Lula da Silva. O metalúrgico que quer voltar a consertar o Brasil

De origens modestas, com décadas de experiência política e uma história de grandes triunfos, mas também ensombrada por acusações de corrupção, Lula da Silva regressa à presidência do Brasil com os olhos postos num objetivo: "provar à elite que outra vez um metalúrgico vai consertar o país". Será uma nova oportunidade para o homem que já governou o Brasil e que quer mudar, uma vez mais, o rumo da nação, depois de ter destronado Jair Bolsonaro.

Era 12 de maio do ano 1978 quando Lula da Silva, então ativista e sindicalista de 33 anos, se dirigiu à fábrica de camiões Scania, em São Paulo, para se juntar aos trabalhadores em greve por melhores salários. Nessa altura, o Governo militar de Ernesto Geisel estava sob fogo cerrado da população após ter mentido sobre os dados da inflação no país.

Com a ajuda de Luiz Inácio "Lula" da Silva, as greves proibidas desde o golpe militar de 1964 voltaram à carga. Os operários agitaram o Brasil e, em 1980, foi criado o Partido dos Trabalhadores, pelas mãos de sindicalistas, intelectuais, artistas, estudantes e todos os movimentos sociais que queriam ver-se representados.

Dois anos depois, o PT começou a apresentar candidatos em eleições locais e a ganhar terreno. No final da década de 1980, Lula da Silva concorreu pela primeira vez à presidência do país, arrecadando 16% dos votos na primeira volta e 44% na segunda, perdendo para Fernando Collor.

O "petista" ainda concorreu a mais duas presidenciais antes de conseguir finalmente, em 2002, ser eleito presidente da República Federativa do Brasil.

Lula da Silva nasceu em 1945, sétimo filho de um casal de agricultores. A família vivia numa casa pequena com chão de terra batida, à exceção do pai, que morava em São Paulo para tentar dar uma vida melhor aos filhos. Lula foi ter com o progenitor aos sete anos e começou a trabalhar ainda em criança.

Aos 14 anos passa a ser metalúrgico, setor que começa a desenvolver-se fortemente em São Paulo nessa época. É num acidente de trabalho que, aos 17 anos, perde o dedo mindinho da mão esquerda.

Casou-se aos 23 anos, mas perdeu a mulher, grávida de oito meses, vítima de hepatite agravada. Antes dos 30 anos casou mais duas vezes e teve quatro filhos.


Ainda jovem, Lula tinha começado a frequentar reuniões sindicais e a ter contactos próximos com os operários. Em 1969 ocupa o cargo de suplente no sindicato e, seis anos depois, assume a presidência do mesmo, passando a representar 100 mil trabalhadores.


Entre 1978 – ano da greve na Scania - e 1980, comandou greves gerais de grandes proporções, abrangendo centenas de milhares de operários, e tornou-se um dos principais nomes da oposição ao regime repressivo que se vivia no Brasil. Esteve preso durante um mês em 1980 e, ao sair, a grande meta do sindicalista passou a ser criar o seu próprio partido, conseguindo alcançá-la nesse mesmo ano.

Como presidente do Partido dos Trabalhadores, Lula conquistou vitórias como a garantia do direito à greve, a licença de maternidade de 120 dias ou a redução do horário de trabalho de 48 para 44 horas.

Ao ser eleito presidente do Brasil em 2002, com quase 53 milhões de votos, conseguiu o crescimento económico no país, a expansão da educação, a redução da pobreza, o acesso dos mais pobres a linhas de crédito e o aumento de salários, mantendo sempre o Palácio do Planalto aberto aos grupos sociais.

Em 2006 foi reeleito, com mais de 58 milhões de votos, sendo em 2011 sucedido por Dilma Rousseff, também do PT. Pouco depois, começaram as polémicas.

Em março de 2014, a justiça brasileira iniciou a maior investigação alguma vez realizada no país, dando-lhe o nome de Operação Lava Jato. As autoridades emitiram mais de mil mandados de busca e detiveram vários suspeitos – incluindo vários políticos - de um alegado esquema de corrupção na petrolífera Petrobras.

Se, em 2015, Lula da Silva estava a ajudar as autoridades com a prestação de informações, rapidamente se tornou ele próprio um alvo da investigação. Acabou por ser condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, ficando detido 580 dias, entre abril de 2018 e novembro de 2019.

Para além desses alegados crimes, Lula foi também acusado de tráfico de influências, organização criminosa e obstrução da justiça. No total, o ex-presidente acumulou 26 processos judiciais, todos originados pela Lava Jato – operação que suscitou acusações de responsabilidade política contra Dilma Rousseff, levando ao seu impeachment em 2016.

Em 2021, porém, o Supremo Tribunal Federal anulou ou absolveu as condenações contra Lula da Silva por entender que este não viu os seus direitos respeitados e que a atuação do ex-juiz Sergio Moro - aliado de Bolsonaro - no processo foi parcial. Noutros casos, os alegados crimes prescreveram.



Graças à ilibação, Lula pôde voltar a candidatar-se à presidência do Brasil.

Na primeira volta das eleições, foi por pouca margem que ficou à frente do seu principal adversário. O petista arrecadou 48,4% dos votos, enquanto Jair Bolsonaro conseguiu 43,2%. O resultado tornou inevitável um “segundo turno”.

A 30 de outubro, Lula da Silva venceu as eleições presidenciais com 50,90% dos votos (60,3 milhões de votos), contra os 49,10% alcançados por Jair Bolsonaro (58,2 milhões de votos).

De acordo com a imprensa brasileira, Lula da Silva tornou-se nesta eleição no presidente eleito mais votado na história, ao superar a marca dos 60 milhões de votos.

No entanto, é também o resultado com menor diferença entre os dois candidatos em termos percentuais e absolutos, com diferença de apenas dois milhões de votos para o presidente que está agora de saída do Planalto.  
As principais propostas de Lula
“A ideia de voltar a ser presidente da República é para provar à elite que governa este país desde 1500 que outra vez um metalúrgico vai consertar o país”, disse Lula da Silva este mês, numa visita à Favela do Alemão.

As probabilidades de vitória são animadoras para a coligação de Lula, “Brasil da Esperança”, composta pelo Partido dos Trabalhadores e por oito outros partidos de esquerda e centro-esquerda. Para além da vantagem na primeira volta e das recentes sondagens, que apontam para o triunfo, vários dos candidatos eleitorais que ficaram pelo caminho vieram entretanto anunciar o seu apoio ao ex-presidente.

No cenário internacional Lula também tem recebido apoio, incluindo em Portugal. Ainda antes de tomar posse, o novo presidente do Brasil viajou até Portugal em novembro último, onde foi recebido pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa e pelo primeiro-ministro António Costa.

"Portugal tinha muitas saudades do Brasil, há muito tempo que não estamos juntos, eu pessoalmente tinha muitas saudades do presidente Lula", afirmou António Costa ao lado do presidente eleito do Brasil, insistindo ainda que "há que recuperar o tempo que perdemos, o tempo que estivemos afastados".

Sob o mote “vamos juntos pelo Brasil”, Lula da Silva apresentou um programa “justo, solidário, sustentável, soberano e criativo para um Brasil que seja de todos os brasileiros e brasileiras”. O documento de 21 páginas, ao longo das quais não faltam críticas ao Governo de Bolsonaro, assenta em quatro compromissos:

  • Reconstrução e transformação do país

Condenando o “processo de destruição que nos trouxe de volta a fome, o desemprego, a inflação, o endividamento e o desalento das famílias”, colocando a democracia em xeque, a coligação Brasil da Esperança defende que a sociedade brasileira precisa de voltar a acreditar na sua capacidade de “mudar os rumos da História”.

Nesse sentido, Lula da Silva assume o seu “primeiro e mais urgente compromisso”: restaurar as condições de vida da população, especialmente os que “mais sofrem com a crise, a fome, o alto custo de vida, os quer perderam o emprego, o lar”.

Para tal, serão aplicadas “políticas estruturantes desde o primeiro minuto”, refere o programa. A primeira dessas políticas é a de defesa da igualdade e da democracia, respeitando o resultado das urnas.

Segue-se o compromisso com o desenvolvimento económico, que passa por superar a crise e conter a inflação, aplicando ainda transparência na execução dos orçamentos públicos e garantindo a ampliação dos investimentos no país.

Na área da justiça social, a coligação encabeçada por Lula da Silva quer combater “a fome, a pobreza, o desemprego, a precarização do trabalho e a desigualdade e concentração de renda e de riquezas”.

Já durante a sua campanha, o presidente eleito disse querer “políticas públicas para as favelas” e a redução da pobreza. “Quantas crianças vão dormir sem poder beber um copo de leite? Isto não é normal. Isto não é falta de dinheiro, é falta de vergonha na cara da elite brasileira”, declarou.

Atualmente, quem ganha mais de 380 euros (1.900 reais) mensais paga 7,5% de impostos e quem ganha mais de 750 euros é taxado em 27,5%. Lula quer mudar estes números, propondo a isenção de imposto de renda para quem ganha até 1.000 euros (5.000 mil reais).


Não esquecendo a cultura e os Direitos Humanos, o programa aposta ainda na proteção das pessoas de todas as formas de violência, opressão ou discriminação, em particular “a população historicamente privada de direitos no Brasil”.

  • Desenvolvimento social e garantia de direitos

O Trabalho é um dos pontos-chave da agenda de Lula da Silva, que começa por propor uma legislação trabalhista para a proteção social de todos os trabalhadores, especialmente os que atuam por conta própria ou que têm trabalhos domésticos.

Para além de querer o acesso gratuito à justiça do trabalho, a coligação de Lula promete incentivar as iniciativas sindicais, criar mais oportunidades de emprego e valorizar o salário mínimo "visando a recuperação do poder de compra dos trabalhadores”.

Numa altura em que "a fome voltou ao país", o novo presidente promete ainda trabalhar "de forma incansável até que todos os brasileiros e as brasileiras tenham novamente direito ao menos a três refeições de qualidade por dia", frisa o programa.


Na Educação, o Brasil da Esperança diz querer voltar a investir na educação de qualidade, no direito ao conhecimento e no fortalecimento da educação básica, da creche à pós-graduação. “A educação é investimento essencial para fazer do Brasil um país desenvolvido, independente e igualitário, mais criativo e feliz”, refere.

A Saúde surge na proposta de Governo de Lula da Silva com uma crítica: “não fosse o Sistema Único de Saúde [SUS] e os corajosos trabalhadores e trabalhadoras da saúde, a irresponsabilidade do atual governo na pandemia teria custado ainda mais vidas” durante a pandemia de covid-19.

Tendo isso em conta, Lula comprometeu-se a fortalecer o SUS, retomar o atendimento às questões que foram suspensas durante a pandemia e dar resposta àqueles que apresentam sequelas do SARS-CoV-2.


É ainda defendido o direito à Cultura, passando pela implementação de um “Sistema Nacional de Cultura” e pela promoção de processos criativos.

Já o ordenamento do território passa, para Lula da Silva, pela redução das desigualdades socio-territoriais e pela transição ecológica das cidades brasileiras, onde vive 85% da população, segundo o programa.

Para combater o racismo, serão asseguradas as políticas de quotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais. “Construiremos políticas que combatam e revertam a política atual de genocídio e a perseguição à juventude negra” e que “combatam a violência policial” contra essa população, assegura.

A inclusão passa também pelos povos indígenas brasileiros, cujos territórios Lula promete proteger. “Temos o dever de assegurar a posse de suas terras, impedindo atividades predatórias, que prejudiquem seus direitos”, defende.

São ainda propostas políticas que ponham fim à agressão física e psicológica de pessoas LGBTQIA+, nomeadamente políticas que garantam o seu direito à saúde, educação e mercado de trabalho.

  • Desenvolvimento económico e sustentabilidade socioambiental e climática

O crescimento dos empregos e a estabilização dos preços são, neste capítulo, as prioridades do futuro Governo de Lula da Silva, que quer assim trazer confiança aos investimentos no país.

Na agenda está também a mobilização do mercado interno, das infraestruturas urbanas e sociais e do uso de recursos naturais estratégicos, assim como a revogação do teto de gastos e a revisão do atual regime fiscal brasileiro.

“Construiremos um novo regime fiscal, que disponha de credibilidade, previsibilidade e sustentabilidade”, propõe Lula da Silva, que quer “colocar os pobres outra vez no orçamento e os super-ricos a pagar impostos”.



Para o combate à inflação, Lula propôs-se a estabelecer uma política nacional de abastecimento e outra de preços dos combustíveis e do gás. O ex-presidente ambiciona também reduzir a volatilidade da moeda brasileira através de mudanças nas políticas de câmbio.

Realçando que há, neste momento, “66 milhões de pessoas” em dívida no Brasil, Lula promete promover a renegociação das dívidas das famílias e das pequenas e médias empresas. Além disso, irá avançar com regulação e incentivará “medidas para ampliar a oferta e reduzir o custo do crédito, ampliando a concorrência no sistema bancário”.

Entre as prioridades para o desenvolvimento económico encontra-se ainda a reindustrialização e a elevação da competitividade. Para tal, um Governo de Lula da Silva irá reduzir as burocracias e o custo de capital e ampliar os acordos comerciais internacionais.O Brasil está no quarto lugar do ranking de países do G20 com maior índice de inflação, apresentando uma taxa de 10,07% acumulada ao longo de 12 meses.

Na agenda consta igualmente o fortalecimento da produção agrícola, considerada por Lula como “o caminho para superar a crise alimentar”, e a constituição de uma agroindústria de primeira linha e de alta competitividade mundial.

Para a coligação, é imprescindível garantir a segurança energética do país, ampliando nesse sentido o acesso a fontes “limpas e renováveis a preços compatíveis com a realidade brasileira”.

O programa deixa claro que Lula da Silva se opõe “fortemente” à privatização em curso da petrolífera Petrobras, que no Governo de Lula “terá o seu plano estratégico e de investimentos orientados para a segurança energética, a autossuficiência nacional em petróleo e derivados”, assim como a garantia do abastecimento de combustíveis no Brasil.


O Brasil da Esperança promete também um “grande processo de transformação digital no país, assegurando internet de qualidade em todo território e para todos e todas”; a estimulação do turismo como fonte de criação de empregos; e o cumprimento das metas de redução das emissões de gás de carbono, assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris, em 2015.

“É imperativo defender a Amazónia da política de devastação posta em prática pelo atual Governo”, refere Lula, que se opõe ao desmatamento e à mineração ilegais.

  • Defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania

Criticando os alegados ataques à democracia pela “política irresponsável e criminosa” do Governo de Jair Bolsonaro, Lula da Silva diz querer construir uma alternativa “à incompetência e ao autoritarismo”.

Para isso, promete defender os direitos civis e as liberdades individuais, entre as quais “o respeito à liberdade religiosa e de culto e o combate à intolerância religiosa”.

Quer ainda recuperar a política externa “ativa e altiva”, reconstruindo a cooperação internacional Sul-Sul com a América Latina e a África e fortalecendo novamente o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL).

Lula da Silva promete defender os direitos dos brasileiros que vivem no exterior e que contribuem para o desenvolvimento do Brasil. “Retomaremos e ampliaremos as políticas públicas para a população brasileira no exterior”, para “reconhecimento de direitos e uma vida melhor para as populações migrantes”, garante.

O novo presidente do Brasil quer também dar mais representação às mulheres e aos negros nas instituições, assim como aumentar as capacidades de gestão estadual e dos mais de 5.500 municípios do país.


Um dos pontos de destaque do programa é o do combate à corrupção. “De forma colaborativa com as instituições nacionais de controlo interno e externo, faremos com que o combate à corrupção se destine àquilo que deve ser: instrumento de controlo das políticas públicas para que os serviços e recursos públicos cheguem aonde precisam chegar”, defende Lula da Silva.

Na Justiça, o Brasil da Esperança quer estabelecer um diálogo permanente com os atores do Judiciário, dando mais instrumentos ao sistema de Justiça para que possa atuar junto às plataformas digitais e garantir a sua “neutralidade e pluralidade”, combatendo “a propagação de mentiras e mensagens antidemocráticas ou de ódio”.

No ano em que o Brasil celebra 200 anos de luta pela independência, a coligação Brasil da Esperança termina o programa com a promessa de que “ditaduras nunca mais, democracia sempre”.

A coligação encabeçada por Lula da Silva é composta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), do qual é presidente de honra, em conjunto com o Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Verde (PV), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Rede Sustentabilidade (REDE), Solidariedade (SOL), Avante (AVT) e Agir (AGR).

Nota: O artigo foi publicado originalmente por ocasião das eleições presidenciais brasileiras, que se realizaram em outubro de 2022.