De aspirante a membro da União Europeia, a Turquia passou, numa breve década, a falar de igual para igual com Bruxelas e a procurar sucessivas ocasiões de confronto. Desde o alegado golpe de Estado falhado de 2016, o Presidente Tayyip Erdogan assumiu abertamente as suas intenções expansionistas, de recriar o Império Otomano, ou de, pelo menos, adicionar à sua área de influência antigos territórios.
Desde 2009 que a soberania sobre esta região tem vindo a assumir importância crescente. Nesse ano, Israel iniciou ali a exploração e descoberta dos recursos de petróleo e de gás natural. Nos últimos 10 anos, foram encontradas cerca de 4.47 mil milhões de toneladas destes recursos, exploráveis em 19 bacias, e calcula-se que haja mais 12.28 mil milhões de toneladas por identificar.
A confirmarem-se as expetativas, a área poderá tornar-se uma das mais importantes zonas de produção de petróleo e de gás natural do mundo, a par do Golfo Pérsico e o Golfo do México.
Os países regionais têm estado a unir-se de acordo com os seus interesses e, em 2019, as movimentações diplomáticas alinharam-se em dois blocos, com cada um a procurar garantir o máximo de controlo sobre os recursos.
Xadrez regional
De um lado, a Turquia aliou-se ao Governo de Acordo Nacional da Líbia, ao Qatar e ao 'Norte de Chipre' - reconhecido apenas por Ancara - para garantir os seus interesses geopolíticos não só no Mediterrâneo Oriental como no Norte de África.
Sob esse acordo, expandiu alegadamente a sua ZEE (Zona Económica Exclusiva), de forma a englobar grandes ilhas gregas, como Creta e Rodes. Será esse o pano de fundo para o apoio militar ao GAN, que tem permitido a este fazer face à ofensiva do general Khalifa Aftar, que procura conquistar Tripoli e dominar todo o país.
Grécia e Egipto assinaram há dias o seu próprio acordo marítimo, que a Turquia declarou "nulo e vazio".
Alta tensão no Mediterrâneo Oriental
Em agosto, foi a vez de um navio de prospeção, o Oruc Reis, sob escolta naval, se deslocar até ao largo de Creta e de Chipre, onde Ancara alega ter direitos de exploração ao abrigo do acordo com o GAN, apesar de a zona se encontrar na placa continental grega.
Atenas reagiu com o envio da sua própria força naval para a área. Dois vasos de guerra colidiram numa medição de forças, houve troca dura de ameaças de parte a parte, a França foi em socorro da Grécia, reforçando a força naval europeia na zona, ao lado do Chipre e de Itália.
A 25 de agosto, o Presidente turco, Tayyip Erdogan, reagiu à intervenção militar franco-italiana, dizendo que a Turquia "não irá recuar" na defesa dos seus direitos e interesses sobre os recursos de gás natural no Mediterrâneo Oriental.
Em resposta, na segunda-feira, dia 31, Ancara anunciou que o Oruc iria permanecer na área até 12 de setembro a realizar análises sísmicas para detetar a presença de hidrocarbonetos.
Os EUA avisam
Esta quarta-feira, os Estados Unidos resolveram intervir, deixando avisos sobretudo à Turquia.
Seria pouco credível que Ancara amansasse perante esta simples pressão norte-americana. Por isso, as palavras de aviso de Pompeo foram antecipadas, terça-feira, por um anúncio mais subtil, o de que os Estados Unidos iriam levantar parcialmente o embargo de armas imposto há 33 anos a Chipre, autorizando a entrada no país de equipamento não letal.
O secretário de Estado dos EUA afirmou que a decisão já estava tomada há muito, sem qualquer relação com o agravamento recente da tensão militar na região. "Pensámos ser a coisa certa a fazer", afirmou Pompeo.
Ancara reagiu em fúria. A decisão norte-americana, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco, "envenena o ambiente de paz e estabilidade da região", entre as áreas grega e turca, e "não está de acordo com o espírito de aliança" entre os Estados Unidos e a Turquia.A Turquia invadiu em 1974 o norte da ilha, depois de um golpe por apoiantes da união com a área grega do sul, e tem ali colocadas 35 mil tropas, de forma a manter o que designa como Chipre turco. O embargo de armas a Nicosia, sede do único Governo cipriota reconhecido internacionalmente, foi imposto para não dinamitar os esforços de paz conduzidos pela ONU.
Os acontecimentos deste verão são contudo os mais recentes de uma longa história de confronto da Turquia, com os aliados da NATO e da União Europeia e até com os EUA, apesar da "aliança" referida.
Em 2019, Washington e Ancara desentenderam-se de forma séria, depois de esta ter adquirido sistemas de defesa aérea S-400 russos. E, tanto na Síria como na Líbia, os interesses turcos têm-se oposto aos europeus e aos americanos.
Numa provocação ainda mais recente, Erdogan converteu em mesquita a catedral Hagia Sophia, símbolo da cristandade a Oriente e entretanto transformada em Museu.
A Líbia é uma antiga possessão francesa e Paris mantém interesses concretos sobre o território, apoiando os esforços do general Khalifa Aftar para controlar Tripoli e o país contra o GAN, o qual tem o apoio da Irmandade Muçulmana, que tentou assumir o controlo do país após a queda do antigo ditador Muammar Khadafi.
Erdogan apoia regionalmente a Irmandade Muçulmana, ao passo que o homem forte do Egipto, Abdel Fatteh al-Sisi, chegou ao poder precisamente após afastar a Irmandade Muçulmana do Governo, que esta tinha conquistado com a Primavera Árabe. Apoia igualmente Aftar.
Erdogan e al-Sisi odeiam-se. E os recursos do Mediterrâneo Oriental tornaram-se mais um possível objeto de confronto entre ambos, num choque que ameaça envolver, muito além da Grécia e dos seus vizinhos europeus, países do Médio Oriente.
Mais do que ameças? Em princípio, não
O Azerbaijão declarou por exemplo o seu apoio incondicional a Erdogan. Ao receber as credenciais do novo embaixador grego no país, o Presidente azeri, Ilham Aliyev, há décadas no poder, lembrou o apoio turco às pretensões do Azerbaijão sobre a Arménia.
Após referir a recente tensão entre a Turquia e a Grécia no Mediterrâneo oriental, Aliyev não se poupou nas ameaças. "Posso dizer-vos e não é segredo, que a Turquia é não só nossa amiga e parceira, mas também para nós um país irmão. Sem qualquer hesitação, apoiamos a Turquia e iremos apoia-la em quaisquer circunstâncias. Vemos o mesmo apoio da parte dos nossos irmãos turcos. Eles apoiam o Azerbaijão em todas as questões e nós apoiamo-los em todos os assuntos, incluindo na questão da exploração do Mediterrâneo Oriental", afirmou.
A Turquia, por outro lado, não tem qualquer interesse em atacar a Grécia, membro da NATO e da UE. Pretende, por enquanto, conseguir peso e influência, de forma a controlar a questão das migrações, as suas posições no norte da Síria contra a comunidade curda, e a Líbia e as suas ligações a África.
Está, além disso, aliada à Rússia e, de muitas formas, é Moscovo quem puxa os cordelinhos em Ancara. O Presidente russo, Vladimir Putin, não vê realmente qualquer interesse num conflito aberto com a NATO, a União Europeia e os Estados Unidos, ou com os principais aliados destes no Médio Oriente, a Arábia Saudita e Israel.