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Massacre de Santa Cruz. Há 30 anos um gemido timorense "quebrou o silêncio" do mundo

Em 1999 vesti pela primeira vez a camisola pela luta de um povo distante, de Timor-Leste, vítima de uma tirania incansável cuja brutalidade havia testemunhado anos antes, em 1991, com o massacre do cemitério de Santa Cruz. Este texto relembra em parte as minhas memórias e tenta enquadrar a luta do povo maubere, quando passam 30 anos do terror que comoveu milhões.

É algo que ficará comigo para sempre, a par do Pai-Nosso e de Avé Marias rezadas em português do outro lado do mundo por pessoas em risco de vida. Um homem jovem, timorense, com a barriga ensanguentada, estendido no chão entre tumbas, amparado por outro e a gemer de dor. Um gemido que ouvi no meu idioma e que calou fundo. Muito fundo. Mais do que os gritos de terror e do que os tiros. Acredito que aquele som, aquela dor evidente, comoveram milhões.

Levi Corte-Real era o nome do estudante gravemente ferido filmado por Max Stahl em 12 de novembro de 1991 Imagem Max Stahl/AMRT/Fundação Mário Soares

O terror audível e visível tinha sido captado em 12 de novembro, pelo jornalista Max Stahl, alias de Christopher Wenner.

Nesse dia iam decorrer no cemitério de Santa Cruz, em Díli, as cerimónias fúnebres de Sebastião Gomes, um ativista morto por milícias apoiadas pela Indonésia. Os timorenses agarraram a ocasião para, ao prestar tributo a Gomes, protestar mais uma vez contra a ocupação da Indonésia nos anteriores 16 anos, perante o testemunho de um jornalista britânico. Apesar do perigo, mais de 2.000 pessoas, sobretudo estudantes, empunharam bandeiras e faixas e marcharam, às vezes correndo, pelas ruas de Díli.

Stahl queria documentar o que se passava em Timor-Leste, para uma televisão independente inglesa. Já tinha entrado com um visto de turista no antigo território português tornado província indonésia em 1975, e havia entrevistado líderes da resistência antes de sair e reentrar por terra secretamente.

Nesse dia, às escondidas, começou por filmar a multidão, que gritava vivas incessantes a Timor-Leste e ao líder da resistência Xanana Gusmão, enquanto ela avançava ao longo de uma avenida junto ao mar.

“Timor-Leste! Timor-Leste!”. O desafio ia sendo lançado a alguns militares indonésios estacionados no areal. Vários manifestantes olhavam depois para trás, evidentemente preocupados, para os soldados que observavam, atentos.

Os indonésios mostravam-se descontentes com a força do protesto que as filmagens de Stahl ainda hoje transmitem. O jornalista gravou-os a entrarem num edifício, para provavelmente receberem ordens sobre a resposta a dar.

A seguir e já abertamente, o britânico filmou os timorenses a passarem em filas sucessivas rumo ao cemitério, gritando por Timor Leste e por Xanana diretamente para a câmara. Centenas de pessoas de sorriso aberto juntavam-se nas bermas a ver os manifestantes.

No cemitério, os jovens empunharam faixas em pé nos muros para tornar visíveis as mensagens nelas escritas em inglês: “Libertem os prisioneiros”, “Longa vida Xanana” e “Queremos independência”.

O vídeo captado por Stahl, da manifestação e do início do massacre

Os timorenses sabiam que Stahl estava ali e que podia dar-lhes voz. “Diga ao mundo que nós queremos ser livres e a Portugal que tem responsabilidades” disse, para a câmara, um jovem resistente, em inglês. A multidão compactava-se à entrada, o barulho era ensurdecedor e começavam a escutar-se ao longe as primeiras sirenes das forças indonésias.O massacre: 20 minutos de terror
A ordem dada aos militares foi de disparar indiscriminadamente, impunemente como em tantas outras vezes. Stahl não captou o início dos disparos. Diria depois que os indonésios “esvaziaram as metralhadoras”.

As imagens do massacre foram captadas já dentro do cemitério, com Stahl agachado e virado para a entrada por onde fugiam timorenses aos tropeções e entre tiros. Alguns refugiaram-se numa capela, uns ainda desafiantes, outros a rezar, outros feridos. Homens, mulheres, crianças.

“Eu nem sabia se a câmara estava a filmar”, afirmou depois o britânico.

Terminados os disparos, os soldados avançaram pelas ruas ladeadas de campas, em busca de manifestantes. Stahl filmou-os a capturarem, a espancarem e a levarem alguns. “Cada pessoa que queria escapar eles mandavam matar” testemunhou. Gravou um homem jovem estendido no chão a gemer e a torcer-se com dores, as mãos manchadas do próprio sangue. E um corpo estendido de bruços a poucos metros.

O jornalista estava ciente de que a sua sobrevivência e a daquelas imagens poderia ser vital para a independência do povo timorense. Enterrou junto a uma campa as duas cassetes que tinha filmado e à boleia da resistência conseguiu depois que elas saíssem de Timor.

O documentário produzido pela RTP com testemunhos sobre o massacre de Santa Cruz, 19 anos depois

Morreram pelo menos 74 pessoas no cemitério e, nos dias seguintes, mais 120 jovens sucumbiram à barbárie, no hospital ou perseguidos pelos ocupantes. Até hoje há vítimas por encontrar e o número real de mortos poderá ultrapassar os 270.

“Nesse dia quebrou-se o silêncio do mundo” afirmou à RTP vários anos depois, um dos líderes dos manifestantes.

Max Stahl morreu no passado dia 28 de outubro, 30 anos depois de Sebastião Gomes, como cidadão timorense e referência indelével da luta pela independência de Timor, pela sua coragem e por ter revelado as provas do terror testemunhado.

Ao contrário de outros massacres anteriores, perpetrados durante a ocupação indonésia, o de Santa Cruz mudou a história quando as imagens correram mundo. Ali estava a prova da repressão indonésia que muitos queriam ignorar apesar das denúncias.

"As imagens foram absolutamente vitais na história de Timor, porque, pela primeira vez, se tornaram evidentes para a opinião publica mundial as provas de um genocídio em curso", considerou há dias o defensor da causa timorense Rui Marques à agência Lusa.

Dentro da capela durante o massacre do Cemitério de Santa Criz em Díli, a 12 de novembro de 1991

A minha foi uma dessas consciências despertadas para o que se passava em Timor-Leste, até então um problema distante. Sabia que tinha sido parte de Portugal, que o povo era maioritariamente católico e que estava sob ocupação indonésia e em luta pela independência, mas pouco mais. O massacre tornou aquela terra do outro lado do mundo um problema meu.Da administração de Portugal à ocupação indonésia
A relação entre os portugueses e os povos de Timor remonta ao século XVI sem nunca se ter aprofundado muito ao longo dos séculos, apesar dos laços criados sobretudo através da conversão ao cristianismo católico. “No século XIX continuavam a estar a dois anos de distância de Lisboa” sublinhou Rui Ramos quarta-feira à rádio Observador.

A ocupação armada efetiva do território por parte de Portugal só teve início a partir de 1911 e mesmo então foi realizada sobretudo por timorenses aliados que combateram tribos que se opunham a Portugal. Ao longo dos 60 anos seguintes a administração portuguesa manteve-se, com um breve interregno de ocupação japonesa entre 1942 e 1945, durante a II Guerra Mundial, passando incólume à onda independentista surgida após o conflito global. Lisboa desenvolveu Díli, a capital, e pouco mais, deixando aos povos locais as suas tradições.

A Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 e o consequente processo de reconhecimento dos povos ultramarinos à autodeterminação e à independência mudou tudo.

Apesar de nunca ter havido contestação armada à administração lusa, os timorenses dividiram-se entre partidos que defendiam, um a manutenção da relação com Portugal, a UDT, e outro, a Apodeti, a integração na Indonésia.

Surgiu igualmente a Fretilin, fortemente implementada entre os soldados recrutados por Portugal na população timorense. A Frente Revolucionária de Timor Leste Independente, de pendor marxista-leninista, cedo abrangeu todas as forças armadas do território.

Esta vantagem foi crucial na guerra civil que eclodiu com a UDT no verão de 1975, em contestação aos resultados eleitorais que deram a vitória à Fretilin. Esta perseguiu ferozmente os opositores proclamando finalmente a independência, nunca reconhecida por Lisboa, Jacarta, Washington ou Camberra, a 28 de novembro desse ano.

Dias depois, a 7 de dezembro, a Indonésia invadiu oficialmente a parte leste da ilha de Timor, com o apoio dos Estados Unidos e da Austrália, pouco interessados em ver o território até então português transformar-se numa Cuba do Sudoeste Asiático. Na véspera, o próprio Presidente dos EUA, Gerald Ford, dera ao presidente Suharto luz verde para a invasão.

Soldados indonésios com a bandeira de Portugal, dezembro de 1975 Foto: Wikicommons

Portugal contestou de imediato a ocupação nas Nações Unidas e a 12 de dezembro a Assembleia Geral da ONU e o Conselho de Segurança aprovaram resoluções condenando as ações da Indonésia e pedindo a retirada imediata, reconhecendo Portugal como a potência administrante, situação que se manteria até 1999.
Os anos da resistência

Vivia-se em pleno a guerra-fria.

Algum apoio de forças comunistas internacionais à Fretilin permitiu-lhe responder à invasão indonésia, mas a resistência do seu braço armado, as Falintil ou Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, acabou por ser relegada para as montanhas, mais difíceis de controlar pelos ocupantes.

A partir dali as Falintil lançavam ataques de guerrilha e faziam sabotagens, sob comando de Xanana Gusmão, eleito seu líder, enquanto os militares indonésios destruíam aldeias e florestas inteiras com napalm, num esforço de encurralar os guerrilheiros. A perseguição às populações assumia contornos de genocídio, com execuções extrajudiciais, tortura e fome.

Ao mesmo tempo e ao longo dos anos seguintes Portugal e líderes timorenses esforçavam-se por manter na ribalta a contestação à legitimidade do controlo indonésio que tinha feito de Timor a sua 27ª província, sob a denominação Timor-Timur, reconhecida unicamente pela Austrália e pelos Estados Unidos. Japão, Canadá e Malásia apoiavam igualmente Jacarta. De imediato após a ocupação começaram negociações para explorar os recursos petrolíferos do Mar de Timor.

A resistência timorense exigia esforços de união das várias fações partidárias. José Ramos-Horta, ministro dos Negócios Estrangeiros nomeado pelo governo da Fretilin, deixou Díli três dias antes da invasão e dedicou-se a partir daí a defender a causa timorense e a denunciar o genocídio do seu povo junto das Nações Unidas e em fóruns internacionais, primeiro em nome da Fretilin e depois em nome de todos os timorenses.

Ramos-Horta, porta-voz da resistência timorense junto da ONU Foto DR

A partir de 1982, Ramos-Horta encontrou um dos seus maiores aliados em D. Ximenes Belo, um salesiano timorense nomeado nesse ano administrador apostólico da Diocese de Díli e respondendo somente ao Papa. Logo cinco meses após a sua nomeação, D. Ximenes Belo soltou a voz em plena Sé Catedral num sermão em que condenou sem meias-palavras a brutalidade do massacre de Craras, perpetrado pelos militares indonésios em 1983.

Naqueles anos e sob o impulso de D. Ximenes Belo, a Igreja tornou-se a única instituição capaz de romper o isolamento imposto por Jacarta, com o administrador apostólico a agir sempre que podia em prol da causa timorense.

Os indonésios, muçulmanos, impunham aos povos que controlavam a adoção de uma religião monoteísta. Em Timor assistiu-se a uma conversão em massa ao catolicismo, num reforço de identidade própria face ao ocupante. De 20 por cento na altura da invasão, cerca de 90 por cento da população timorense passou a ser católica.

Ao mesmo tempo, Portugal assumia o papel de representante dos interesses de Timor nas instâncias internacionais, emitindo ainda passaportes portugueses para os exilados, apesar de internamente muitos analistas e políticos considerarem a luta perdida de antemão face ao poderio da Indonésia e seus aliados.

A pressão portuguesa era apesar de tudo um embaraço para os indonésios ao pôr a nu a sua atitude colonialista. E a adesão à Comunidade Económica Europeia, CEE, deu a Lisboa uma importância acrescida, dificultando tratados e contratos.

Mesmo com o esmorecer com os anos da narrativa de combate a um enclave comunista no Sudoeste Asiático, a perseguição atraía pouca atenção, com as tentativas diplomáticas portuguesas e timorenses a esbarrarem nos interesses britânicos, australianos e norte-americanos, apoiantes e fornecedores de armas à Indonésia.

O reconhecimento formal internacional da anexação tardava apesar de tudo, devido à repressão brutal instaurada pelo poder de Jacarta, não só em Timor. A Indonésia era dominada através da ditadura militar desde que Suharto tinha subido ao poder em 1968 e contestação interna era grande. Timor tornou-se exemplo da violação dos direitos humanos em grande escala.

Em fevereiro de 1989 D. Ximenes Belo, entretanto sagrado bispo, escreveu ao Presidente de Portugal, ao Papa e ao secretário-geral da ONU, a apelar a um referendo sobre o futuro de Timor, sob os auspícios das Nações Unidas. Os timorenses estão “a morrer como povo e como nação”, disse Ximenes Belo a Mário Soares, a João Paulo II e a Xavier Pérez de Cuellar. Ao tornar-se a carta pública o bispo tornou-se alvo da antipatia indonésia.

D. Ximenes Belo, bispo de Díli Foto Wikicommons

Mas no seguinte mês de outubro, a visita do Papa João Paulo II coroou os esforços de denúncia e colocou a perseguição sob os olhares do mundo.

Ao chegar a Díli, o Sumo Pontífice beijou um cruxifixo e pousou-o no solo, como que a assinalar que não reconhecia estar um país livre e a assimilar à cruz de Cristo os sacrifícios impostos aos timorenses. Estes responderam com manifestações pela independência, com a Indonésia a recorrer às habituais táticas de repressão brutal.

A contestação era contudo feita cada vez mais às claras, até que se dá o massacre de Santa Cruz.Rumo à independência à boleia do Lusitânia Expresso
As ondas de choque das imagens de Stahl atingiram os portugueses como um tsunami. Não fui a única a chorar ao ver as imagens e ao ouvir aquele povo rezar em português. A causa de Timor foi abraçada logo ali por milhões de pessoas.

O primeiro sinal dessa nova realidade foi a missão Paz em Timor, lançada pela revista Fórum Estudante e pelo seu diretor, Rui Marques, logo depois do sucedido. "Sabia-se que existia um massacre em curso em Timor, mas não havia provas, não havia imagens. E as imagens têm um poder fortíssimo na cultura mediática, provam essa dimensão da tragédia e foram muito importantes" recordou Rui Marques à agência Lusa.

Daí nasceu a viagem do Lusitânia Expresso. Um esforço que envolveu associações de estudantes de todo o país, pessoas anónimas, empresários discretos e a própria comunicação social. Foi necessário um milhão e meio de dólares, montante conseguido à custa de angariações e de donativos. O objetivo oficial era colocar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz. O fito evidente era manter o olhar do mundo sobre a repressão indonésia do povo de Timor. O navio, um ferry sem quilha que transportava habitualmente veículos, foi fretado e enviado para a Austrália, numa viagem de três meses a partir de Lisboa, com 15 tripulantes a bordo. Aportou em Darwin a 8 de março.

A partir de Portugal a iniciativa mobilizava estudantes de todo o mundo. Algumas das principais figuras portuguesas, incluindo o General Ramalho Eanes, voz ativa em prol de Timor, responderam afirmativamente ao convite para embarcar na fase final da viagem. “Não tinha outra hipótese que não aceitar”, afirmou depois o ex-Presidente à RTP.

O Governo português, então liderado por Aníbal Cavaco Silva, demarcou-se abertamente da iniciativa, enquanto a apoiava nos bastidores. Lisboa negociava com Jacarta a possibilidade de realização de um referendo em Timor e não queria deitar tudo a perder.

A maioria dos participantes só iria fazer o último troço da viagem, entre Darwin e Díli. No final de fevereiro de 1992, 120 estudantes de 23 nacionalidades, o general Ramalho Eanes, o mentor da iniciativa, Rui Marques, assim como vários jornalistas de rádio e de televisão, incluindo a RTP e a CNN, conseguiram iniciar a longa viagem de avião para a Austrália, depois de miraculosamente ter sido possível arranjar bilhetes à última hora apesar da falta de fundos.

Quatro dias depois, já em Darwin, iniciaram uma semana de contactos mediáticos, recebidos efusivamente pela comunidade timorense ali exilada. Em Timor sabia-se da aventura, semelhante a uma pedra arremessada contra Golias, e ganhava-se alento.

Dia 9 de março, a enorme comitiva embarcou no ferry para fazer a travessia, em clima de acampamento improvisado e apesar de nenhum operador australiano ter querido assegurar as transmissões televisivas. As televisões recorriam a satélites instalados em pleno convés.

A borodo do Lusitânia Expresso rumo a Timor-Leste Foto Forum Estudante

Antes do embarque vários estudantes não portugueses foram instados pelos seus Governos a abandonarem a missão. Acreditava-se que a Indonésia poderia tentar afundar o Lusitânia Expresso, provocando uma tragédia. A organização reuniu-se com eles e deu-lhes plena liberdade para desistir.

Horas depois, todos entregaram a sua declaração de que queriam estar na missão. “Foi um momento inesquecível”, comovia-se Rui Marques num documentário da RTP dedicado ao Lusitânia Expresso.

Ao aproximar-se da ilha de Timor, o navio em missão de paz, com bandeiras de todo o mundo, era sobrevoado por aviões militares indonésios e escoltado por fragatas do mesmo país. Duas atravessaram-se à frente do navio quando este estava prestes a deixar águas internacionais e ameaçaram afundá-lo se não recuasse.

O comandante do Lusitânia Expresso não arriscou e parou. Inventou-se uma avaria, para ganhar tempo e visibilidade. Para a posteridade ficou a imagem de um frágil navio de paz rodeado de navios de guerra. Do outro lado do mundo, Mário Soares jantava em Paris ao lado do “seu amigo” o Presidente François Miterrand, enquanto recebia quase minuto a minuto notícias do Lusitânia Expresso. A diplomacia portuguesa organizava um piquete para manter informado igualmente o ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, então em Bruxelas, com o restante Governo português a seguir privadamente os acontecimentos.

Os jornalistas informaram entretanto Rui Marques que, à deriva, era impossível transmitir informações e imagens a contrariar a versão indonésia, que filmava e transmitia igualmente o frente a frente. Amargamente, tomou-se a decisão de dar meia-volta. As coroas de flores que deveriam ser depositadas no cemitério foram lançadas ao mar após uma breve cerimónia.

Apesar do sabor a fracasso, a viagem foi uma vitória e tornou-se uma arma diplomática ao serviço de Portugal, que conseguiu impedir nesse mesmo ano a assinatura de acordos entre a União Europeia e a Indonésia.

Em 1994, Cavaco Silva esteve em Washington em visita de Estado e pediu ao então Presidente norte-americano Bill Clinton para aproveitar uma reunião da APEC, a organização de Cooperação Económica Ásia Pacífico, para pressionar a Indonésia a realizar um referendo em Timor.

E em outubro desse ano, Bill Clinton discursou perante o aliado asiático a favor da posição portuguesa. “Foi a viragem da política norte-americana face a Timor”, recordou Cavaco Silva à RTP “com satisfação” e uma dose de incredulidade.

As atenções mundiais voltaram a centrar-se em Timor com a atribuição do Prémio Nobel da Paz 1996 a Ramos Horta e a D. Ximenes Belo que, além do apoio formal à luta pela independência arriscou acolher em sua casa fugitivos do massacre de Santa Cruz. E em julho de 1997, o Presidente sul-africano Nelson Mandela visitou no cárcere o líder da Fretilin, Xanana Gusmão.

A crise económica na Ásia ditou entretanto o fim do regime militar de Suharto, que se demitiu em maio de 1998 abrindo caminho a uma solução democrática no país. A corda que esganava o povo timorense afrouxava cada vez mais.

No referendo pela independência, prontos a votar Foto Wikicommons

Em 1999, Portugal e Indonésia acordaram a realização de um referendo em Timor, sobre a independência.
A independência paga em sangue
A indonésia usou então a tática da cenoura e do pau para tentar submeter os timorenses, iniciando uma campanha de reconstrução de casas, de estradas e de infraestruturas, enquanto militares e milícias ameaçavam os cidadãos que tentassem votar. Centenas de timorenses foram separados das famílias e enfiados em camiões para parte incerta, desaparecendo para sempre. A expectativa era de um banho de sangue se a independência vencesse. A 30 de agosto, apesar dos riscos, mais de 98 por cento da população foi às urnas. O resultado transmitido pela ONU a 4 de setembro, revelou uma maioria de 78,5 por cento pela independência.

A fúria indonésia impediu-a de reconhecer a derrota e desencadeou uma vaga de perseguições e de assassínios em plena rua.

Antes do referendo, o território tinha sido aberto a jornalistas de todo o mundo, incluindo portugueses. Jacarta deu-lhes ordem de saída e quase todos se foram embora enfiados em camiões, até ao aeroporto, entre saraivadas de tiros. Quatro jornalistas decidiram contudo ficar para trás, acabando sitiados pelas milícias apoiadas pela Indonésia, na delegação da ONU em Díli, a Unamet.

Além de José Vegar, do Expresso, de Jorge Araújo, do Independente e de Luciano Alvarez, do Público, Hernâni de Carvalho, um dos repórteres da vasta equipa enviada pela RTP para Darwin e para Díli, fez de tudo para gravar e para transmitir através do seu telefone satélite o que estava a assistir. Recordo as imagens confusas de pessoas a tentar fugir, aterrorizadas montanha acima, a um novo massacre.

A reação dos portugueses à nova brutalidade e à indiferença internacional ao que se voltava a passar em Timor foi um raro momento de unidade nacional. Dia 8 de setembro pelo menos 300 mil pessoas juntaram-se para formar um cordão a ligar as embaixadas dos Estados Unidos, da China, da França, da Rússia, do Reino Unido e a sede da ONU.

A ideia era levar uma t-shirt branca. Vesti uma sob a camisa. Não combinei com mais ninguém da redação. À hora prevista, despi a camisa, dirigi-me às escadas e comecei a descer os dois pisos até à rua. E dei por mim entre dezenas de outros colegas a fazer o mesmo e depois entre centenas de pessoas, uma enchente. Foi impossível ficar perto da sede da RTP na avenida 5 de outubro. A pressão das mãos dadas em sucessão foi-me empurrando vários quarteirões quase até ao Saldanha, entre desconhecidos, meus irmãos por Timor-Leste.

Dia 15, de novo sob a pressão das imagens que conseguiam sair de Timor e após apelos desesperados de Ramos Horta, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 1264 (1999), na qual, entre outros pontos, condenou todos os atos de violência perpetrados em Timor-Leste, apelou ao seu fim e à apresentação dos responsáveis à justiça.

Quatro dias depois, uma força multinacional de paz, composta sobretudo por soldados australianos, entrou no território, que encontrou totalmente devastado. Em outubro, a Indonésia reconhecia o resultado do referendo e abandonava Timor-Leste, depois de libertar Xanana Gusmão.

A 20 de maio de 2002, nasceu o primeiro país do século XXI. Timor-Lorosae. Presentes em Díli, lado a lado, Sukarno Putri, a nova Presidente da Indonésia, o Presidente Jorge Sampaio por Portugal, o secretário-geral da ONU Koffi Annan, o primeiro-ministro da Austrália, o ex-Presidente Bill Clinton e, naturalmente, Xanana Gusmão.

Depois de centenas de milhares de mortos – a ocupação terá feito pelo menos 100 mil vítimas mortais em 25 anos, um sexto da população timorense - começava o tempo da reconciliação.