"Na carne e no sangue dos habitantes". França ocultou impacto de testes nucleares na Polinésia Francesa
A França ocultou o impacto devastador de testes nucleares que levou a cabo na Polinésia Francesa nas décadas de 1960 e 70, durante os quais dezenas de milhares de pessoas foram expostas a níveis de radiação potencialmente responsáveis por inúmeros casos de cancro nesse território. A conclusão avassaladora resulta de uma investigação de dois anos, segundo a qual mais de 100 mil pessoas poderão vir a pedir indemnizações ao executivo francês.
Há poucos anos, cerca de duas mil páginas de documentos até então classificados foram tornados públicos pelo Ministério da Defesa de França, incluindo mapas e fotografias que os especialistas se apressaram a analisar, passando depois a realizar dezenas de entrevistas em França e na Polinésia Francesa de modo a reconstruirem três testes nucleares importantes e os respetivos desfechos.
“Leucemia, linfoma, cancro da tiroide, do pulmão, da mama, do estômago... na Polinésia, a experiência de testes nucleares franceses está escrita na carne e no sangue dos habitantes. O estrôncio [elemento químico] corroeu os ossos, o césio comeu os músculos e os genitais, o iodo infiltrou-se na tiróide”. Assim começa o relatório, apelidado de Moruroa Files, que resulta da investigação conjunta entre a ONG de jornalismo de investigação Disclose, a Universidade de Princeton e o grupo de investigação sobre justiça ambiental Interprt.
Segundo os Moruroa Files, o impacto dos testes nucleares Aldébaran, Encelade e Centaure, levados a cabo em 1966, 1971 e 1974, respetivamente, foi muito maior do que alguma vez divulgado.
“A história desde desconhecido desastre sanitário começou a 2 de julho de 1966. Nesse dia, o Exército executou a explosão Aldébaran, no primeiro de 193 testes realizados nas ilhas de Moruroa e Fangataufa até 1996”, explicam os especialistas, que falam num “legado envenenado”.
“Estado tentou enterrar a herança tóxica dos testes”
A investigação, que levou dois anos a ser concluída, baseou-se na reavaliação científica das doses de radiação recebidas e calculou que cerca de 110 mil pessoas tenham sido contaminadas – quase o equivalente à população total da Polinésia na altura em que os testes nucleares foram realizados.
“Revelamos também como as autoridades francesas esconderam o verdadeiro impacto dos testes nucleares na saúde do povo polinésio por mais de 50 anos”, denunciam os investigadores.
Geoffrey Livolsi, editor-chefe da Disclose, explicou ao Guardian que “o Estado [francês] tentou enterrar a herança tóxica desde os testes”, sem alguma vez levar a cabo um estudo científico independente que procurasse medir a escala dos danos provocados e sem reconhecer os “milhares de vítimas [da radioatividade] no Pacífico”.
Ainda no mês passado, o Instituto Nacional de Saúde e Investigação Médica de França (Inserm) publicou um relatório sobre as consequências dos testes na saúde, argumentando que “não pôde concluir com certezas” se houve ligação entre esses testes e os vários casos de cancro que têm surgido nas ilhas. A entidade sublinhou, porém, a necessidade de “refinar essas estimativas”.
Mais de 100 mil pessoas receberam elevadas doses de radiação
Dos três testes nucleares reconstruídos nos Moruroa Files, o Centaure, ocorrido em 1974, foi especialmente preocupante. Na altura, previa-se que a nuvem resultante da bomba explodida nesse teste alcançasse uma altura de 9.000 metros. Afinal, terá chegado apenas aos 5.200. Além disso, a nuvem saiu do trajeto esperado, acabando por passar sobre o Tahiti e sobre os 80 mil habitantes de Papeete, a capital da Polinésia Francesa.
O Exército francês não tinha feito qualquer plano para proteger a população atingida pela radiação a 19 de janeiro de 1974, 42 horas depois da explosão. O Centaure foi o último teste no qual uma bomba explodiu diretamente para a atmosfera. Depois, França passou os testes para o subsolo.
De acordo com um relatório confidencial do Ministério da Saúde da Polinésia obtido pelos investigadores, cerca de 11 mil vítimas dos testes nucleares franceses receberam doses de radiação superiores a cinco milisieverts (unidade que mede o impacto da radiação nos humanos). Esse valor é cinco vezes superior ao valor mínimo para que alguém possa pedir indemnização, desde que posteriormente tenha contraído determinado tipo de cancro.
Isto significa que, agora, cerca de 110 mil pessoas – toda a população do Taiti e das ilhas Leeward, também atingidas – podem eventualmente vir a ser indemnizadas, caso fiquem doentes, uma vez que todas elas estiveram expostas a uma dose de radiação superior a um milisievert devido ao teste Centaure.
Oitenta por cento dos pedidos de indemnização rejeitados
Os Moruroa Files explicam também que Paris recebeu, em fevereiro de 2019, um relatório confidencial do Governo polinésio que mencionava “uma concentração de cancros da tiróide” nas ilhas Gambier, diretamente afetadas pelo teste nuclear Aldéraban, em julho de 1966.
Esse mesmo relatório diz haver “muito poucas dúvidas sobre o papel da radiação” no cancros dos habitantes das ilhas, muitos deles crianças na altura das explosões.
Os investigadores dos Moruroa Files citam ainda uma troca de e-mails confidencial de 2017 na qual o Exército francês reconhece que pelo menos dois mil dos seis mil militares destacados na Polinésia Francesa e envolvidos nos testes nucleares contraíram, desde então, pelo menos um tipo de cancro.
Foi apenas em 2010, décadas depois dos testes, que França decidiu criar um grupo de trabalho para avançar com as indemnizações das vítimas civis e militares. Estas teriam apenas de provar que viveram na Polinésia Francesa na altura em questão e que entretanto contraíram um dos 23 tipos de cancro que podem resultar de elevados níveis de radiação.
No entanto, até agora apenas 454 pessoas receberam o dinheiro, das quais só 63 são habitantes das zonas atingidas. Oitenta por cento dos pedidos foram rejeitados pelo grupo de trabalho.
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