
O incidente mais grave da crise de 2006, conforme relatado terça-feira por um oficial português em Timor-Leste, foi uma curta-metragem de grande economia de recursos: oito mortos em 40 segundos.
O comissário da PSP Nuno Anaia relatou na terça-feira ao Tribunal de Recurso, em Díli, o que viu no dia 25 de Maio de 2006, quando elementos das Falintil-Forças de Defesa de Timor-Leste (F-FDTL) atiraram sobre uma coluna desarmada da Polícia Nacional (PNTL), que seguia a pé sob escolta das Nações Unidas.
O oficial da PSP, ao volante da sua viatura da Polícia das Nações Unidas (UNPol), encabeçava o lado esquerdo da coluna de 103 polícias que saíram do quartel-general da PNTL, em Caicoli.
A coluna foi atacada poucas centenas de metros mais à frente, junto ao Ministério da Justiça.
O testemunho de Nuno Anaia é um "filme" diferente dos outros ouvidos nas últimas semanas pelo colectivo de juízes presidido pelo magistrado português Ivo Rosa, no âmbito do processo em que onze militares e um inspector da PNTL são acusados de homicídio.
Juntas, as respostas do comissário Nuno Anaia formam um filme equivalente ao que seria captado, de câmara ao ombro, pelo realizador - se o realizador fosse o alvo.
"O tiroteio durou 15 a 30 segundos, no máximo, antes de eu arrancar com o meu carro, cheio de PNTL`s, em direcção ao Obrigado Barracks", quartel-general da missão internacional, contou o comissário.
"Os militares dispararam 30 a 40 segundos", acrescentou Nuno Anaia.
O oficial português é o único elemento da ONU, dos 17 presentes no tiroteio de Caicoli, que ainda se encontra em serviço em Timor-Leste, onde está em missão desde Setembro de 2003.
Foi Nuno Anaia, na altura assessor do comandante-geral da PNTL, quem, "à porta do quartel-general", organizou a coluna de polícias, alinhados em 3 filas de cerca de 35 homens.
Dentro do quartel-general, os polícias tinham sido desarmados e as armas colocadas "dentro de um blindado da UNPol".
A coluna dos PNTL, enquadrada por uma dezena de viaturas internacionais, era liderada, a pé, pelo coronel Fernando Reis, assessor militar português, e por Salif Malik, actualmente na missão da ONU na Eritreia, que empunhavam uma bandeira da ONU.
O objectivo da coluna era evacuar os polícias para as Obrigado Barracks, no seguimento de um cessar-fogo obtido pelo coronel Fernando Reis com o comando das F-FDTL, presente em Caicoli, onde militares e polícias tinham trocado tiros nessa manhã.
"Havia polícias que não queriam aceitar (a evacuação) e foi-lhes dito que podiam ficar no quartel-general", sem protecção aos disparos das F-FDTL.
"Tinham receio de um ataque cá fora", recordou o comissário Nuno Anaia.
Antes de a coluna dos PNTL avançar, três batedores da UNPol "foram à frente para verificar a passagem", até junto do Ministério da Justiça, falando com cerca de seis elementos das F-FDTL armados que aí se encontravam.
"Esses militares recuaram" e, a um sinal dos batedores, a coluna dos PNTL começou a marcha.
"Seguimos um percurso que evitaria passar pelo quartel da Polícia Militar e que, nas circunstâncias da altura, parecia o melhor", explicou hoje o comissário Nuno Anaia, acrescentando que a única via alternativa estava impedida por contentores "colocados para o congresso da Fretilin".
Quando a coluna passava no cruzamento do ministério da Justiça, Nuno Anaia viu elementos das F-FDTL aproximando-se, armados, de ambos os lados da estrada, correndo "com a arma pela bandoleira".
"Os polícias, que já estavam apavorados, ficaram ainda mais em pânico", recordou Nuno Anaia.
"Tentámos acelerar a marcha e a coluna continuou a andar".
De súbito, o comissário ouviu "gritos em tétum do lado direito, que foram correspondidos do lado esquerdo".
"Vi os elementos das F-FDTL a passarem as armas por cima dos elementos das UNPol e a dispararem", disse Nuno Anaia.
Interrogado sobre o "alvo primordial" do tiroteio, o oficial declarou que, "pelo tipo de armas, o alvo eram elementos seleccionados", com "tiros selectivos".
"Se não fossem, teria havido rajadas, porque a M16 tem uma posição (de tiro) que permite isso", declarou o oficial português.
A viatura de Nuno Anaia, para onde tinham entrado e saltado elementos da PNTL ("era uma `pick-up`"), foi atingida com dois tiros.
Nuno Anaia declarou que "de certeza não houve qualquer disparo do meio da coluna dos PNTL para fora", como alegam os arguidos.
O comissário foi ainda interrogado sobre o que sentiu na altura: "A reacção na altura foi medo".