ONG recebem ordem de despejo e alertam para desaparecimento de símbolo da democracia eslovena

por Lusa

Iztok Sori caminha pelos corredores do prédio de Metelkova 6, onde operam 18 organizações não governamentais (ONG) eslovenas, para mostrar que, contrariamente ao que alega o Ministério da Cultura, o edifício está em bom estado.

"Fomos dos primeiros a entrar neste prédio", relembra à Lusa o diretor do Peace Institute, uma organização que faz investigação sobre direitos humanos e minorias, `media` e políticas culturais e de género.

"É verdadeiramente uma história especial, porque o Governo nunca voltou a dar um prédio para ser utilizado por organizações não governamentais. Há muitas ONG com sucesso neste prédio, o que mostra quão importante esta infraestrutura básica é para o desenvolvimento e a profissionalização das ONG", aponta.

A "história especial" de que Iztok Sori fala remonta à independência da Eslovénia: antigo quartel-general do Exército Popular Jugoslavo, o prédio foi ocupado em 1993 por ativistas, que viriam a assinar um contrato com o Ministério da Cultura esloveno que lhes garante a permanência no edifício por um período indeterminado.

Agora, quando o país se prepara para celebrar o 30.º aniversário da independência, as 18 ONG que se encontram no prédio receberam uma ordem de despejo decretada pelo Ministério da Cultura e alertam para o risco de desaparecimento de um símbolo da democracia eslovena.

"Este prédio fez parte de um movimento nos anos 1980 e estas organizações fazem parte da democratização da sociedade nessa época. É uma parte muito importante da história e, se for apagada, uma parte muito importante do processo democrático irá também desaparecer", frisa à Lusa Alja Lobnik, diretora no Maska Institute, uma organização de atividades editoriais, culturais e de produção ligada à arte contemporânea e teatral.

O Maska Institute e o Peace Institute estão entre as 18 ONG que, em outubro de 2020, receberam um "pedido para abandonar as instalações" até 31 de janeiro de 2021, com o pretexto de que, contrariamente aos restantes edifícios do complexo, o Metelkova 6 era o único que ainda não tinha sido renovado.

À Lusa, o Ministério da Cultura diz não haver qualquer "motivação política" por detrás da ordem de despejo, referindo que "o prédio de Metelkova 6 é perigoso para os habitantes devido ao seu estado de degradação e o Ministério, enquanto proprietário, é obrigado a renová-lo".

"Aliás, uma rapariga jovem que passava casualmente diante do prédio ficou ferida porque lhe caíram telhas na cabeça", acrescenta.

O Ministério aponta por outro lado que, apesar de os contratos de renda terem sido "alterados para cobrir um período indefinido", seria uma "ficção concluir que uma renda por um período indefinido significa que o Ministério não pode rescindir" o contrato de arrendamento.

"Nenhuma renda pode ser permanente, porque tal corresponderia a infringir os direitos de propriedade do senhorio. O Ministério agirá assim em total conformidade com a lei ao rescindir os contratos de arrendamento", diz a mesma fonte.

Já Iztok Sori considera que, por detrás da ordem de despejo "está a promessa de destruir certas ONG, especialmente aquelas que são críticas e que defendem os direitos humanos ou o ambiente".

O Peace Institute, que se recusou a sair, recebeu, no início de maio, uma ordem de despejo que está atualmente em tribunal, num processo que Sori considera que deverá "demorar um ano" e que o instituto utilizará para demonstrar que a decisão do Ministério "não tem qualquer fundamento".

"Mantivemos este prédio nos últimos 20 anos: o Ministério não investiu nada nele, tudo o que foi arranjado foi financiado por nós ou feito individualmente por certas organizações", afirma Sori, que mostra a biblioteca do instituto - uma sala caiada de branco, chão de tacos de madeira envernizada e estantes do chão até ao teto - que contraria a imagem de degradação aparente na fachada: sarapintada de grafitis e a precisar de pintura.

Alja Lobnik também afirma que o "prédio não é perigoso e que são as organizações, enquanto "habitantes do prédio", que têm garantido que Metelkova 6, apesar de não estar "perfeito", se mantém "em bom estado".

Goran Forbici, diretor do Centro de serviço de informação, cooperação e desenvolvimento das ONG (CNVOS), que representa cerca de 1.400 organizações eslovenas, vê na ordem de despejo a vontade do Governo de "apagar um símbolo" que surgiu com a ocupação nos anos 1990 e que representa uma "espécie de quartel-general da cultura independente".

O diretor da CNVOS, fundada em 2001, fala de pressões mais vastas que o conjunto das ONG estão a sofrer desde que o primeiro-ministro, Janez Jansa, tomou posse e que, partindo da retórica que nunca foi tão tóxica -- e que caracteriza as ONG como "parasitas" que vivem à custa do dinheiro dos contribuintes e "atrasam o desenvolvimento do país" -- , começam a ter impacto no acesso a fundos públicos por parte de algumas ONG críticas do Governo.

"Não devemos ser inocentes e negar que, antes, os ministros ou membros do Governo não tentavam influenciar os concursos públicos. Claro que o faziam. (...) Mas garantiam sempre a heterogeneidade do financiamento: uns recebiam mais, mas todos recebiam, havia a filosofia de `todas as flores devem desabrochar`. Agora, com Jansa, (...) estão verdadeiramente a fazer uma seleção", diz Forbici.

Apesar de, pela própria natureza dos concursos públicos, nenhuma organização ter perdido fundos, "porque nenhuma organização os teria à partida", o diretor da CNVOS refere que, muitas organizações que antes nunca tinham ganho concursos públicos, agora o fizeram, enquanto outras, como a Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias, os perderam.

O Instituto Maska já está a sentir o impacto da alegada política governamental relativa às ONG: prepara-se para se candidatar a um concurso público que garantiria financiamento para os próximos quatro anos, mas Alja Lobnik considera que o instituto tem "poucas chances" de o ganhar.

"As pessoas que decidem são mais conservadoras relativamente àquilo que a arte pode ser. E, provavelmente, têm simpatias, ou algum tipo de relacionamento, com o Governo, e nós temos a visão oposta, o que deverá influenciar o resultado", aponta a diretora.

Apesar da eventual ausência de fundos, Alja Lobnik frisa que, caso o Maska Institute tenha de sair de Metelkova 6, irá "tentar, de alguma maneira, sobreviver", mas recusa que essa seja a questão central quando se fala das ordens de despejo.

"Este não é um problema particular, é um problema da sociedade. É o problema de perceber como é que nós, enquanto sociedade, permitimos que o Governo faça isto", afirma a diretora do Maska no escritório que a organização ocupa desde 1997, e que teme agora perder.

A Eslovénia, que assume a presidência do Conselho da União Europeia (UE) na próxima semana, vive um clima de contestação ao governo de Janez Jansa, com protestos semanais que há cerca de um ano reúnem milhares de pessoas na capital contra o que consideram medidas que atentam contra as liberdades fundamentais do país.

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