Bernard Law ficou para a história recente como o arcebispo que encobriu a pedofilia cometida por padres na sua diocese, Boston, durante os 18 anos em que a liderou. Os sacerdotes eram transferidos de paróquia para paróquia, sem que as autoridades ou os paroquianos fossem informadas dos alegados crimes.
Bernard Francis Law nasceu a 4 de novembro de 1931 em Torreon, México, filho de um oficial do exército norte americano. A sua mãe era música. Graduado pela Universidade de Harvard foi ordenado sacerdote em 1961. Tinha 86 anos e vivia em Roma, onde morreu vítima de complicações ligadas a diabetes, de acordo com fontes próximas do cardeal. Se não se verificarem alterações, deverá ser enterrado em Santa Maria Maior, após um funeral na Basílica de São Pedro oficiado por outro cardeal e com direito a uma benção final do Papa.
Apesar de ter sido perseguido no início da sua carreira no Mississippi, por proteger os direitos civis de minorias, sobretudo por abrir um centro de auxílio a imigrantes vietnamitas e outro para mulheres vítimas de violência doméstica, o curriculum de Law ficou definitivamente manchado pelas denúncias de encobrimento de pedofilia.
Law foi nomeado em 1984 arcebispo de Boston, então uma das mais ricas e prestigiadas dioceses dos Estados Unidos, pelo Papa João Paulo II. O mesmo Papa acabou por aceitar a sua demissão a 13 de dezembro de 2002, após vários pedidos de Law.
O ano anterior tinha sido um dos mais tumultuosos da história recente da Igreja católica, devido à série de artigos do Boston Globe a denunciar a prática de transferência dos sacerdotes pedófilos entre paróquias às escondidas das autoridades.
A demissão de Law, que equivalia a uma assunção de culpa, lançou ondas de choque em toda a Igreja americana e abalou seriamente o seu prestígio. Os acordos financeiros com as vítimas levaram ainda a diocese de Boston à beira da ruína.
"É a minha oração fervorosa que esta ação possa ajudar a arquidiocese de Boston a viver a experiência da cura, da reconciliação e da unidade que são tão desesperadamente necessárias", disse Law ao demitir-se. "A todos aqueles que sofreram com as minhas falhas e erros, peço desculpa e imploro o seu perdão", acrescentou.
Seis meses após a demissão, o procurador-geral do Estado do Massachussetts anunciou que Law, entre outros, não iria ser processado criminalmente.
Arcipreste
Após algum tempo retirado num mosteiro nos Estados Unidos, Law foi transferido para Roma, onde foi nomeado arcipreste de Santa Maria Maior, uma das maiores basílicas da cidade.
Um lugar que, apesar de cerimonial, simbólico e longe das honrarias, lhe garantia proximidade ao centro do poder romano e o tornava conselheiro de diversos departamentos no Vaticano. Manteve ainda o título de Cardeal e participou no conclave que elegeu Bento XVI em 2005.A história de como a equipa do Boston Globe denunciou o escândalo numa cidade onde poucos ousavam enfrentar a politicamente poderosa Igreja Católica foi contada em 2015 no filme Spotlight - o nome da equipa - distinguido com o Óscar de melhor filme.
Vitimas dos abusos sexuais protestaram por considerarem que a nomeação dava a Law uma segunda carreira e uma "reforma dourada". Law nunca mais abordou o escândalo que cortou cerce uma carreira até então considerada brilhante. "Retirei-me de tudo isso", terá respondido uma vez a um repórter numa receção.
A situação em Boston acabou por se revelar apenas a ponta do iceberg. O hábito de Law, de transferir os abusadores, seria afinal uma prática habitual em dioceses do mundo inteiro apesar de não oficializada.
Os casos eram analisados internamente e localmente e só os mais graves chegavam ao conhecimento de cada Igreja nacional. Alguns sacerdotes eram afastados de lugares de proeminência, sem contudo serem invocadas razões e sem que as denúncias chegassem às autoridades civis.
Mesmo Roma não era informada da maioria das acusações e só conhecia os casos que lhe chegavam através de recursos sucessivos interpostos pelas instâncias da Justiça eclesiástica, o que normalmente levava anos.
O papel de Ratzinger
Depois de Boston, milhares de casos vieram à luz do dia e estilhaçaram a reputação da Igreja católica até em países como a Irlanda. Foram pagos cerca de dois mil milhões de dólares em indemnizações.
O escândalo assumiu tal proporção que o então Cardeal Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, acabou por exigir a todas as Igrejas nacionais que lhe enviassem os processos individuais. O próprio afirmou que durante um ano não fez outra coisa que não tratar "do lixo da Igreja católica".
Já como Papa e apesar das acusações de várias associações de vítimas de sacerdotes católicos de que ele próprio estaria envolvido nos encobrimentos, Ratzinger destituiu e expulsou ao longo de uma década centenas de padres e de Bispos envolvidos em práticas de pedofilia. Redigiu ainda grande parte da reforma legislativa para evitar novos casos.
As denúncias acabaram por provocar uma reforma profunda nas admissões aos seminários e nas leis internas da Igreja católica. As autoridades eclesiásticas estão por exemplo, agora, obrigadas por Roma a comunicar civilmente acusações de pedofilia e a colaborar nas investigações.
Consciência "adormecida"
Law foi substituído na diocese de Boston pelo cardeal Sean O'Malley, nomeado também para liderar a comissão do Vaticano formada em 2014 para aconselhar o Papa Francisco sobre o combate aos abusos sexuais na Igreja.
Dois membros laicos da comissão acabaram por se demitir acusando-a de "arrastar os pés" no confronto dos abusos.
Em setembro último, o Papa Francisco reconheceu que a resposta da Igreja Católica ao problema foi lenta. "Quando a consciência chega tarde, os meios para resolver os problemas também chegam tarde", afirmou.
"Tenho consciência desta dificuldade mas é a realidade e digo-o francamente: chegamos tarde. A velha prática de transferir pessoas e não confrontar o problema adormeceu as consciências", acrescentou.