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“Não consigo sentir o meu coração”: o testemunho das crianças separadas dos pais sob a política de Trump

por RTP
Jorge Duenes - Reuters

Umas acreditam que morreram. Outras que as abandonaram. Nenhuma destas crianças sabe ao certo o que aconteceu aos pais. Um relatório do Departamento de Saúde e Serviços Humanos revela sintomas pós-traumáticos na sequência da política de separação de crianças e pais na fronteira com o México. Esta é a primeira análise de fundo das consequências da política de imigração da administração Trump para a saúde mental das crianças.

“Não consigo sentir o meu coração”. É o apelo arrepiante de algumas das crianças que foram separadas dos pais durante a rígida política de imigração do governo Trump no ano passado, denominada “Tolerância Zero”.

Na fronteira do México e dos EUA as autoridades federais separam as crianças dos seus pais, familiares ou outros adultos que as acompanhem na travessia. Os adultos são enviados para prisões federais, e as crianças e bebés, por sua vez, são colocados sob a supervisão do Departamento de Saúde e Serviços humanos.

Esta separação está longe de ser inofensiva, considera um relatório do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, divulgado esta quarta-feira. As crianças, muitas delas vítimas de situações de trauma nos países de origem ou resultantes da penosa viagem rumo aos EUA, mostraram mais medo, sentimentos de abandono e sintomas de stress pós-traumático (PSPT) do que as crianças que não foram separadas das famílias.

Além destas consequências psicológicas, algumas crianças chegam mesmo a sofrer de sintomas físicos devido ao trauma mental. “Ouvimos muitos 'dói-me o peito', apesar de tudo estar bem fisicamente”, revelou um dos médicos entrevistado pelos investigadores. As crianças descrevem sintomas psicológicos como “cada batida do coração dói” ou “não consigo sentir o meu coração”.

Estes sintomas não surgem apenas na infância, estendendo-se, muitas vezes, até à idade adulta. Enquanto crianças, sofrem de terrores noturnos, ansiedade de separação e problemas de concentração. Quando se tornam adultos, enfrentam maiores riscos de desafios mentais e físicos, da depressão ao cancro.

O processo de reagrupamento, considerado caótico, apenas acrescentou motivos de preocupação. Algumas crianças choraram, inconsoláveis. Algumas estavam furiosas e confusas. “Outras crianças revelaram sentimentos de medo e de culpa e mostraram-se preocupadas com o bem-estar dos pais”, revela o relatório.
"Teremos este peso na consciência para o resto da nossa vida"
O relatório do Departamento de Saúde e Serviços Humanos é o primeiro estudo de fundo sobre as consequências para a saúde mental das crianças da política de separação das famílias, preconizada pela Administração Trump. Baseou-se em entrevistas a cerca de uma centena de médicos de saúde mental que mantinham interações regulares com as crianças, o relatório abrange um período do ano passado em que as instalações estavam sobrelotadas.
Estima-se que mais de 2.500 crianças tenham sido separadas dos pais no âmbito da política de “Tolerância Zero”.

Os investigadores visitaram 45 instalações em 10 Estados durante agosto e setembro de 2018, entrevistando médicos de saúde mental. Durante as entrevistas, havia quase 9.000 crianças em abrigos. Quase 85% tinham 13 a 17 anos de idade, 13% tinham 6 a 12 anos e 2% eram crianças até aos 5 anos.

Através deste relatório concluiu-se que quanto mais tempo as crianças estavam sob custódia, mais a sua saúde mental se deteriorava. O relatório recomenda minimizar esse tempo, criar melhores opções de assistência à saúde mental bem como contratar funcionários mais bem preparados.

No entanto, segundo a secretária assistente do departamento, Lynn Johnson, o tempo médio de permanência é muito menor agora. Johnson ainda salientou que "os problemas identificados no relatório" são causados por fatores externos, como o aumento das crianças na fronteira, as necessidades únicas de saúde mental das crianças e a escassez de médicos bilíngues qualificados, especialmente nas áreas rurais.

A secretária ainda adiantou que foram feitos esforços para atrair mais profissionais de saúde, mas que "a cobertura adversa dos media e a perceção pública negativa dificultaram os esforços para crescer". Por fim, concluiu que o relatório não pode ser considerado uma revisão clínica do tratamento.

Beto O'Rourke, candidato democrata à presidência norte-americana, considerou o relatório a confirmação do preço psicológico a pagar pelas crianças migrantes separadas dos pais.

"Isto confirma o que já sabíamos: as crianças separadas das suas famílias, trancadas em gaiolas, forçadas a dormir em pisos de cimento sob cobertores de papel alumínio, viverão com esse trauma para o resto das suas vidas", escreveu no Twitter. "Teremos isso nas nossas consciências para o resto da nossa".
A reunião com os pais foi solução?
Depois de um juiz federal ordenar que as crianças fossem de novo reunidas com os pais, as orientações sobre como fazê-lo continuaram a ser mudadas, gerando ainda mais ansiedade e angústia, segundo o relatório.

Foi o caso de uma criança, transferida de uma instalação da Flórida para o Texas para se reunir com o pai, que após ter feito várias viagens ao centro de detenção, foi devolvida às instalações da Florida, “devastada” e sem nunca chegar a vê-lo.

O psiquiatra infantil Dr. Gilbert Kliman, que entrevistou dezenas de crianças migrantes em abrigos depois de esta política ter entrado em vigor, explicou à Associated Press que embora estas crianças possam seguir com as suas vidas depois de se reunirem com os pais, poderão nunca superar o trauma, estimando mesmo uma “epidemia de problemas físicos, psicossomáticos que serão caros para a sociedade e para os afetados. “Chamo-lhe uma vasta e cruel experiência à custa de crianças”, conclui.
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