Morreu Simone Veil, a primeira mulher a presidir ao Parlamento Europeu

por Andreia Martins - RTP
Um ícone da luta pelos direitos das mulheres Susana Vera - Reuters

Grande figura da política francesa, sobreviveu ao Holocausto e defendeu em 1974 um projeto de lei para a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, enquanto ministra da Saúde. Foi também ela a primeira mulher a presidir, entre 1979 e 1982, ao Parlamento Europeu. Morreu esta sexta-feira aos 89 anos.

Um ícone da luta pelos direitos das mulheres, figura central na construção europeia, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. Simone Veil morreu esta sexta-feira em casa, junto da família. Em agosto de 2016 esteve internada num hospital em Avignon devido a problemas respiratórios. Faria 90 anos no dia 13 de julho.

Veil nasceu Simone Jacob, a 13 de julho de 1927, em Nice, no seio de uma família conceituada, filha do premiado arquiteto André Jacob.

Logo aos 16 anos separou-se do pai e do irmão na sequência da deportação para os campos de concentração nazi, durante a ocupação alemã de França na Segunda Guerra Mundial. Chegou a Auschwitz em abril de 1944, acompanhada pela mãe e pela irmã. De toda a família, só Simone e a irmã conseguiram sobreviver.

Com o número de prisioneira 78651 gravado no braço, Simone Veil resistiu como poucos e continuou a marcar a história da Europa e de França. No entanto, as marcas da brutalidade daqueles anos marcaram-na para sempre. "Acho que vou estar a pensar na Shoah no dia em que morrer", afirmou Simone Veil em 2009, recorda o jornal Le Monde no seu obituário.

Em "Une vie" (Uma Vida), biografia publicada em 2007, admitia: "Da minha parte, há muito tempo que superei a ideia de imortalidade. Já morri um pouco nos campos".

De volta a uma França dilacerada pela guerra, Simone Veil não desistiu da vida. Ingressou no Instituto de Estudos Políticos de Paris, casou e teve três filhos. Levou consigo o maior ensinamento que guardou da mãe: para ser indepedente, uma mulher deve trabalhar.

Chegou a magistrada, aproximou-se do Movimento Republicano Popular, partido próximo do marido, Antoine Veil, mas nunca escondeu a afinidade com a esquerda ou com os eventos revolucionários de maio de 1968, com especial incidência em Paris.

"Ao contrário de muitos, acho que os jovens não estão errados. Vivemos, de facto, numa sociedade muito rígida", considerou na altura.
Legalização do aborto
Em 1969 integrou com grande destaque o gabinete de Justiça durante a presidência de Georges Pompidou, tornando-se na primeira mulher a exercer enquanto secretária-geral do Conselho Superior da Magistratura. Com a morte de Pompidou em 1974, Simone Veil abandona a pasta da Justiça para assumir o cargo de ministra da Saúde no primeiro mandato de Jacques Chirac como primeiro-ministro.

Nesse mesmo ano, o movimento francês para o planeamento familiar, o Planning Familial, embarcou no apoio dos abortos ilegais, uma questão fraturante e incontornável para a sociedade francesa dos anos 70. Na altura, as mulheres com possibilidades viajavam para o Reino Unido, que tinha legalizado o aborto em 1967, para interromper a gravidez.

Ao contrário do anterior ministro da Saúde, Simone Veil vai defender a despenalização do aborto numa declaração histórica a 26 de novembro de 1974, perante o choque das alas mais conservadoras da Assembleia Nacional e o próprio partido associado à direita republicana, a antiga UDF.

"Não podemos continuar a fechar os nossos olhos quanto aos 300 mil abortos que todos os anos mutilam as mulheres deste país, que desrespeitam as nossas leis e que humilham e traumatizam aquelas que a eles recorrem", declarou.

A Assembleia Nacional viria a aprovar nesse mesmo ano a legalização do aborto até à décima semana de gravidez. Ficou eternizada como "a lei Veil" e entrou em vigor de forma temporária logo em 1975, adotada como permanente em 1979.
Por fim, a Europa
Simone Veil foi ministra da Saúde por mais cinco anos, um posto que viria a ocupar novamente entre 1993 e 1995. Antes, a política francesa acolhe a experiência europeia, uma causa que muito lhe apelava pela experiência marcante da guerra. Pela ligação intrínseca à história do Velho Continente durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o jornal francês Le Fígaro recorda esta sexta-feira "a primeira-dama da Europa".

Abandona o Governo para liderar a lista do UDF às eleições do Parlamento Europeu de 1979, um escrutínio que vence e que vai anteceder a sua eleição enquanto presidente do Parlamento Europeu, com o apoio do Presidente Valéry Giscard d'Estaing. Veil torna-se na primeira mulher da história a ocupar este lugar.

Demonstrou desde logo uma preocupação precoce com os problemas da integração e construção europeias, numa altura em que a Comunicade Económica Europeia (CEE) preparava o alargamento a novos países, nomeadamente a Portugal e Espanha.

Não conseguiu ser eleita para um segundo mandato, continuando enquanto membro do Parlamento Europeu até 1993, altura em que volta ao Governo francês, enquanto ministra de Estado, Assuntos Sociais, Cidades e Saúde até 1995.

Continua a atividade na política francesa e em 1998 é nomeada para o Conselho Constitucional, a mais alta autoridade constitucional em França, cargo que vai ocupar até  2007. No início do novo século, retira-se da vida pública só reaparecendo para apoiar o tratado constitucional para a União Europeia durante o referendo em França.
"O melhor da França"
Mais discreta na vida política, Simone Veil presidiu à Fundação para a Memória da Soah, foi membro da conceituada Académie française e recebeu a Grand-croix de la Légion d’honneur, a mais alta condecoração honorária em França. Em Portugal, foi curadora da Fundação Champalimaud.

“Simone Veil era uma pessoa única, um símbolo vivo do significado da paz e da construção da Europa sobre os horrores do Holocausto, bem como da luta intransigente pela liberdade e pela igualdade. Foi para a Fundação Champalimaud um privilégio contar com Simone Veil como nossa Curadora. A sua visão, iluminada por uma experiência de vida, uma sensibilidade e uma força excecionais, contribuiu de forma impressiva para o que é a Fundação Champalimaud", pode ler-se no comunicado de Leonor Beleza, presidente da Fundação.

O Presidente francês Emmanuel Macron considera que o país perdeu "uma das suas figuras iminentes".
"As maiores condolências à família de Simone Veil. Que seu exemplo inspire os nossos compatriotas, que podem encontrar nele o melhor da França", escreveu no Twitter esta manhã. 
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