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O americano compassivo, os três irmãos e o balão da liberdade

por RTP
Foto histórica de 1961 que retrata o momento em que o soldado da RDA Hans Conrad Schumann, então com 19 anos, se converte no primeiro de várias dezenas de militares da RDA que se evadiram para a Alemanha Ocidental escapando através do Muro de Berlim. Peter Leibing

Histórias de fugas prodigiosas ao Muro de Berlim, que a RDA construiu para “proteger a cidade da ameaça ocidental”, mas que tinha as torres de vigia, as minas e as metralhadoras apontadas, não para fora, mas para dentro das muralhas.

Berlim-Leste, agosto de 1989. Hans-Peter Spitzner decide arriscar duas vidas: a sua e a da filha de sete anos, Peggy. Professor em Chemnitz, está cansado da vida que leva, da angústia, das sombras de onde espreitam os olhos opressores da Stasi, da má alimentação, das roupas grosseiras que invariavelmente arranham a pele. Quer juntar-se à sua família, a umas poucas dezenas de quilómetros de distância, mas que parecia estar a anos-luz – nessa altura era assim.

Pouco tempo antes, Ingrid, a mulher de Hans-Peter, conseguira uma autorização para se deslocar ao outro lado do mundo político de então, à Áustria, para visitar uma tia. O regime da República Democrática da Alemanha, dominado pelo Politburo soviético, demonstrava alguma flexibilidade quando se pretendia viajar sozinho ao Ocidente: a família ficava para trás e servia de garantia de regresso, como se de reféns se tratasse.

Havia muito tempo que o casal Spitzner falava em escapar. Com a sua mulher já do lado de lá, Hans-Peter sentiu que a grande oportunidade se deparava naquele momento. Nada estava planeado, foi um impulso. Numa viagem de quase 200 quilómetros, ele e a filha chegaram a Berlim-Leste.

Durante dois dias abordou vários soldados americanos que ali se encontravam de visita. Pedia-lhes ajuda para dar o salto, porque sabia que os seus carros não seriam revistados na hora do regresso ao Ocidente. A tarefa era incrivelmente perigosa, pela impossibilidade de saber se estaria a ser observado por alguns dos inúmeros espiões da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Democrática.

Durante dois dias tentou, durante dois dias os seus apelos foram rejeitados. Até que a 18 de agosto lhe aparece pela frente o jovem soldado Eric Yaw, o americano compassivo que, passado o espanto, aceita ser a personagem-chave neste contrabando potencialmente mortal. Mãos à obra: Spitzner e a filha escondem-se no porta-bagagens do carro do militar ocidental. Sem problemas, para além da enorme tensão que envolvia os três conspiradores, poucos minutos depois tinha sido atravessado o famigerado “Checkpoint Charlie”, o mais emblemático posto de controlo a dividir as duas metades da cidade.

Esta foi a última fuga bem sucedida através do Muro de Berlim. Alguns meses depois o mundo começou a mudar, essa parede caiu, a cidade e o país regressaram à unidade.


Escapar ao Muro


Depois da II Grande Guerra, Berlim, tal como toda a Alemanha, foi dividida em quatro setores, distribuídos por União Soviética, Estados Unidos, Inglaterra e França. Com o extremar de posições entre americanos e soviéticos, que levaria ao início da Guerra Fria, acontece a cisão da Alemanha em dois países. Os territórios controlados pela URSS compõem a República Democrática (RDA, no Leste); os de influência ocidental convertem-se na República Federal (RFA, no Oeste).





Berlim estava situada no nordeste da RDA, muito longe da RFA, que tinha a sua capital em Bona. Mantendo-se a divisão quadripartida de Berlim havia, portanto, um enclave “capitalista” incrustado em plena RDA comunista.

Com níveis de vida muito diferentes, a Alemanha Democrática começou rapidamente a perder milhares de pessoas que procuravam melhores condições na RFA. Em Berlim aconteceu o mesmo. Só que, nesse caso, muitas vezes bastava atravessar uma rua para se estar no Ocidente.

Explica-se assim, muito sumariamente, a decisão tomada pela RDA para construir o Muro, que isolava por via terrestre toda a parte pró-americana de Berlim.

Ao longo dos 28 anos (1961-1989) em que o Muro de Berlim existiu, materializando o mais intenso símbolo da Cortina de Ferro, muitos tentaram transpor essa fronteira para o Ocidente e muitos morreram na tentativa. A “Ordem 101”, conhecida comummente como Schießbefehl (ordem para disparar), em vigor desde a formação da RDA, determinava que se atirasse a matar sobre qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou adulto, que tentasse cruzar a fronteira para a Alemanha Ocidental sem autorização. A 101 ganhou uma nova dimensão após a construção do Muro e dos seus 155 Km de fortificação maciçamente guardada por torres de vigia e patrulhas de soldados e cães; minas e armadilhas; fossos; redes eletrificadas e barreiras de toda a espécie.

O Memorial do Muro de Berlim, financiado pelo Estado alemão, realizou um estudo em 2005 com a finalidade de alcançar informações concretas e comprovadas, não só sobre o número de vítimas do Muro, mas também sobre as suas identidades, dados biográficos e circunstâncias em que perderam a vida. Chegou-se a uma lista de 138 pessoas (disponível em inglês e em alemão), das quais 31 tinham idades inferiores a 20 anos. Dessas 31, seis tinham menos de nove anos de vida. Outras organizações, como o Museu do Checkpoint Charlie, sustentam que esse número será substancialmente superior, acima das 200 vítimas.

O Túnel 57

Perante tão formidável adversário, o engenho dos fugitivos foi posto à prova. Muitos túneis perfuraram as entranhas da terra entre os dois lados da fronteira berlinense. Um dos mais famosos é o da BernauerStraße, construído por estudantes durante seis meses, entre 1963 e 1964, de Oeste para Leste. Escavado a 12 metros de profundidade e com 145 metros de comprimento, foi o meio de fuga para 57 pessoas. Ficou por isso conhecido como o “Túnel 57”.
 
Ao longo dos primeiros anos do Muro, grupos de maior ou menor dimensão encontraram no subsolo (túneis, rede de esgotos) a solução para o desejo de fuga, até que as autoridades da Alemanha Democrática descobriram uma contramedida simples e eficaz: alargar suficientemente a “terra de ninguém” entre as duas metades da cidade transformava a construção de um túnel artesanal numa obra praticamente impossível.
 
O fabuloso destino dos irmãos Bethke

Com a constante atualização, inclusive tecnológica, dos meios de contenção do Muro, as fugas bem sucedidas passaram a resultar de planos cada vez mais engenhosos. Muitas vezes, quem conseguia passar para o lado pró-americano regressava, agora com documentos ocidentais, e ajudava novos fugitivos a passar a fronteira - familiares e amigos, principalmente.

Uma das histórias mais impressionantes compreende não uma, mas três evasões, em momentos diferentes, envolvendo três irmãos: Ingo, Holger e Egbert Bethke. Um por um, ao longo de nove anos, conseguiram evadir-se de modo cada vez mais espetacular. Em maio de 75, Ingo, um ex-guarda do Muro, conhecia um ponto mais frágil da vedação e aproveita-se dele. Munido de um colchão de ar, corta o arame e ganha acesso ao Spree, o rio que atravessa a cidade e ali serve de fronteira natural entre as duas metades. Atravessa um campo de minas, também seu conhecido, enche o colchão de ar, faz-se ao rio e chega ao seu destino. O nevoeiro protegeu-o.

Passam-se oito anos e chega a vez de Holger, o irmão mais novo. O plano parecia ao mesmo tempo louco e perfeito. Holger e um amigo estão no topo de um prédio do lado oriental. Ingo ocupa idêntica posição do lado ocidental, à distância de um tiro de flecha à qual é atado um fio de pesca que, por sua vez, está ligado a um cabo de aço. Estendido o cabo entre os dois prédios com a ajuda de Ingo, Holger e o amigo executam um “slide” para a vitória e aterram na RFA.
 
O ano seguinte foi passado a preparar a prodigiosa fuga do último irmão, Egbert. Em segredo, porque era proibido, Ingo aprendeu a pilotar aviões ultraligeiros na Bélgica e ensinou o irmão Holger. Vendido o bar que possuíam em Berlim-Ocidental, compraram dois aparelhos, pintaram-nos com as cores soviéticas, trocaram os motores por outros mais potentes e adquiriram uniformes militares de Leste para completar o disfarce. A primeira tentativa, a 11 de maio de 1985, fracassou. Duas semanas mais tarde, às 4h07 da madrugada de 26 de maio, dois aparelhos aterravam junto ao Reichstag, em Berlim Ocidental. Deles saíram os três irmãos Bethke, incólumes.

Os céus de Berlim não salvaram apenas os irmãos Bethke. Anos antes, em 1979, Hans Strelczyk, um mecânico, e Günter Wetzel, pedreiro, construíram um tosco balão de ar quente e ganharam dessa forma o passaporte para a liberdade, acompanhados pelas esposas e por quatro filhos.

Ironicamente, foi também num balão de fabrico caseiro que morreu a última pessoa que tentou chegar a Berlim Ocidental sem autorização da RDA. Em 8 de março de 1989, a curtos oito meses do desmantelamento do Muro, Winfried Freudenberg, de 32 anos, despenhou-se para a morte quando o seu engenho artesanal deixou de funcionar, por razões desconhecidas.
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