Mario Terán. Morreu o militar que abateu o "Che" Guevara

por RTP
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Mario Terán Salazar abateu, em 1967, um prisioneiro indefeso, que não era outro senão o "Che" Guevara. Terán viveu ainda 54 anos, sempre assombrado pela recordação desse momento e temendo um acto de vingança executado pelo "longo braço da revolução". Os temores eram, no seu caso, infundados e morreu agora aos 82 anos - placidamente, na cama.

O sargento Mario Terán tinha 25 anos quando um oficial lhe deu a ordem de ir matar o prisioneiro ferido. Recebeu também instruções para disparar contra o torso, de modo a simular ferimentos em combate. Causaria maior sofrimento à vítima, mas permitiria ao Exército desmentir a execução. Entrou na escola que servia de prisão improvisada e ficou a sós com o prisioneiro.
 
Anos mais tarde, descreveu assim o frente-a-frente: "Foi o pior momento da minha vida. Vi o Che, grande, muito grande, enorme. Os olhos dele brilhavam como mil fogueiras. Disse-me: 'Tem calma e aponta bem! Vais matar um homem!'. Dei um passo atrás, em direcção à porta, fechei os olhos e disparei".

Ao ser ferido e capturado pelo Exército boliviano, o "Che" Guevara era, com 39 anos, uma figura mítica da revolução. "Argentino e cubano", como cantava Paco Ibañez, Ernesto Guevara nascera em Rosario, Argentina, percorrera a América Latina a cavalo numa motorizada, conhecera as prisões da Guatemala e do México, participara na expedição do "Granma" e tornara-se um dos comandantes do Exército Rebelde na Sierra Maestra. Em 2 de janeiro de 1959, entrara na Havana com as tropas vitoriosas e com um braço ao peito, ferido na decisiva batalha de Santa Clara.

Nos anos seguintes, tornou-se um símbolo da revolução cubana, dirigindo nomeadamente o seu banco central e o Ministério da Indústria. Mas o agravamento da dependência face à URSS foi tornando o "Che" cada vez mais crítico. Não chegou nunca a romper com Fidel, tendo antes acordado com este em partir para onde fosse possível criar mais um daqueles "muitos Vietnames" que conclamava os revolucionários a criarem.
 
Esteve primeiro no Congo, com um punhado de guerrilheiros cubanos e com a tropa de Laurent Désiré Kabila. Dessa estadia e desse fracasso quase nada se soube na altura, porque Cuba guardou rigoroso sigilo sobre a expedição. Foi o ano, como diria Guevara, "em que estivemos em lugar nenhum". Partiu depois para a Bolívia e o fracasso seria nesse caso mais grave e acabaria por custar-lhe a vida. A CIA detectou a sua presença e foi montando, pacientemente, um cerco à sua volta. O Partido Comunista Boliviano recusou apoiá-lo, os camponeses denunciavam-no e os combativos mineiros bolivianos ignoravam a guerrilha.

Guevara acabou por ser ferido num recontro com o Exército e capturado. Os militares bolivianos e a CIA discutiram o que fazer, houve quem quisesse organizar um julgamento-espectáculo para efeitos de propaganda, mas finalmente prevaleceu o receio de que o feitiço pudesse virar-se contra o feiticeiro e o réu se tornasse acusador do imperialismo americano e da camarilha militar boliviana, respaldado por uma forte campanha de opinião internacional.

A decisão de eliminar o prisioneiro foi comunicada pelo presidente, general René Barrientos, ao contingente que aguardava ordens em La Higuera. A ordem directa de execução foi dada por um oficial da CIA, Félix Rodríguez, ao dito sargento Mario Teran. O cadáver foi exposto e fotografado pela imprensa. Depois fizeram-no desaparecer e enterrar em lugar que permaneceu secreto para evitar um culto do “Che”, e que só veio a ser conhecido 30 anos depois.
 
Para provarem que o “Che” fora realmente morto, os militares bolivianos cortaram as mãos do cadáver e conservaram-nas como prova. Roubaram também tudo o que encontraram na sua mochila e tentaram fazer negócio publicando os diários do “Che”, a pretexto de que os direitos de autor constituíam espólio de guerra. Mas o Estado cubano antecipou-se à publicação e lançou, ele próprio, a obra no mercado, esvaziando a fraude milionária dos militares.

Uma densa teia de mitos e lendas se criou em torno do “Che”. A aldeia onde foi morto, “La Higuera”, tornou-se um lugar de peregrinação revolucionária. Camponeses que em vida não se entusiasmavam com a vizinhança daquela guerrilha, passaram a referir-se a ele como “San Ernesto de la Higuera”. Quando uma série de acasos começou a ceifar as vidas dos militares envolvidos na sua execução, criou-se ainda o mito da maldição do “Che”.

Um deles, de qualquer modo, não morreu por acaso nem de morte natural: o chefe dos serviços secretos bolivianos, Roberto Quintanilla Pereira, que tinha ido esconder-se em Hamburgo como cônsul boliviano. Em 1 de abril de 1971, uma guerrilheira do Exército de Libertação Nacional, Monika Ertl, entrou no consulado e abateu-o com três disparos certeiros.

Mario Teran foi, com Gary Prado, um dos envolvidos na caçada de La Higuera que sobreviveram até à velhice. Era conhecido por viver em permanente obsessão paranóica e fortemente alcoolizado. Depois de ter citado as palavras do “Che” no seu derradeiro encontro, fez em 2014 um volte-face e alegou que não tinha sido ele a matar o líder guerrilheiro, e sim outro sargento com o mesmo nome.

Morreu ontem, de uma doença respiratória crónica.
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