Em 266 pontificados ao longo da história, apenas por dez vezes a Igreja escolheu um novo papa com o predecessor ainda vivo. Por norma, a escolha de um novo papa é motivada pela morte do bispo em funções, mas a 11 fevereiro de 2013, Joseph Ratzinger surpreendeu o mundo ao anunciar que iria renunciar ao pontificado.
A renúncia de Bento XVI foi um acontecimento extraordinário, até porque foi o primeiro papa a fazê-lo em quase 600 anos. Para encontrar outro chefe da Igreja Católica que tenha apresentado demissão é preciso recuar ao longínquo ano de 1415, quando o papa Gregório XII abdicou, numa tentativa de resolver as divisões e responder então ao fenómeno dos “antipapas”, que reclamavam para si o título de sucessor de São Pedro.
Nas memórias e raras declarações desde que é papa emérito, Bento XVI explicou que a decisão de renunciar se deveu apenas a questões de saúde e não à possível pressão de vários casos polémicos que então abalavam e continuam a abalar a Igreja.
Em junho de 2020, Bento XVI saiu do Vaticano pela última vez, deslocando-se à Alemanha para se despedir de Georg Ratzinger, seu irmão mais velho, que viria a morrer a 1 de julho.
A vida e a obra
Joseph Alosisius Ratzinger nasceu a 16 de abril de 1927 em Marktl am Inn, na Baviera, na véspera da Páscoa. Passou grande parte da infância nesta região da Alemanha, tendo também vivido na localidade de Tittmoning e em Aschau. O pai, comissário de polícia e católico devoto, opunha-se ao regime nacional-socialista num momento de ascensão de Adolf Hitler ao poder, o que obrigou a família a mudar de casa em várias ocasiões.
Em 1939, quando se inicia a II Guerra Mundial, é também o ano em que Ratzinger ingressa no seminário de Traunstein, iniciando-se na vida eclesiástica. Na reta final da guerra, foi chamado aos serviços auxiliares antiaéreos pelo regime nazi.
Findo o conflito, em junho de 1951 celebra a sua primeira missa ao lado do irmão. Ratzinger depressa se fez notar pela erudição no campo da teologia, sendo também um grande apreciador de arte, em particular de música. “A arte, a par com a ciência, é a maior oferta de Deus à humanidade”, chegou a afirmar.
Antes de chegar à Santa Sé, participou no Concílio Vaticano II e foi arcebispo de Munique e Frisinga entre 1977 e 1982. Já cardeal, o papa João Paulo II nomeou Ratzinger como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Foi eleito pelo colégio de cardiais no Vaticano a 2 de abril de 2005, dias após a morte de João Paulo II. Durante os quase oito anos de papado, Bento XVI fez 24 viagens ao estrangeiro, tendo também passado por Portugal, numa viagem entre Lisboa, Fátima e Porto entre os dias 11 e 14 de maio de 2010.
Joseph Ratzinger presidiu a três Jornadas Mundiais da Juventude e assinou três encíclicas. Ainda antes de ser o chefe da Igreja Católica, Bento XVI já era considerado um dos teólogos mais influentes e marcantes das últimas décadas. Ainda assim, o papado fica marcado por novas polémicas relacionadas com abusos sexuais na Igreja e também pelo caso "Vatileaks", em 2011.
Ao renunciar ao fim de quase oito anos de pontificado, com um gesto inesperado e inédito na história recente, Joseph Ratzinger abriu caminho a renúncias futuras por parte de outros papas. Ainda este mês, em entrevista ao diário espanhol ABC, o papa Francisco anunciava que já havia assinado a sua demissão em caso de impedimento médico.
Uma possibilidade que fica em aberto numa altura em que o chefe da Igreja Católica conta com 86 anos - a mesma idade que Ratzinger tinha quando renunciou ao pontificado, há quase 10 anos - e se debate com crescentes desafios de mobilidade devido a um problema no joelho.
Nesta entrevista à ABC, Francisco falava do seu antecessor como um “santo” e “um homem de elevada vida espiritual”.
“Visito-o com frequência e fico admirado com o seu olhar transparente. Vive em contemplação. Está de bom humor, está lucido, muito vivo, fala baixo mas acompanha as conversas. Admiro a sua lucidez. É um grande homem”, realçava Francisco.
Já na quarta-feira, o papa Francisco anunciava que o seu antecessor estava “muito doente” e que iria rezar por ele. Diante dos fiéis na audiência papal, no Vaticano, Francisco pedia uma “oração especial pelo papa emérito”.
“Para manter viva a sua memória, porque está muito doente, para pedir ao Senhor que o console e o apoie até o fim neste testemunho de amor à Igreja”, afirmou.
Dois papas
No livro “Il Monastero” (O Mosteiro), editado em Itália em abril de 2022, o jornalista Massimo Franco descreve as dificuldades na coexistência de dois papas. Apesar da relação cordial e afetuosa entre os dois pontífices, as duas figuras representam fações diferentes dentro da igreja, argumenta.
Segundo o repórter do Corriere della Sera, o Convento Mater Ecclasiae, nos jardins do Vaticano, onde Bento XVI vivia desde 2013, era uma espécie de núcleo da oposição a Francisco.
Por outro lado, o arcebispo Georg Gänswein, secretário do papa-emérito, explicava em 2016: "Após a eleição do seu sucessor, o Papa Francisco, a 13 de março de 2013, não há dois Papas, mas há de facto um ministério alargado, com um membro ativo e um contemplativo (...) “
Ele não se retirou para um mosteiro isolado, mas continua dentro do Vaticano, como se tivesse dado apenas um passo para o lado, para dar espaço ao seu sucessor e a uma nova etapa na história do papado”, precisou.”,
afirmava então.
Muito se especulou e continua a especular sobre este momento único de transição entre líderes da Igreja, representantes da mesma Igreja, mas tão diferentes no estilo e abordagem. Na ficção, o realizador brasileiro Fernando Meirelles dramatizou, no filme "Dois Papas" (2019), uma relação de afeto entre dois homens de fé em pólos opostos.
Em contraste com Francisco, com um estilo mais descontraído e carismático, Bento XVI chegou à Santa Sé já com a reputação de grande teólogo de matriz e doutrina mais conservadora.
Há no pensamento de Bento XVI um paradoxo que parece refletir a encruzilhada atual da Igreja Católica. Se por um lado, Ratzinger rejeitava a banalização da doutrina como solução para uma maior proximidade e inteligibilidade perante os fiéis, também assumia preocupação com o presente e futuro do catolicismo, num reconhecimento tácito da necessidade de mudança que a sua própria sucessão acabou por proporcionar.
"O número de fiéis está a diminuir, as vocações estão a diminuir, em particular as das ordens femininas. Os ventos não sopram a nosso favor", reconhecia num documentário da televisão alemã ARD, em 2005.
No início de 2022, na sequência de uma investigação independente, Bento XVI foi
acusado de ter ignorado perante casos de abuso sexual dentro da Igreja,
especificamente quando foi arcebispo de Munique. As acusações são
refutadas de forma "contundente" pelo papa emérito, que em fevereiro último pediu "perdão"
por todas as vítimas.
"Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica.
Tanto maior é a minha dor pelos abusos e erros que ocorreram nesses diferentes lugares durante o tempo do meu mandato. Em
todos os meus encontros, especialmente em várias viagens apostólicas,
com pessoas vítimas de abusos sexuais por parte de padres, tenho-me
confrontado com as consequências da falta mais grave e tenho vindo a
compreender que
nós próprios somos arrastados para esta falta grave
sempre que a negligenciamos ou não a enfrentamos com a determinação e
responsabilidade necessárias, como demasiadas vezes aconteceu e continua
a acontecer", escreve Bento XVI numa carta lida pelo secretário pessoal.
E num tom de desfecho, conclui nesta missiva: "Em breve irei enfrentar o juiz final da minha vida. Embora olhando para trás, para a minha longa vida, possa ter muitos motivos de medo e trepidação, estou, no entanto, num estado de espírito alegre porque confio firmemente que o Senhor não é apenas o juiz justo, mas também o amigo e irmão que já sofreu as minhas falhas e é, portanto, como juiz, ao mesmo tempo meu defensor".