"Menti". Aluna que denunciou professor decapitado em França admite calúnia

por Graça Andrade Ramos - RTP
Alunos reúnem-se em fevereiro numa escola francesa para homenagear Samuel Paty, o professor de História e de Cidadania decapitado em outubro de 2020 por um islamita radical Reuters

Queria esconder do pai que tinha sido suspensa por excesso de faltas e por isso mentiu sobre o ocorrido numa aula sobre liberdade de expressão, em que o professor de História, Samuel Paty, mostrou caricaturas sobre o profeta Maomé publicadas pelo jornal satírico Charlie Hebdo.

Foi esta a conclusão da polícia, depois de a adolescente ter admitido sob interrogatório, quase dois meses depois da primeira acusação, que nem sequer esteve presente na "aula das caricaturas"

A adolescente de 13 anos tinha dito ao progenitor, e depois à polícia, que tinha sido expulsa da sala após discutir com Paty por este ter mandado sair os alunos muçulmanos da sala, antes de mostrar as imagens. Acusou-o de islamofobia.

Indignado, o pai fez um vídeo, muito difundido nas redes sociais, a chamar "bandido" ao professor. Para não haver dúvidas quanto à acusação, o vídeo revelava o número de telemóvel de Samuel Paty e o endereço da escola, em Conflans-Sainte-Honorine, periferia de Paris.

Foi igualmente feita uma queixa na polícia contra o professor, por "difusão de imagens pornográficas".

O escândalo ganhou asas e terminou abruptamente em tragédia. Samuel Paty foi decapitado em plena rua, junto à escola onde leccionava, a 16 de outubro de 2020, aos 47 anos, por um jovem muçulmano radical.
"Eu menti"
Só que era tudo mentira.

"Esta é uma realidade tão cruel quanto revoltante. Samuel Paty morreu decapitado por causa de uma mentira ridícula de uma aluna de 13 anos", reagiu indignado o jornal Le Parisien, a 8 de março de 2021, ao revelar o interrogatório em que a jovem admitiu a calúnia.

Perante versões coincidentes do professor e de outras testemunhas, que contradiziam a acusação, o juiz antiterrorismo que ficou responsável pelo caso após o assassinato de Samuel Paty resolveu ir mais fundo e questionar o que estaria a motivar a jovem de 13 anos. No seu primeiro interrogatório, a 8 de outubro, e nos subsequentes, até 23 de novembro, após ser informada dos depoimentos dos colegas, a aluna tinha mantido a sua versão inicial e acusado todos os outros de mentir.

A 25 de novembro de 2020, perante o juiz, cedeu e retratou-se, revelou segunda-feira o Le Parisien.

"Eu menti sobre uma coisa", declarou a jovem. "Não estava presente no dia das caricaturas" por estar suspensa devido a faltas, admitiu, um castigo que escondera ao pai.

O advogado da jovem, Mbeko Tabula, reconheceu à Agência France Presse a veracidade da notícia e revelou que a sua cliente foi entretanto indiciada por "denúncia difamatória".

Os investigadores acreditam que a jovem mentiu para não ter de admitir mais problemas na escola, depois de um historial de faltas e de exclusões por mau comportamento, e por ser comparada desfavoravelmente com a irmã gémea, boa aluna e cumpridora.

O seu advogado tem uma versão ligeiramente diferente e afirma que ela se sentiu coagida por outros colegas.

"Ela mentiu porque se sentiu presa numa sucessão de acontecimentos e porque alguns de seus colegas pediram que fosse seu porta-voz", disse o seu advogado, Mbeko Tabula. "Houve um verdadeiro desconforto e ela sentiu-se obrigada a acrescentar para fazer valer a mensagem", acrescentou.
Encurralada
Desde o início, a acusação a Paty foi desmentida à polícia, não só pelo próprio como por colegas da adolescente.

Quatro dias antes do ataque fatal, durante um interrogatório da polícia cuja transcrição foi vista por repórteres da Franceinfo, o professor garantiu que estava a ser vítima de uma calúnia e que já havia relatado que a jovem não estava na aula quando as caricaturas foram exibidas. "Ela inventou uma história através de rumores de colegas. Trata-se de uma falsa declaração com o objetivo de prejudicar a imagem do professor, que eu represento, da escola e da educação como instituição", afirmou então Samuel Paty.

Já os outros alunos que assistiram à aula desmentiram igualmente a acusação.

Reiteraram mesmo que Paty não só não forçou nenhum estudante muçulmano a sair da aula, como se mostrou solícito para com eles. Antes de mostrar as caricaturas, advertiu que se os jovens ficassem chocados com as imagens, poderiam fechar os olhos.
Legião de Honra
A 21 de setembro, cinco dias apenas após o ataque brutal, o Presidente Emmanuel Macron nomeou postumamente Samuel Paty membro da Ordem das Palmas Académicas e atribuiu-lhe a Legião de Honra, precisamente da Universidade da Sorbonne, símbolo nacional do conhecimento e da liberdade.

Foi a homenagem possível após o seu assassinato, perante uma França comovida e de novo abalada pelo islamismo radical.
O professor foi ainda homenageado na Assembleia Nacional, com o hino e um minuto de silêncio.

A investigação policial ao homicídio incluiu a detenção de 15 pessoas, incluindo o pai da aluna denunciante, que terá trocado mensagens com o assassino, um russo-checheno de 18 anos, abatido pela polícia no dia do crime.

O pai da aluna e um ativista islâmico, Abdelhakim Sefrioui, que o ajudou na campanha virulenta nas redes sociais, permanecem sob prisão preventiva, acusados de "cumplicidade no assassinato".

Também uma mesquita, que partilhou o vídeo da denúncia onde se pedia a condenação de Samual Paty, foi encerrada por seis meses. O Governo francês exigiu um maior combate ao discurso de ódio difundido nas redes sociais.
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