NATO, Guerra Fria, Turquia, Rússia e a Europa. O essencial da entrevista a Jens Stoltenberg

por Christopher Marques - RTP
Em entrevista à RTP, Jens Stoltenberg apresenta a estratégia “dual” da organização para responder a Moscovo. Pedro Nunes - Reuters

O secretário-geral da NATO garante que a organização está pronta para defender qualquer aliado. Em entrevista à RTP, Jens Stoltenberg apresenta a estratégia “dual” da organização para responder a Moscovo: a busca pelo diálogo mas mostrando firmeza contra a ingerência russa, nomeadamente na Crimeia. O responsável garante ainda que os EUA estão empenhados na NATO e elogiam o aumento do investimento em defesa feito por Portugal.

O secretário-geral da NATO considera que o principal desafio da organização é o facto de se enfrentarem atualmente “muitos desafios complexos ao mesmo tempo”. Na conversa com o jornalista Paulo Dentinho, Jens Stoltenberg faz nomeadamente referência aos conflitos que assolam o norte de África, o Médio Oriente, para além da luta contra o autoproclamado Estado Islâmico.

A estes soma-se o papel “mais assertivo a leste” que a Rússia vai assumindo, as ameaças cibernéticas e o desenvolvimento do poderio nuclear da Coreia do Norte. “Há muitos desafios ao mesmo tempo e daí que a NATO esteja a adaptar-se, a mudar e implementar a maior adaptação na NATO desde o fim da Guerra Fria”, explica o responsável máximo da organização.

Jens Stoltenberg lidera desde 2014 a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN-NATO), a aliança militar que nasceu depois da Segunda Guerra Mundial, num período em que o mundo se dividia entre pró-russos e pró-americanos.

O mundo mudou. O muro de Berlim caiu e o ocidente aproximou-se da Rússia, já depois da queda da União Soviética. A aproximação inverteu-se nos últimos anos, com as relações entre o bloco ocidental e a Rússia a deteriorarem-se.

Na conversa com Paulo Dentinho, Jens Stoltenberg rejeita que a NATO esteja a enfatizar a tensão com a Rússia na Europa de leste, recordando o papel da aliança atlântica no combate ao terrorismo, nomeadamente a “maior operação militar de sempre” da NATO que decorre no Afeganistão.

“Trabalhamos para fazer face aos desafios vindos de leste, mas também de desafios vindos de sul. Além disso, por exemplo, o que fazemos para combater as ameaças cibernéticas não está relacionado com o leste, norte, sul ou ocidente. Está relacionado com o domínio cibernético, algo relevante para todos nós, onde quer que estejamos”, sublinha o líder norueguês.
“Não voltámos à guerra fria”

A relação do ocidente com a Rússia tem piorado ao longo dos últimos anos. O ocidente tem acusado a Rússia de realizar ciberataques e campanhas de propaganda nas redes sociais, interferindo mesmo em atos eleitorais. A este conflito virtual com consequências reais soma-se o papel russo no conflito militar ucraniano.

Convidado a adjetivar este novo conflito entre o ocidente e Moscovo, Stoltenberg aponta apenas que a Rússia está “mais assertiva” e a usar “muitas ferramentas diferentes”.

“Usaram forças armadas contra a vizinha Ucrânia mas também na Geórgia. E há muitos relatórios sobre as tentativas da Rússia de interferir em processos políticos domésticos, com propaganda, com desinformação e também com ciberferramentas”, confirma o secretário-geral da NATO.

Apesar da tensão com Moscovo, Stoltenberg garante que não se regressou ao período que antecedeu a queda do Muro de Berlim. “Não voltámos à Guerra Fria, mas também não estamos na parceria estratégica que tentámos estabelecer após o final da Guerra Fria”, assume.

O líder norueguês considera que esta “parceria estratégica” falhou porque Moscovo “decidiu tentar restabelecer esferas de influência e, de certa forma controlar os seus vizinhos como vimos na Geórgia, Moldávia e na Ucrânia”. Uma luta que a NATO promete combater.

“Nunca aceitaremos que uma grande potência como a Rússia tenha o direito de controlar vizinhos ou estabelecer qualquer tipo de esfera de influências”, garante, prometendo uma abordagem firme mas que tente reduzir a tensão.
A estratégia com a Rússia
Uma das pedras angulares deste clima de tensão com Moscovo é o conflito ucraniano e a anexação da Crimeia à Federação Russa em 2014. Apesar do conflito, Stoltenberg acredita que é possível “combinar a defesa, dissuasão e diálogo” no que considera ser uma abordagem “dual” com Moscovo.

“A Rússia é nossa vizinha. A Rússia está cá para ficar. Não queremos uma nova Guerra Fria, não queremos uma nova corrida ao armamento. Temos de ser firmes quando a Rússia emprega a força contra um vizinho, como fez com a Ucrânia. A Rússia tem de perceber que não pode fazer nada semelhante a qualquer aliado da NATO, esteja onde estiver. Mas também queremos ter um diálogo significativo com a Rússia”, explica.

É com este diálogo em vista que Stoltenberg recorda as reuniões do Conselho NATO/Rússia que tiveram já lugar. Apesar de ainda terem ocorrido poucos encontros, o dirigente da aliança atlântica enfatiza a existência de “um diálogo com a Rússia” onde se falam precisamente de questões como a Ucrânia.

Para o responsável, é necessário enviar uma “mensagem clara à Rússia”: “a forma como se comportou na Ucrânia, com a violação do direito internacional e da integridade e soberania de uma nação a quem já tinham garantido as fronteiras antes, tem de ter consequências”.

Com o diagnóstico feito, Stoltenberg apresenta o caminho mais rápido para a melhoria das relações entre o ocidente e a regime de Vladimir Putin. “A melhor maneira de melhorar relações entre a NATO e a Rússia é a Rússia deixar de violar o direito internacional. Nós estamos dispostos a trabalhar com eles mas têm de respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os membros, incluindo o Reino Unido”, afirma.
Solução para a Ucrânia

O secretário-geral da NATO considera que a solução para o conflito ucraniano não é militar mas política. Na entrevista à RTP, o responsável recorda que “a solução política está nos acordos de Minsk”, numa referência ao protocolo assinado em 2014 entre Kiev, Moscovo, Donetsk e Lugansk sob o amparo da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.

“O que temos visto é que os acordos de Minsk não são cumpridos. Os acordos de Minsk exigem que todas as tropas estrangeiras se retirem da Ucrânia e de Donbass, do leste da Ucrânia. Não é o que acontece. A Rússia continua lá, a apoiar os separatistas, e isso é uma violação clara dos acordos”, afirma.

Confrontado com a acusação russa de que há nações ocidentais a vender armamento à Ucrânia, Soltenberg recorda que Kiev é um “governo soberano numa nação soberana” e “tem o direito de comprar armas para se defender”.

“A NATO não fornece armas porque não as temos. Mas alguns dos aliados da NATO vendem e fornecem à Ucrânia. A grande diferença é que a Ucrânia tem um governo legítimo em Kiev. A integridade territorial e a soberania da Ucrânia são violadas na Crimeia e no leste da Ucrânia por forças apoiadas pela Rússia e pela presença das capacidades militares russas", insiste.

Questionado sobre um eventual receio de Moscovo perante a presença de tropas atlânticas no leste da Europa, Stoltenberg realça que a mobilização só surgiu depois do conflito na Ucrânia. “É uma consequência direta das ações agressivas da Rússia contra a Ucrânia”, justifica.

O secretário-geral da NATO rejeita ainda a ideia de que a Rússia tenha receio por estar rodeada por nações da NATO, depois da adesão de países como a Polónia, a Letónia e a Lituânia a partir de 1999.

“São nações soberanas e independentes que decidiram, através de processos democráticos, que queriam aderir à NATO. Não é uma provocação ou uma ameaça para a Rússia. É o resultado de decisões democráticas por nações soberanas”, afirma.
“Defender qualquer aliado”

Questionado sobre se a NATO seria capaz de seguir uma estratégia semelhante à adotada pela Rússia na Crimeia nos países bálticos, Jens Stoltenberg responde positivamente. “A NATO está preparada para defender qualquer aliado contra qualquer ameaça. Esta é a mensagem principal da NATO”, recorda.

O ex-primeiro-ministro norueguês lembra que a missão da NATO é “evitar um conflito” e não provoca-lo, mantendo sempre a solidariedade entre Estados-membros: “Um por todos, todos por um”.

“Esta ideia de defesa coletiva manteve a paz na Europa durante quase 70 anos, um dos mais longos períodos de paz durante séculos na Europa. Iremos continuar a fazê-lo, evitando e prevenindo conflitos e não provocando-os”, assegura.
Investimento em defesa

O secretário-geral da NATO considera que os EUA têm mostrado que “estão empenhados nos laços transatlânticos”, assinalando que Washington está mesmo a aumentar a presença militar no continente europeu. “Não são só palavras, são factos”, afirma Stoltenberg.

O líder da aliança atlântica espera agora que os restantes Estados-membros “cumpram o que decidiram”, numa referência ao aumento da despesa com defesa tendo por objetivo os dois por cento do Produto Interno Bruto, uma meta que Portugal – e a maioria dos países - não cumpre atualmente.

“Vejo com bons olhos o facto de Portugal ter acabado com os cortes e começado a aumentar. Depois de anos de cortes nas despesas de segurança, vimos um aumento nos últimos dois anos”, afirma.

Stoltenberg vê neste aumento uma “expressão do compromisso de Portugal para com a NATO”, mas pede “mais” investimento em defesa. O líder defende que o investimento em defesa deve ser flexível e admite que ele próprio, quando exercia cargos políticos na Noruega, defendeu cortes no passado.

“Tal como reduzimos os gastos com defesa quando as tensões diminuíram, também temos de as aumentar quando as tensões se agravam”, justifica.

O secretário-geral da aliança atlântica admite ainda que é preciso melhorar a forma como se deslocam meios militares entre Estados-membros na Europa. “Vivemos num ambiente de segurança diferente a que temos de fazer frente”, justifica, sem comentar a possível criação de um “espaço Schengen militar”.
Turquia tem “direito a defender-se”
Questionado sobre a situação política na Turquia e a sua adequação aos valores da NATO, Stoltenberg recorda a localização estratégica do país e o seu papel “crucial” na luta contra o autoproclamado Estado Islâmico. “A Turquia sofreu muitos ataques terroristas, mais do que qualquer outro aliado da NATO, e uma tentativa de golpe sangrenta”, afirma.

Ancara tem comprado armamento a Moscovo e tem combatido os curdos, que são apoiados por Washington, Londres e Paris. Stoltenberg insiste que a Turquia tem o direito a defender-se mas assinala que deve fazê-lo de “forma proporcional”.

O responsável admite ainda que “a indústria de defesa europeia é demasiado fragmentada”, com muitos modelos diferentes do mesmo sistema. Por exemplo, há cerca de 20 tipos diferentes de caças. O secretário-geral da NATO assinala que este é um tema sensível, porque está relacionado com empregos em diferentes países.

Jens Stoltenberg acredita que o fortalecimento da cooperação em matéria de defesa na União Europeia irá contribuir para “resolver a fragmentação da indústria europeia de defesa, tornando-a mais competitiva e reduzindo os vários modelos de cada tipo de arma”.

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