Obrigado a negociar. ANC com apenas 40 por cento dos votos na África do Sul

por Graça Andrade Ramos - RTP
Retirada de propaganda do ANC a 25 de maio de 2024 James Oatway - Reuters

Longe vão os tempos em que o partido de Nelson Mandela aguardava descansadamente as tradicionais duas semanas após as eleições para declarar o nome do novo presidente.

Este sábado, quando estavam contados 99 por cento dos boletins, o Congresso Nacional Africano, ANC, detinha somente 40 por cento dos votos, longe da maioria absoluta anterior, quando tinha conseguido 58 por cento. 

Estes são os piores resultados do ANC desde o fim do apartheid, há 30 anos.

Com 400 lugares, o Parlamento sul-africano reflete diretamente a votação. Os resultados eleitorais finais serão conhecidos este domingo.

Os observadores da União Africana (UA) garantiram que o escrutínio de quarta-feira foi “pacífico” e credível, apesar do "ambiente político tenso, intensificado por várias disputas".

"Apesar dos desafios e das tensões, as eleições decorreram de forma pacífica, demonstrando a resiliência dos processos democráticos da África do Sul", segundo a UA.

No dia das eleições, registaram-se longas filas de eleitores e "alguns incidentes isolados" devido à lentidão do processo, mas "o dia foi geralmente calmo e pacífico", declarou ainda.
Obrigados a negociar
O ambiente político tenso deverá agravar-se nas próximas duas semanas, tempo previsto entre o anúncio dos resultados e a escolha do novo presidente do país. Este necessita do apoio de 50 por cento dos deputados.

O Partido do Congresso perdeu o controlo de quatro das nove províncias que compõem o país, incluindo Gauteng, a mais rica, e com os democratas e liberais a reterem 50 por cento dos votos no Sudeste do Cabo.

O ANC perdeu à justa no Norte do Cabo, onde obteve 49 por cento dos votos. Venceu em Mpumalanga com 51 por cento, em Free State, com 52 por cento, no Noroeste, com 58 por cento, no Cabo Leste, com 62 por cento e no Limpopo, com 73 por cento.

Pela primeira-vez, o ANC vai ser obrigado a negociar.

O segundo partido mais votado deverá ser a Aliança Democrática, de centro-direita, com 22 por cento dos votos. A diáspora sul-africana votou esmagadoramente na AD, dando-lhe 75.3 por cento.

"Algumas vozes no topo do ANC estão a argumentar a favor de um pacto de confiança" entre o ANC e a AD, apesar dos polos opostos em que situam quanto às políticas de proteção social.

O partido liberal, o principal partido da AD, não fechou completamente a porta a uma coligação com o Congresso Nacional. O seu líder, John Steenhuisen, um branco de 48 anos, considera que uma aliança entre o ANC e a esquerda radical dos EFF ou o MK, do antigo presidente sul-africano Jacob Zuma, criaria uma "coligação apocalíptica".

A sua retórica crítica do ANC e as promessas de "salvar" o país através da privatização e da desregulamentação, assim como a proposta de por fim à política de Empoderamento Económico dos Negros (BEE), aplicada desde o advento da democracia em 1994 e que permitiu a alguns sul-africanos fazer fortuna, poderão obstar às negociações.

Tal pacto envolveria a concessão de algumas pastas ao partido da oposição, em troca da permanência do atual Presidente, Cyril Ramaphosa, no cargo, de acordo com Christopher Vandome, investigador do think-tank londrino Chatam House.

Os principais líderes do ANC, incluindo o presidente Cyril Ramaphosa, reuniram-se já este sábado para analisarem as possibilidades.
Amigos-inimigos
Já o novo partido umKhonto weSizwe, MKP, criado em setembro passado e liderado por Zuma, ex-presidente pelo ANC (2009-2018), ficou em terceiro lugar com 15 por cento dos boletins. Este sábado denunciou "irregularidades" e prometeu recorrer.

Em declarações aos jornalistas no centro de resultados eleitorais da Comissão Eleitoral Independente (IEC), em Joanesburgo, o representante eleitoral do partido, Muzi Ntshingila, declarou que "o partido vai contestar o processo, que foi irregular".

"Nós não reconhecemos os resultados", afirmou.

O MKP vangloria-se de ter sido o principal repsonsável pela perda da maioria do ANC.
No KwaZulu-Natal, o MKP obteve mesmo 45 por cento dos votos, roubando a província ao Congresso Nacional.
Zuma, impedido de se candidatar à presidência por uma decisão do Tribunal Constitucional devido à condenação a 15 meses de prisão por desacato ao tribunal em 2021, disse que iria rejeitar trabalhar com o líder do ANC, Cyril Ramaphosa.

Pelo contrário, o partido de extrema-esquerda EFF, Combatentes da Liberdade Económica, de Julius Malema, que deverá ficar em quarto lugar com nove por cento, anunciou a sua disposição para contactos com todas as forças partidárias.

"Iremos conversar com todos os partidos políticos no entendimento de que deverá ser constituído um governo nos próximos 14 dias", afirmou Malema aos repórteres no centro de contagem de votos em Joanesburgo.

Julius Malema, de 43 anos, fundou o EFF depois de ter sido expulso do ANC, onde dirigia a liga da juventude, na sequência de ter sido acusado de fomentar divisões. Apesar disso, considera que com o ANC "é possível conversar".

Um entendimento entre o ANC, o MKP e o EFE não seria de descartar, devido aos anteriores laços dos dirigentes.

Mas as rivalidades de longa data entre Zuma e Ramaphosa, que o expulsou e lhe sucedeu, são "demasiado profundas", consideraram outros analistas. E as exigências da EFF, como a pasta da Economia, a redistribuição de terras aos negros e a nacionalização de setores económicos inteiros, são "demasiado erráticas e imprevisíveis", referiram.

Malema exige a expropriação, sem quaisquer compensações, das terras detidas por brancos.
Futuro incerto
O fiel da balança poderá revelar-se Velenkosini Hlabisa, cujo Partido Inkatha da Liberdade (IFP) poderá obter 3,9 por cento dos votos ficando em quinto lugar.

Hlabisa assumiu aos jornalistas que a nova paisagem política sul-africana e uma nova era de coligações políticas sublinha a importância do seu pequeno partido.

Com apenas 2.06 por cento dos votos, a Aliança Patriótica do controverso Gayton McKenzie é contudo considerada um dos grandes vencedores das eleições, tendo crescido de uma base de 0,04 por cento há cinco anos.

Mckenzie quer a expulsão dos migrantes ilegais e está ansioso para participar das negociações. "Estou delirante", afirmou este ex-líder de gangue e ex-detido, à televisão nacional SABC, sublinhando que foi o único, além do MKP de Zuma, a crescer neste escrutínio.

"Trabalharemos com qualquer um", acrescentou McKenczie, de 50 anos. O seu partido é agora o sexto maior a nível nacional.

Após três décadas de domínio do ANC, a África-do-Sul está longe da prosperidade económica. Um exemplo é a falta de eletricidade que afeta praticamente toda a população algumas horas diariamente. O desemprego ronda os 32 por cento.

Repor a economia a crescer e combater o enriquecimento ilícito será a prioridade do novo executivo sul-africano. Mas a instabilidade política poderá deitar tudo a perder. 

Os eleitores expressaram sem dúvidas o seu descontentamento com o ANC mas o futuro mantém-se incerto.

com Lusa
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