O curioso vínculo entre Vietname e Estados Unidos, 40 anos depois

por Andreia Martins, RTP
A Queda de Saigon recordada por um antigo refugiado sul vietnamita, em San Diego, nos Estados Unidos. Mike Blake/Reuters

A Guerra no Vietname (1955-1975) é um dos conflitos mais marcantes do pós-Segunda Guerra Mundial. A repartição de territórios entre capitalistas e comunistas teve vários simulacros num mundo dividido por uma cortina de ferro, mas foi no Sudeste asiático que a comunidade internacional - e os próprios norte-americanos - começaram a olhar com desconfiança as recorrentes intervenções dos Estados Unidos em assuntos de política interna de outros países. Hoje, Vietname e EUA tentam sarar as feridas da guerra que persistem e reforçar uma relação diplomática que, sendo consistente, ainda tem muito que amadurecer.

Quando as tropas do Vietname do Norte entraram em Saigão, a 30 de abril de 1975, o país reunificou-se sob a égide de um regime de inspiração marxista-leninista que até hoje se mantém.

Com a transferência de poderes, Saigon, a capital do Sul do Vietname, passou a chamar-se Ho Chi Minh, em homenagem ao líder comunista do ex-Vietname do Norte que morreu durante a guerra. Ironicamente, a cidade viria a tornar-se no baluarte financeiro e no centro comercial mais importante do país.
Paz com Washington … e PequimSe há quarenta anos os Estados Unidos forçavam um embargo do Banco Mundial ao país asiático aquando da entrada dos tanques norte-vietnamitas no Palácio Presidencial de Saigão, as relações diplomáticas e económicas entre os dois países assumem atualmente contornos bem mais pacíficos. Em 1995, os representantes dos dois países normalizaram as relações diplomáticas.

Os vínculos existentes entre as duas nações foram fortalecidos sobretudo pelo inimigo comum que veem na China, no caso do Vietname, pelas ambições territoriais de Pequim nas águas do Mar da China, junto à linha de costa vietnamita.

A própria pressão da China não deixa que os acordos bilaterais se adensem, com a pressão insinuada sobre os líderes vietnamitas. À profunda ligação histórica e ideológica aos chineses, acrescenta-se ao facto de a China ainda ser o sócio comercial mais importante. Mas a tensão entre os dois países subiu de tom com as lutas marítimas e territoriais, que levaram a violentos protestos por parte dos cidadãos vietnamitas.

As relações bilaterais entre os dois países fortaleceram-se também muito por via das constantes delegações diplomáticas enviadas mutuamente. Em 2013, o presidente vietnamita Truoung Tan Sang fez uma visita inédita à Casa Branca, altura em que Barack Obama lançou um plano de cooperação entre os dois países, em parâmetros tão variados como o comércio, economia e defesa, comprometendo-se, desde logo, a respeitar “o sistema político do outro”.

Um dos esforços comuns entre Estados Unidos e Vietname tem sido feito em reparar os erros do passado. Desde 2012, os dois países empenharam-se na limpeza de minas e zonas expostas ao designado “Agente Laranja”, um químico usado como arma de guerra que ainda hoje é responsável por novos casos de deficiências de nascença, físicas e psicológicas, e doenças cancerígenas.

A contestada intervenção dos Estados Unidos na Guerra do Vietname (1960-1975) fica inevitavelmente ligada ao uso de substâncias químicas por parte do exército norte-americano. O Agente Laranja, como é conhecido, foi usado como arma química na luta contra os comunistas do Vietname do Norte e foi espalhado de forma indiscriminada pelas florestas vietnamitas. A 30 de abril, no dia em que se assinalam os 40 anos desde o fim do conflito, ainda existem famílias inteiras afetadas por deficiências psíquicas e motoras. Muitos veteranos de guerra, também expostos ao agente, viriam mais tarde a sofrer de doenças cancerígenas.

Para além de famílias inteiras profundamente afetadas de forma indireta pelos crimes de guerra, o drama de um longo conflito também fica expresso em números. Estima-se que terão morrido cerca de 3 milhões de vietnamitas do norte, 250 mil vietnamitas do sul e ainda 58 mil norte-americanos, oficialmente envolvidos na guerra até 1973.
Diáspora vietnamita
Os Estados Unidos são atualmente o país que mais exportações vietnamitas recebe. No mercado interno norte-americano, os produtos vietnamitas competem em grande parte com os produtos que chegam de economias irmãs como os da Malásia e Tailândia.

“Nos últimos 19 anos, as nossas relações comerciais passaram de praticamente nada a 35 milhões de dólares anuais. O investimento das empresas norte-americanas criou empregos de qualidade para os vietnamitas e abriu novos mercados oara os bens e serviços vietnamitas”, enfatiza Ted Osius, embaixador dos Estados Unidos em Hanói.

Esta forte cooperação em muito advém da grande diáspora vietnamita, a mais representativa em todo o mundo, que chega aos 1,8 milhões de pessoas, segundo os censos de 2010. A comunidade está sobretudo concentrada na costa californiana no Condado de Orange e em San Jose.

A grande presença dos vietnamitas nos Estados Unidos é explicada sobretudo em fatores históricos: com o fim da guerra em 1975 e a vitória do regime comunista, os vietnamitas do sul, mais ocidentalizados desde os tempos da presença francesa enquanto potência colonizadora da Indochina, optaram por fugir ao regime, tendo como destino o país que tinha lutado ao seu lado durante a Guerra Civil.

A própria intervenção dos Estados Unidos no Plano de Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC) depende em boa parte da capacidade de Washington para estabilizar e consolidar as relações com os países asiáticos, o que demonstra a importância de ter Hanói como aliado.

Espera-se, aliás, que Nguyen Phu Trong, chefe do Partido Comunista, faça uma visita sem precedentes à Casa Branca, assinalando o redondo aniversário do fim do conflito e marcando uma nova fase na cooperação entre os dois países.

Mas as marcas e as feridas de uma intervenção norte-americana questionável que fez do Vietname um território “proxy” de luta indireta entre Rússia e Estados Unidos, no auge da Guerra Fria, e os desentendimentos em tópicos como os direitos humanos, deixam um longo caminho por percorrer na consumação plena das relações diplomáticas.
Direitos humanos
O cenário atual vivido pelos vietnamitas é bem diferente do que acabou por ser vivido no pós-guerra imediato. O progresso económico e financeiro dos últimos decénios fez-se acompanhar pela melhoria no nível de vida e o maior respeito pelos direitos humanos. Mas não o suficiente.

O Comité para a Proteção dos Jornalistas publicou este mês um relatório sobre a censura mundial e coloca o Vietname no “top 10” dos países que mais censuram os jornalistas, de que também constam a Eritreia, Coreia do Norte, Arábia Saudita e a Etiópia.

A posição deve-se sobretudo a uma lei que permite a prisão de bloggers. Muitos são colocados sob vigilância por parte das autoridades.

O Partido Comunista não permite desde logo a existência de meios de comunicação privados. A Lei sobre os Media indica que todos os jornalistas devem ser “porta-vozes das organizações partidárias”.

O documento da Human Rights Watch relativo a 2015 é especialmente pessimista. A ONG refere a situação “crítica” sobretudo no campo da liberdade de expressão e a forte repressão das forças de segurança. 

Recentes episódios de censura e repressão religiosa degradaram no último ano a situação do Vietname. De maioria budista, os casos de repressão de instituições religiosas, incompatíveis com o Estado, têm sido comuns entre Budistas de outros ramos, Protestantes e Católicos.
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