e que são movidos por interesses próprios.

Os acordos prevêem a constituição de um tribunal híbrido, para investigar e julgar actos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos durante o conflito, mas este não foi ainda formado.

O alto comissário para os Direitos Humanos apelou à constituição deste tribunal, à falta do qual será necessário encaminhar as denúncias para o Tribunal Penal Internacional, de Haia.
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