Qual o papel de Portugal no mundo? É uma das questões a que Nuno Severiano Teixeira procura responder em “The Portuguese At War: From the Nineteenth Century to the Present Day”. Escrito em inglês, de forma a chegar a novos leitores, o livro foi apresentado esta semana no Instituto Camões, em Lisboa, pelo presidente daquele mesmo instituto, Luís Faro Ramos, e pelo atual ministro da Defesa, João Cravinho.
Nuno Severiano Teixeira, que também já foi ministro da Defesa e da Administração Interna, conhece profundamente, ao nível prático e académico, as principais características de Portugal ao longo dos conflitos nos últimos séculos, desde as invasões francesas à I Guerra Mundial, passando pela Guerra Colonial até às atuais missões internacionais de paz.
Nesta entrevista ao programa Visão Global, da Antena 1, argumenta que as principais mudanças ao nível da Defesa em Portugal ocorrem sobretudo após o 25 de Abril, com o financiamento e a modernização das Forças Armadas, mas também com o alinhamento constante dos militares ao poder político.
Mas, numa semana abalada por eventos marcantes à escala global, esta foi também uma conversa sobre o momento político atual nos Estados Unidos e a grande crise do novo coronavírus.
O professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e diretor do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), considera que a liderança internacional norte-americana está numa posição mais fraca desde que Donald Trump tomou posse. Ao nível interno, o Presidente norte-americano saiu vitorioso, em termos políticos, do processo de impeachment, considera.
Quanto ao novo coronavírus com epicentro em Wuhan, na China, Nuno Severiano Teixeira sublinha que as consequências para Pequim poderão ser mais pesadas do que se especulava inicialmente, não só do ponto de vista económico mas também político e simbólico.
Começo por lhe perguntar sobre este livro, “The Portuguese At War: From the Nineteenth Century to the Present Day", que traça a história dos portugueses e dos conflitos em que Portugal esteve envolvido desde o século XIX, há alguma característica que se mantenha em todos eles? Há algo que seja constante em todos os conflitos na história militar portuguesa ao longo destes séculos?
Sim, há algumas constantes ao longo dos séculos, que têm que ver em primeiro lugar com o contexto internacional em que Portugal se insere, entre a Europa e o Atlântico. Essa é uma constante. Há outras constantes de natureza política interna que têm que ver com o tipo de serviço militar, com a forma como é feita a aquisição do equipamento militar e das relações dos militares com o poder político. É uma constante que se desenrola ao longo do século XIX e XX, ainda que com muitas diferenças, e que muda radicalmente com a democracia.
Há um modelo democrático das Forças Armadas que emerge a seguir ao 25 de Abril, em particular a seguir à revisão da Constituição de 1982, em que ocorrem grandes mudanças naquelas que são as linhas constantes. Há uma mudança, por exemplo, no que diz respeito ao recrutamento militar, com a introdução do serviço militar profissional em detrimento da conscrição ou do serviço militar obrigatório. Essa é uma mudança estrutural que a democracia introduz.
A segunda tem a ver com o planeamento militar e o financiamento e modernização das Forças Armadas. Antes, muitas vezes, a aquisição do equipamento estava muito dependente da situação financeira, e era feita em cima dos conflitos, o que significava que muitas vezes, como o ciclo de planeamento é muito longo, quando os conflitos se davam, as Forças Armadas não tinham o equipamento necessário.
A democracia introduz uma fórmula planeada e financeiramente sustentada que são as Leis de Programação Militar. Isto quer dizer que funciona tudo bem? Não, também há constrangimentos, as finanças públicas também pesam sobre isso, também há cativações.
Mas independentemente disso, há uma linha de longa duração, de longo prazo, para o planeamento da modernização dos equipamentos e dos armamentos e de um financiamento que é sustentado.
Depois há uma terceira mudança que é muito importante, que é a subordinação dos militares ao poder político legítimo. Se olharmos para o século XIX e o século XX, em grande medida, a mudança política em Portugal é feita por golpes militares. No século XIX há sucessivos golpes militares. A República em 1910 é implantada por um golpe militar. O golpe de 28 de Maio que implanta a ditadura militar e depois o Estado Novo é um golpe. E claro, o 25 de Abril é um golpe.
Este ciclo interrompe-se com o 25 de Abril. Há uma mudança fundamental na cultura das Forças Armadas, que passam a estar subordinadas ao poder político legítimo e isso é a grande mudança das relações civis militares.
E depois há uma mudança final, que eu julgo que é importante sublinhar, que tem que ver com o contexto internacional, com o tipo de ameaças de hoje e com o tipo de missões militares. Até aqui as missões militares eram missões de guerra: a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Colonial. Hoje as missões são essencialmente missões de paz e missões internacionais.
Se tivesse de destacar um evento ou vários dos últimos séculos, ao nível da história militar, o que destacaria?
Diria que os dois conflitos mais importantes, com maior impacto não só nas Forças Armadas, mas também no país, é a intervenção de Portugal na Primeira Guerra Mundial, em particular no palco europeu, na frente de Flandres, e em segundo lugar as guerras de descolonização, nos três teatros de Angola, Guiné e Moçambique.
Esses são os conflitos em que Portugal entra que têm não só uma dimensão militar muito relevante para as Forças Armadas, mas que têm um impacto enorme sobre o destino político do país. No caso da Primeira Guerra, a crise da República e o advento do regime autoritário. No caso da Guerra Colonial, a crise do regime autoritário e o advento da democracia.
Entrevista emitida no programa Visão Global a 9 de fevereiro de 2020
Foto: Leah Millis - Reuters
Aproveitamos para falar também de alguns dos principais assuntos da atualidade. Sobretudo nos Estados Unidos, esta foi uma semana agitada a nível político. Nestas eleições primárias, o que é que se pode esperar e quando é que poderemos ficar com uma ideia mais clara de quem será o vencedor?
Ainda é muito cedo para termos um veredicto definitivo. Ainda haverá mais algumas primárias durante o mês de fevereiro, mas o mais importante vai passar-se na Super Terça-Feira (Super Tuesday), a 3 de março. Aí há um grande número de Estados e vamos ter já uma noção mais aproximada daquilo que será o resultado final.
Em todo o caso, do meu ponto de vista, não há surpresa do lado dos republicanos. O Presidente Trump já ganhou esmagadoramente com cerca de 97 por cento e não é previsível que o panorama se altere substancialmente. O candidato republicano está encontrado.
A grande incógnita, as grandes surpresas, podem aparecer do lado dos candidatos democratas, onde há ainda uma grande incerteza e onde, esta última primária no Iowa, foi uma surpresa, com um candidato que não estava entre os três favoritos. Vamos ver, ainda é cedo para dizer. Vamos provavelmente ter de esperar pela Super Terça-Feira para ter uma noção mais aproximada.
Super Terça-feira que este ano assume um papel ainda mais relevante, uma vez que a Califórnia também passa a votar agora em março, e antes votava em junho.
Exatamente. E a Califórnia é um Estado importante, com grande peso no Colégio Eleitoral e portanto, mais uma razão para esperarmos pela Super Terça-Feira.
Passando para o impeachment. Quem ficou a ganhar neste processo, foram os democratas ou os republicanos?
Ainda é muito difícil de saber. O resultado era o esperado. Era absolutamente claro que a conduta do Presidente não era aceitável do ponto de vista do funcionamento das regras da democracia.
Ficou claramente provado que o Presidente não agiu de acordo com essas mesmas regras, aproveitando um poder de Estado, pressionando uma potência estrangeira para, em função disso, ter ganhos de política interna em termos eleitorais. Julgo que isso ficou claro para a opinião pública norte-americana.
Mas, no clima de polarização em que se encontra a situação política interna norte-americana, entre republicanos e democratas, era óbvio que a maioria republicana no Senado não deixaria passar [o impeachment]. O resultado foi aquele que obviamente era o resultado esperado.
O que é que pode ou não ter influência do ponto de vista da opinião pública, mas em particular, do ponto de vista do Colégio Eleitoral? É saber se, apesar de o impeachment ter sido derrotado no Senado, e o Presidente ter sido absolvido, se o efeito que tem do ponto de vista da opinião pública convenceu ou não os americanos, e em particular aqueles que compõem o Colégio Eleitoral, de que o Presidente não agiu de acordo com as regras que são aceitáveis pela democracia americana. Vamos ver, é uma incógnita.
É provável, embora que, para a eleição, essas sondagens de opinião ao nível nacional contam pouco. O sistema eleitoral é um sistema complexo, que se baseia no Colégio Eleitoral, que é eleito em cada um dos Estados. É aí que as coisas se jogam. Naturalmente que a opinião pública tem alguma influência, mas não é decisiva.
E em relação aos democratas, pode ter havido aqui também uma jogada de tentar vencer no plano moral com o impeachment, uma vez que não era possível fazer passar a destituição?
Venceram do ponto de vista moral e do ponto de vista institucional, mas foram derrotados do ponto de vista político. Do ponto de vista moral porque, claramente, a conduta do Presidente não está de acordo com os princípios e as normas, não só formais, mas também informais da cultura política americana. Do lado institucional, porque seria muito difícil ao Congresso, e neste caso à Câmara dos Representantes e ao Senado, institucionalmente não tomar uma posição quando a conduta do Presidente não está de acordo com as regras. Ainda que, apesar desse dever institucional, poderem correr o risco de uma derrota política, que foi, no fundo, aquilo que aconteceu.
Esta semana ficou também marcada pelo discurso do Estado da União, o último do mandato. Quais foram os principais momentos da Adminstração Trump, até agora?
Do ponto de vista interno, aquilo que favorece o Presidente Trump é, naturalmente, a boa performance da economia americana. Do ponto de vista da política externa, acho que há um conjunto de decisões que têm efeitos positivos sobre a política interna, e em particular no eleitorado que apoia o Presidente.
No fundo, todas as decisões de política externa que o Presidente toma não têm tanto um objetivo de política externa, mas têm um objetivo de política interna e de responder a algumas promessas que fez ao eleitorado que o apoia.
Naturalmente, acho que o que está a acontecer do ponto de vista externo é um retrocesso muito visível, um retraimento muito visível, um regresso muito visível dos Estados Unidos ao seu interior, e não à liderança mundial.
No final do mandato, a liderança americana em termos internacionais estará numa posição pior do que estava no princípio do mandato. Vemos a regressão da influência americana no Médio Oriente, isso é muito claro. Vemos a regressão da capacidade e da influência americana no Pacífico, as relações tensas no plano transatlântico.
Portanto, creio que, do ponto de vista internacional, o saldo é negativo. Do ponto de vista interno, a performance da economia ajuda sem dúvida nenhuma o Presidente Donald Trump, e nós sabemos que os dois fatores mais importantes que contam nestes processos eleitorais são o nível de vida – portanto, a performance económica – e não haver baixas, não haver mortos e feridos, em conflitos ou guerras do ponto de vista internacional. Como o Presidente não intervém do ponto de vista internacional, e como a economia está a evoluir favoravelmente, ele tem alguns fatores que o favorecem.
Incluindo, no plano externo mas também a nível económico, as tréguas alcançadas com a China após a guerra comercial.
Sim, também. Mas isso é um processo que ainda está numa fase inicial. A competição entre os Estados Unidos e a China pela hegemonia mundial é um processo que tem agora uma trégua, com esse acordo, mas é um processo, para usar uma expressão popular portuguesa, em que a procissão vai no adro.
O que está em causa não é apenas uma guerra comercial. A guerra comercial parece ter agora uma trégua, mas continuará. Há já um processo de rivalidade tecnológica. Aquilo que se passa com o 5G e as posições americanas sobre a Huawei, são claramente o sintoma da rivalidade tecnológica, que é uma fase seguinte.
Há já alguns indícios, dada a política chinesa da “Nova Rota da Seda”, de penetração territorial e criação de zona de influência geopolítica em toda uma área que vai desde a Ásia Central ao Médio Oriente, chegando à Europa. Isso naturalmente terá uma tradução.
Não há ainda - porque a posição chinesa não é clara ainda a esse nível - uma alternativa ao modelo da democracia. Mas claramente, o modelo chinês de autocracia digital está lá.
Há, sem dúvida nenhuma, uma trégua comercial que, neste momento, torna as coisas menos tensas. Mas o processo não está terminado. Pelo contrário, é um processo que vai continuar nos próximos anos.
Foto: Soe Zeya Tun - Reuters
Um outro tema que tem estado na ordem do dia é o coronavírus. O que é que este novo vírus, que está a preocupar o mundo, pode provocar à China? Em termos diplomáticos, económicos, e também na relação da China com o resto do mundo, nomeadamente com os Estados Unidos?
Este surto epidémico ainda não é uma pandemia, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Como todos estes surtos, são questões em primeiro lugar de natureza de saúde pública, mas pela sua dimensão, são questões de segurança internacional.
Como é natural, os vírus não respeitam as fronteiras nem precisam de passaporte, eles passam. Rapidamente, uma questão que pode ser localizada no espaço, transforma-se numa questão transnacional. Portanto, a resposta a estes surtos epidémicos depende muito da política pública que o Estado em que ela se declara tem.
O primeiro aspeto a ter em conta é a transparência, ou seja, a capacidade de abrir imediatamente a informação – não só a informação de natureza científica, mas a informação à população do que se está a passar - para não criar nem expectativas, nem medos ou pânicos. Criar uma resposta adequada das populações.
Depois, a transmissão dos conhecimentos científicos aos outros países para que eles possam também reagir e para que a comunidade científica internacional possa responder adequadamente.
Obviamente que, em surtos anteriores, a China não reagiu bem e negou o problema. No caso do SARS, por exemplo, negou o problema. Durante muito tempo não quis partilhar a informação científica. E isso, apesar de tudo, não aconteceu agora. [A China] foi muito mais célere, pressionada pela comunidade científica internacional, pressionada pelos outros países. Mas foi mais transparente, foi mais aberta, transmitiu a informação científica necessária e, desse ponto de vista, a China reagiu melhor.
Consequências sobre a China? Elas serão eventualmente mais pesadas do que aquilo que inicialmente se pensava. Do ponto de vista económico isso já está a acontecer. Do ponto de vista político e reputacional, é inevitável que isso também venha a acontecer, e que tenha consequências nas relações diplomáticas com os outros países. Vamos ver como é que a situação evolui. Esperamos que o vírus seja dominado e que, rapidamente, se consiga controlar.