Uma académica australiana disse à agência Lusa que a Administração Transitória da ONU que liderou Timor-Leste até à independência em 2002 falhou na criação de algumas das funções essenciais do Governo, influenciando o sistema político do país.
"Em alguns aspetos foi uma missão com muito êxito. Mas noutros não", afirmou a académica australiana Sue Ingram, que fez parte da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET) e que foi a primeira administradora do distrito de Aileu.
"A transição para a independência foi alcançada, mas como disse José Ramos-Horta na altura, o que a ONU deixou foi um esboço em cartão de um Estado. Um palco montado, mas que era uma ilusão", recordou.
Para Sue Ingram, a forma como a missão atuou, sem criar a maquinaria necessária a um Estado independente, deixou carências importantes no futuro aparelho de governação.
A académica recordou que o administrador transitório, Sérgio Vieira de Mallo, tinha um mandato que lhe dava "poderes plenipotenciários" criando uma tutela plena, com poderes executivos, legislativos e judiciais "depositados num único indivíduo".
Abaixo do brasileiro que liderou a missão transitória, havia uma "coleção eclética de pessoas, algumas com grande competência e entendimentos e outros, infelizmente, sem fazerem a mínima ideia" do que estava em causa, explicou.
"Foi um grande desafio pôr isso a funcionar", sublinhou, referindo que solicitou ser transferida para os distritos, assumindo a liderança da administração em Aileu, a sul de Díli.
Quando regressou a Díli, onde ficou destacada na Autoridade Nacional de Planeamento, Ingram adiantou que, "apesar de haver um plano de transição e `benchmarks` de transição, estavam a faltar muitas coisas", especialmente nas funções do futuro Governo.
"Havia muitas das que deveriam ser as funções do Governo que estavam integradas em partes da missão da ONU e que não tinham sido separadamente preparadas como parte do processo de construção da maquinaria de Governo", declarou.
"Havia visões globais e setoriais, mas a mecânica do Governo não tinha sido construída. Porque eram funções integradas na missão em si. As funções mais básicas e aborrecidas do Governo não foram desenvolvidas, mas eram essenciais para a maquinaria de um Estado independente", sustentou.
No lado da transição política, Ingram diz que a ONU usou um modelo que acabou por "influenciar muito de como o sistema político acabaria por ser construído depois da independência", inclusive na criação da própria Assembleia Constituinte.
O sistema desenvolvido, que incluiu um representante de cada distrito, acabou por dar à Fretilin um número de cadeiras na Constituinte (cerca de 62,5%) dos lugares, apesar de só ter cerca de 56% do voto nacional, beneficiando de 12 dos 13 representantes distritais.
"Em vez de uma constituição inclusiva que todos pudessem subscrever, o texto que saiu da assembleia teve uma minoria preocupante que não a apoiava. Um legado triste para um país que estava prestes a começar a sua vida como um Estado independente internacionalmente reconhecido", referiu.
Recorde-se que a constituição foi aprovada a 22 de março de 2002 com 72 votos a favor, 14 contra e uma abstenção.
Investigadora com quase 20 anos de experiência na área de governação na Austrália e noutros países, Sue Ingram - que atualmente é uma das responsáveis pelas conferências do Timor Update na Australian National University (ANU) - foi administradora em Aileu em 2000.
A ligação a Timor-Leste é mais antiga e começou por casualidade, quando a Indonésia não lhe concedeu um visto de estudo para a investigação que pretendia fazer no norte de Sumatra e Ingram procurou alternativas: o primeiro visto a chegar foi de Timor Português.
Ingram chegou em Díli em julho de 1974 a pensar em antropologia, mas cedo percebeu que era impossível que o contexto político da altura não permeasse qualquer trabalho de investigação.
A situação política acabou por impedir que o assunto, em termos antropológicos e académicos, pudesse avançar e Sue Ingram acabou no funcionalismo público australiano, onde chegou a funções superiores, com Timor-Leste a ficar como "uma ferida" onde não quis mexer.
A nova visita a Timor-Leste só ocorreria muitos anos depois quando a violência de 1999, especialmente a que marcou o período pós-referendo, reabriu a ferida.
"A explosão de violência pós-referendo, causou-me grande dor e um forte sentimento de que tinha que voltar para Timor", disse, explicando que respondeu logo a uma abertura de candidaturas feita pelo Governo australiano, a pedido das Nações Unidas.
"Pessoalmente afetou-me muito. Fiquei chocada com a destruição sistemática", afirmou.
Sue Ingram recordou que a Indonésia "parece ter tomado uma decisão consciente de retirar tudo o que fez em Timor-Leste", com uma destruição que vai além das estatísticas e mostra o detalhe de planeamento do que foi feito.
"Podemos dizer que 70% ou 80% das infraestruturas públicas foi destruída. Mas isso é só estatística. É no detalhe, quando se percebe até que ponto levaram a destruição, que isso se torna mais real", lembrou.
Em Aileu, por exemplo, destruíram não apenas o gerador e a bomba usada no poço que fornecia a vila, mas chegaram ao ponto de tapar o furo com pedras, destruindo a torre de transmissão, mas deitando abaixo depois os postes elétricos.
Uma ação "sistemática" e "selvagem" de má fé que se verificou também noutras questões, como o desaparecimento imediato, de um dia para o outro, de tudo o que era o Governo, frisou.
"Não falo de um vazio político, porque havia um movimento independentista muito dinâmico, uma liderança muito organizada, com planos, que estava preparada", disse.
Mas houve um vazio no Governo: "tudo foi destruído. Não tínhamos edifícios, não tínhamos registos, não tínhamos sistema jurídico a funcionar, não tínhamos funcionários", acrescentou.
"Foi extraordinário ver isso e compreender o impacto disso pela primeira vez", considerou.