Leilão de mulheres online. Endurece a estratégia contra as vozes muçulmanas na Índia

por RTP
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Uma aplicação electrónica disponibilizava este sábado mais de cem mulheres para serem licitadas. Um leilão que visou mulheres muçulmanas que se entregam ao activismo contra o ambiente hostil que este grupo específico enfrenta na Índia e, de resto, nessa região do globo. Entre as personalidades com visibilidade pública que foram visadas estava a Nobel da Paz paquistanesa Malala Yousafzai, que também não escapou ao ataque, repetindo uma acção semelhante levada a cabo em Julho passado.

Sob a designação de Bulli Bai, o leilão foi lançado no sábado passado através de uma aplicação na plataforma GitHub. “Bulli Bai” – como foi designada a operação de “venda de mulheres” – e “Sulli Deals” – nome dado a uma acção semelhante há seis meses – são designações que evidenciam desde logo os propósitos dos autores por detrás do leilão fictício: denegrir figuras públicas que são vozes activas na luta pela dignidade da mulher muçulmana.

Ambas as designações (“Bulli” e “Sulli”) são termos depreciativos usados na gíria local quando se pretende insultar a figura da mulher muçulmana.

Foram várias as figuras públicas visadas pelo ataque neste arranque de ano: jornalistas, activistas e figuras da política. Todas elas tiveram exposta a sua imagem com a indicação de “negócio do dia”, induzindo a ideia de que poderiam ser compradas para vários fins. Sania Ahmad, uma voz pelos direitos das muçulmanas nos media – a activista tem mais de 39 mil seguidores no Twitter – e já visada pelo “Sulli Deals” de Julho passado, atribuiu o ataque a grupos da extrema-direita hindu.

Após apresentar queixa na polícia, Ahmad lamentou não ter visto qualquer acção por parte das autoridades para levar os responsáveis a responderem por este ataque, uma queixa que muitas das mulheres alvo do "Sulli Deals" reforçam meio ano após a polícia ter anunciado a abertura de um inquérito contra os criadores do aplicativo lançado em Julho passado.

Novamente alvo no “Bulli Bai”, Ahmad, que admitiu ter ficado em pânico quando em Julho foi avisada do “Sulli Deals” – tendo decidido na altura afastar-se momentaneamente das redes sociais –, sublinha que desta vez já não foi assaltada pelo “medo” que a tomou naquele primeiro episódio há seis meses.

A queixa por inacção das autoridades é recorrente nas vítimas deste tipo de ataques. Mais célere foi a reacção da GitHub, que, à semelhança do episódio de Julho, em poucas horas tirou do ar o aplicativo que remetia para o alegado leilão.

Entre as personalidades que apresentaram queixa na polícia está também Ismat Ara, jornalista baseada em Nova Deli, a capital do país. Uma queixa contra “desconhecidos” por ataque e perseguição a mulheres muçulmanas nas redes sociais “com utilização de imagens adulteradas em contexto inaceitável e obsceno”. Muitas das mulheres foram colocadas em contextos sexuais falseados através de programas de manipulação da realidade.

Com base nesta denúncia, um primeiro relatório de informação foi registado pela Unidade de Cibercrime da Polícia de Deli logo no dia seguinte, domingo, invocando várias secções do Código Penal Indiano que tratam a fomentação da hostilidade através de critérios religiosas, a ameaça à integridade nacional e o assédio sexual das mulheres. Na sequência de outra denúncia foi também registado um caso em Mumbai, capital financeira da Índia, tanto contra os criadores da aplicação “Bulli Bai” como contra utilizadores do Twitter.

Ismat Ara lamenta, contudo, que tantos meses depois a sua queixa não tenha resultado em qualquer detenção no processo “Sulli Deals”, o que a leva ao receio de que a acção das autoridades resulte também no "Bulli Bai" na total vacuidade.

“É triste ver como a estes fomentadores do ódio lhes é permitido atingir as mulheres muçulmanas sem medo de qualquer represália. Esta não é a primeira vez que um leilão deste tipo acontece”, lamentou a jornalista, remetendo para os acontecimentos de Julho. “As mulheres que foram visadas são vozes activas que levantam questões dos muçulmanos nas redes sociais. Há aqui uma conspiração para remeter as muçulmanas ao silêncio porque nós desafiamos a extrema-direita hindu online apontando os seus crimes de ódio”.

Uma frente contra as mulheres muçulmanas que pontificam nos movimentos activistas tem vindo a ganhar força nas redes sociais e exemplo disso foi um outro ataque levado a cabo num canal do Youtube designado de “Liberal Doge” durante o Eid al-Fitr, o festival muçulmano que marca o fim do jejum do Ramadão. Nessa altura, foram partilhadas fotos de paquistanesas em vídeos sexuais sob a designação de “Especial Eid”, sendo removidas pelo Youtube face à indignação que provocaram.

Seguiu-se, semanas depois, o “Sulli Deals”, o que levanta receios na comunidade activista presente nas redes sociais de uma escalada sem fim à vista da toxicidade do espaço online na Índia. Um ambiente que visa as mulheres em geral e as muçulmanas em particular.

Um relatório da Amnistia Internacional assinalava já em Janeiro de 2021 que uma centena de mulheres políticas indianas presentes no Twitter estavam a ser alvo de um nível sem precedentes de abusos nas redes. O documento sublinhava que estas mulheres foram visadas não apenas pelas suas opiniões, mas também devido à sua identidade em termos de género, religião, casta e estado civil.

Mais, “as mulheres políticas muçulmanas eram mais visadas do que as suas homólogas hindus”, referiu à Al Jazeera Vrinda Bhandari, advogada de Nova Deli especializada em privacidade e direitos digitais.
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