Dez anos depois de ficarem sob intervenção do Vaticano, os Legionários de Cristo regressam à ribalta com novos escândalos de abusos sexuais, que podem desacreditar os esforços de reforma da congregação, liderados pelo cardeal Velasio de Paolis, falecido em 2017, o qual sempre recusou iniciar uma "caça às bruxas".
As revelações dos últimos meses mostram que o legado sinistro de crimes e de abusos deixado pelo fundador da congregação, Marcial Maciel, e que quase a levou ao fundo há dez anos, deixou raízes profundas e abrangentes entre os Legionários, logo desde a fundação, em 1941.
Em dezembro passado, um relatório da Legião identificou 33 sacerdotes e 71 seminaristas que abusaram sexualmente de menores de idade ao longo de oito décadas. Um terço destes, incluindo Martinez, foram eles próprios vítimas de Maciel e da cumplicidade dos responsáveis da congregação, numa série de "abusos em cadeia", como se lhe referiu o documento. Um mês antes, em novembro, a Legião havia já emitido um texto sobre os abusos cometidos por Martínez, iniciados em 1969 na Cidade do México e que se prolongaram pelo menos até aos anos 90.
A primeira denúncia dos casos surgiu em maio, num grupo de Facebook, Legioleaks, que agrega vítimas dos crimes de Maciel e da congregação.
Salazar revelou então ali, não só e com pormenores, a forma assumida pelos abusos, como também os esforços da hierarquia da Legião de Cristo para esconder as agressões.
De acordo com o seu testemunho, quando tinha oito anos, via a administradora da escola ir às salas de aula chamar meninas para irem à capela confessar-se ao padre Martinez. Era aí que decorriam os abusos.
"Enquanto umas liam a Bíblia, ele violava as outras à frente delas, miúdas pequeninas de seis, oito ou nove anos", conta Salazar, agora com 36 anos. "Depois, nada era o mesmo, nada mais voltava a ser como antes", recordou entre lágrimas, na Cidade do México, onde agora vive.
Silêncio e encobrimento
O relato da agora apresentadora é particularmente grave, já que os pais foram falar com o bispo, ele mesmo um Legionário, quando souberam do que sucedia. Foi a própria Ana Lucía quem lhes contou, em finais de 1992.
"Estava a brincar aos pulos na cama dos meus pais e comecei a falar". A mãe ficou atónita ao ouvi-la dizer que "ele me levantava o vestido, afagava a minha roupa interior, me punha as mãos no corpo, me sentava ao colo enquanto punha a mão entre as minhas pernas e se masturbava comigo em cima", lembra Salazar.
Apesar das queixas, Martinez só foi afastado seis meses depois, quando o escândalo ameaçou vir a público, depois de uma professora de inglês e de a mãe de outra das alunas denunciaram às autoridades da congregação e ao superior do padre Fernando o que as meninas lhes tinham contado.
A professora, Beatriz Sánchez, reparou que algo se passava quando viu uma das meninas mais velhas a entrar e a sair da casa de banho. Lá dentro, um pequeno grupo de alunas chorava e consolava-se. "Quando me aproximei, ela disse-me, miss, o padre está a faze-lo cada vez mais às mais pequeninas e não queremos que isso lhes aconteça, por favor, ajude-nos".
Não disseram mais nada e Sanchez, agora com 63 anos, instou-as a escrever-lhe uma carta e a outra professora. Levou contudo o caso perante o superior de Fernando Martínez. Foi de imediato despedida.
Um segredo
A menina acabou por contar à mãe, Irma Hassey, o que se passava, sem dar muitos detalhes. Esta não quis fazer muitas perguntas mas percebeu o suficiente para pedir uma reunião urgente com o superior dos Legionários, que a visitou em casa logo no dia seguinte, pedindo perdão, implorando silêncio e prometendo levar Martinez de Cancún no dia seguinte.
O responsável perguntou-lhe ainda por uma carta, algo que Hassey desconhecia até então. "Percebi logo que estava interessado em saber se existiam documentos escritos como provas", sublinha agora.
O alcance da hipocrisia só o percebeu, contudo, mais de 25 anos depois, quando a gravidade dos abusos e da quantidade de meninas envolvidas ficou patente nos recentes testemunhos.
O legado de De Paolis
Já Martinez foi transferido para um seminário em Espanha sem que nada mais lhe sucedesse. Nem sequer depois da congregação passar para a alçada do Vaticano e de De Paolis. O cardeal soube, entre 2011 e 2013, da denúncia dos Salazar, quando lhe foi pedido para tomar medidas, já que nunca se tinha realizado uma investigação adequada.
De Paolis preferiu não fazer nada, já que, aparentemente, não havia outros casos. O prelado negou-se sempre a exigir responsabilidades aos superiores da congregação, cúmplices dos crimes de Maciel.
Um ex-sacerdote legionário, Christian Borgogno, co-fundador do Legioleaks, diz que "de Paolis disse explicitamente que não haveria uma caixa às bruxas e a consequência foi que os abusos e o seu encobrimento permanceram sem castigo".
A decisão de De Paolis de manter nos seus cargos os superiores da Legião, muitos dos quais próximos de Maciel, "tornou impossível" a reforma pretendida pelo Vaticano, acrescenta Borgogno. "A única forma era favorecer os líderes carismáticos e eles viram-se mesmo reprimidos", acusa.
Bispos denunciam
Em contracorrente, a conferência episcopal mexicana quebrou o silêncio sobre a Legião, para denunciar os abusos agora revelados e o fracasso da congregação em "providenciar um ato de justiça e de reparação para as vítimas", mesmo após reconhecer os crimes, prometer mais transparência e aplicar novas políticas de proteção de menores.
Em Monterrey, um bastião dos Legionários, o arcebispo denunciou "o silêncio criminoso" do grupo e o tratamento das vítimas, liderando apelos dos bispos para o fim do período de prescrição nos casos de abusos sexual de menores.
Mesmo o atual núncio apostólico para o México, Franco Coppola, rompeu a habitual discrição diplomática da Santa Sé, para criticar publicamente a forma como a Legião lidou com os casos, apelando ao Vaticano para investigar a "rede de encobrimento" atrás dela.
Coppola ecoou igualmente os pedidos das vítimas e da arquidiocese para os superiores da Legião implicados no encobrimento se afastarem das suas funções de responsabilidade, como um "grande gesto de humildade", que até agora não foi aceite.
Já o atual superior da Legião, o reverendo Eduardo Robles Gil, pediu perdão a Salazar pelo tratamento inicial dado ao seu caso e pelas posteriores "deficiências". "Poderia tê-lo remediado em 2014, mas segui as decisões tomadas quanto aos casos de abusos nas décadas anteriores", diz numa carta enviada em novembro.
Robles Gil reencaminhou também à apresentadora uma carta de Martínez, na qual este lhe implorou perdão pelos danos causados, descrevendo o seu comportamento como "faltas" e carícias "que Deus não abençoa" como fruto de uma "sexualidade descontrolada".
Ana Lucía reagiu com indignação ao tom das cartas, assim como ao que considera uma decisão da Congregação para a Doutrina da Fé aquém do merecido por Martínez. "Foi humilhante, asqueroso", classificou.
"O Papa decidiu que o senhor continua nas fileiras da Igreja depois de violar crianças", escreveu na rede Twitter. "Eis a tolerância zero!".
"O que eu quero é que o Papa seja radical. Só há uma posição, a favor das crianças violadas", afirmou, sublinhando que não se pode apoiar uma congregação que resguarda "meliantes, delinquentes, violadores, cúmplices e vitimadores".